Bolsonarismo: há pouca (ou nenhuma) inocência nas ações do presidente.

As polêmicas de Bolsonaro não são fruto apenas da ignorância. Elas constroem uma narrativa que favorece o caos.

FPG
Vox.POP!
5 min readAug 31, 2020

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“Tenho vontade de encher a tua boca com uma porrada, tá?”

A ameaça do presidente a um repórter encerrou o (curto) período do ‘novo Bolsonaro’, estrategicamente afastado dos holofotes após os questionamentos no envolvimento com Queiroz. Surfando na melhor avaliação desde o início do mandato, mesmo com mais de 120 mil mortes de COVID-19 no país, o presidente precisava insuflar as massas bolsonaristas e desviar o foco dos noticiários com uma nova polêmica.

Uma distração perfeita para tomar as manchetes e fazer com os apoiadores se voltassem contra a imprensa, justo no momento que as acusações contra a família presidencial seguem sem respostas e os programas de assistência social, como o Casa Verde e Amarela e o Renda Brasil são anunciados. Projetos que Jair era um crítico ferrenho quando deputado e, agora, podem fomentar o caminho para a releição.

Pela retórica tosca do presidente e o discurso raso dos apoiadores, achamos que eles agem sempre por impulso, mas há um método bem estruturado, o mesmo utilizado por líderes de seitas e políticos populistas para se manterem no poder. Bolsonaro pode ser ignorante, mas não é tonto e tem um discurso alinhado com um objetivo: gerar um cenário de caos, repleto de inimigos, onde ele é a única opção viável de manter a estabilidade.

Bolsonarismo: como em uma seita, a dissociação da realidade é essencial.

Pesquisas indicam que se as eleições fossem hoje, Bolsonaro possivelmente seria reeleito. Mesmo chegando na metade do primeiro mandato praticamente com uma sucessão de problemas, que vão da vergonhosa passagem de Regina Duarte pela Secretaria da Cultura ao fato de seguirmos por três meses sem um ministro da Saúde em uma das maiores pandemias da história, a adesão à Jair e ao discurso bolsonarista é fruto de uma narrativa construída estrategicamente, que estimula um clima de guerra permanente.

O podcast Seitas, sobre os mais notórios líderes de cultos, de Manson à Osho, indica alguns métodos frequentes nessas histórias: há a criação de um inimigo em comum, a descrição de um cenário apocalíptico, o surgimento de um líder que se declara escolhido para salvar alguns poucos selecionados que farão parte da construção de uma nova sociedade e, portanto, têm uma missão em comum. Dentro dessa leitura fragmentada da realidade, não é raro que eles segreguem famílias e amigos: quem está contra a seita é um inimigo do progresso.

No bolsonarismo, parte dessa manipulação é facilmente percebida no discurso das figuras nefastas da Internet e nos porta-vozes histéricos que ganham espaço na mídia. Para eles, há o inimigo do comunismo rondando, com um plano de dominação global, que colocaria em risco a integridade das crianças (mamadeira de piroca?). Com o objetivo de gerar ‘analfabetos funcionais’ que os mantenham no poder, os líderes comunistas planejam destruir a tradicional família cristã ocidental. Nessa leitura deturpada da sociedade, o coronavírus é uma criação chinesa para dizimar as potências capitalistas, Paulo Freire ensinaria crianças a trocarem de gênero e Lula seria o responsável por todos os problemas brasileiros.

Na guerra cultural, a mídia, a ONU, a OMS, os defensores dos direitos humanos, o Papa, os professores, artistas, escritores, os sociólogos, ONGs e o Green Peace foram o bloco dos ‘inimigos’, os propagadores de ideais comunistas que não deixariam o presidente ‘trabalhar’, propositalmente.

Dentro dessa paranóia, caberia aos bolsonaristas bem nascidos retomarem e lutarem pelos valores da sociedade em decadência, expulsando de vez o fantasma do comunismo do país. No processo, não tem importância se tivermos que perder os direitos trabalhistas, defender torturadores, exaltar a censura dos meios de comunicação, abrir mão da cultura, educação, o SUS, perder aliados internacionais e ver a floresta pegando fogo. O fundamental é que meninos não usem roupas rosas e meninas nunca vistam azul.

João Cezar de Castro Rocha, autor do livro “Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas de um Brasil pós-político” em entrevista para o podcast Guilhotina do Le Monde Diplomatique acredita que essa narrativa começou lá em 2013 com as manifestações, ganhou força com a eleição de Trump nos Estados Unidos em 2016 e encontrou na figura de Bolsonaro a personificação perfeita para colocar em prática as orientações de Olavo de Carvalho, guru da ala ideológica bolsonarista, para quem os inimigos estão escondidos na cultura, no entretenimento, na informação e na educação.

“A destruição dessas instituições não é uma incapacidade, é um projeto do bolsonarismo”, João Cezar de Castro Rocha.

Para o autor, enquanto insistimos na ideia que Bolsonaro é um tolo, uma caricatura, ele seguirá com um plano de destruição desses pilares do estado brasileiro, como um plano de governo.

As promessas nas eleições foram esquecidas, mas quem liga?

Na época das eleições, muitos defenderam o voto em Bolsonaro, já que ‘apesar da defesa dos ditadores’, o candidato seria uma alternativa à ‘velha política’, mesmo atuando 27 anos como deputado, aos escândalos do PT e, principalmente, pelo apoio de Moro e Guedes, na época baluartes da ‘luta contra a corrupção’ e do ‘neoliberalismo’. respectivamente.

Hoje, com Moro fora do governo, os programas assistenciais que fogem das promessas de Guedes para o mercado e as articulações com o Centrão para se safar da possibilidade de impeachment, o governo de Jair dá mais acenos para o populismo que para uma reforma estrutural do país.

Mesmo com o fracasso no cumprimento das metas no período, empresários e representantes da elite seguem em silênico, demonstrando que o motivo real do voto nunca foi a questão econômica ou a ideologia política, mas o discurso alienado do presidente, que sempre reforça essa aparente batalha que ele estaria travando contra os inimigos do Estado.

Jornalista da revista Piauí, Malu Gaspar, em entrevista para o Novo Normal, acredita que essa articulação entre militares e o Centrão será cada vez mais forte, enquanto os defensores da guerra cultural ficarão com as franjas. “O problema nesse governo é que as franjas são a educação, a cultura”, diz a jornalista. Nesse processo, enquanto os defensores bolsonaristas fazem o circo midiático para seguir com a narrativa do caos instaurado, reforçando Bolsonaro como um defensor da moralidade familiar, silenciosamente eles continuam com as mesmas táticas da velha política, que tanto alegam combater.

No primeiro governo brasileiro democrático movido pelo ódio, há mais destruição que construção e as pessoas parecem anestesiadas até para acompanhar a sucessão de horrores. No clima constante de guerra e informações conflitantes, a avaliação do presidente cresce, apesar dos problemas, e enquanto seguimos acreditando que ele é o “tio do pavê”, inconveniente mas sem estratégia, uma narrativa cuidadosamente alimentada com fake news e desvalorização da mídia segue em curso, até o momento, sem nenhuma figura de oposição suficientemente forte para detê-la.

A gente despreza muito aquilo que a gente não respeita intelectualmente. A gente subestimou muito e as pessoas chegaram onde chegaram.- Debora Diniz.

Mais que nunca, portanto, é preciso estar atento ao que é dito e, principalmente, ao que não foi dito pelo presidente e saber que a tosquice de Jair é estrategicamente alimentada. Só assim, quem sabe, conseguiremos responder à altura.

Para saber mais:

Podcast Novo Normal
Podcast
Guilhotina

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Tentando ser FASHION, aficionado pelas novidades POP e apaixonado pelo universo GEEK. “Cher acima de tudo, Madonna acima de todos.” 🏳️‍🌈🕶️