Como a “cultura do cancelamento” pode banalizar discussões importantes?

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Vox.POP!
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5 min readFeb 20, 2020

Seja bem-vindo, essa é a Central de Cancelamento!

Para fazer a sua denúncia de atitude preconceituosa, apropriação cultural, falta de posicionamento político ou outras queixas sobre celebridades e marcas, acesse as suas redes sociais e faça um post raivoso solicitando o cancelamento provisório ou total do acusado.

O tribunal da internet fará uma rápida avaliação do caso e no prazo de alguns minutos você poderá acompanhar o debate acalorado entre haters, fãs e alienados, sem nenhum aprofundamento na maioria dos casos. Na próxima semana, outro cancelamento será realizado e as discussões serão renovadas. Acompanhe os status de “cancelados”, “renovados” ou “permanentemente cancelados” que serão atualizados diariamente.

Esperamos que tenha gostado da experiência e continue a cancelar indiscriminadamente, até que o cancelamento não represente mais nenhuma relevância ou discussão pertinente.

Cultura do cancelamento: É PROIBIDO PROIBIR!

A cultura do cancelamento atualizou a lista com um novo nome nesta semana: Alessandra Negrini, musa do bloco Acadêmicos do Baixo Augusta, que desfilou no domingo, 16 de fevereiro. Destaque em todos os portais de notícias, a atriz chamou atenção por utilizar adereços e pinturas indígenas, numa época em que os foliões são re-educados que “etnia não é fantasia” e, portanto, acessórios indígenas, black power ou nega maluca não seriam mais tolerados na avenida.

Uma proposta muito válida para evitar velhos preconceitos enraizados nas festas populares, mas que acabou tomando uma proporção descabida que engoliu até o objetivo da vestimenta. Entre tweets inflamados, canceladores acusavam a atriz de oportunismo para ganhar mídia, indígenas questionavam se a atitude da atriz poderia “liberar” outras fantasias preconceituosas dos foliões, enquanto outros defendiam a iniciativa de Alessandra em transformar a festa num ato político. Um fluxo de opiniões em 140 caracteres que pouco contribuíram para o debate e nem levantavam alguns questionamentos, como:

  1. Para quem acusa Alessandra de oportunismo e apropriação da luta indígena para ganhar mídia, basta acessar o Instagram da atriz para conferir que há postagens frequentes em prol da causa, muito antes do carnaval;
  2. A atriz estava acompanhada de lideranças indígenas como a ativista Sônia Guajajara e, por mais que muitos critiquem que não representavam todas as etnias, é impossível negar o caráter de protesto político que a atriz quis promover no desfile;
  3. Em uma época que os diretos indígenas e suas terras são diariamente atacados pelos governantes e interesses comerciais, não seria importante ter o máximo de apoio e divulgação sobre o tema? Especialmente no carnaval quando os debates políticos perdem relevância na mídia;
  4. Se não fosse pela (bela) imagem de Alessandra, essa discussão seria destaque em todos os portais no dia seguinte? Não é melhor ter uma celebridade como aliada do que dezenas de artistas isentos e que nada opinam?

Infelizmente, toda a discussão sobre ato político ficou em segundo plano, já que o tribunal da internet estava mais interessado em seguir cultura do cancelamento e decidir se a atriz seria boicotada por usar um cocar. ‘Temos que nos apropriar, sim, da luta indígena’, disse Alessandra Negrini à Folha. Na discussão, até a própria Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) divulgou uma nota que declarou total apoio ao ato:

Alessandra Negrini colocou seu corpo e sua voz a serviço de uma das causas mais urgentes. Fez uso de uma pintura feita por um artista indígena para visibilizar o nosso movimento. (…) É preciso que façamos a discussão sobre apropriação cultural com responsabilidade, diferenciando quem quer se apropriar de fato das nossas culturas, ou ridiculariza-las, daqueles que colocam seu legado artístico e político à disposição da luta.”

Para ficar mais didático, Yamani Pataxó, que estava na comitiva da atriz, explicou que o problema seria usar “elementos sagrados banalizados como meros adereços” à UOL, enquanto Negrini, na verdade, não utilizou acessórios característicos de nenhuma etnia específica e não estava ali como uma fantasia, mas como um manifesto político.

Cultura do cancelamento é o termo do ano.

O repórter Victor Ferreira foi outra figura do pré-carnaval que viralizou ao se fantasiar de “fiscal de cancelamento”, distribuindo adesivos com multas para foliões que estivessem com fantasias ou atitudes condenáveis durante a festa. De tão popular, a cultura do cancelamento foi o termo do ano em 2019 indicado pelo dicionário Macquarie. Anitta, Hugo Gloss, Diego Hypolito, Valexca Popozuda e marcas como Habbibs, são só alguns dos exemplos que já foram cancelados por não se manifestarem politicamente, tratarem mal os fãs, publicarem comentários preconceituosos, entre outros motivos.

Na prática, a cultura do cancelamento propõe que sempre que alguma celebridade, personalidade, político ou marca tenham uma atitude ou comentário questionável, haja uma ação de boicote para suas produções/divulgações. Quase como um “tribunal on-line”, o paradoxo é que o cancelamento muitas vezes gera mais mídia que a própria ação questionada e, quase sempre, só estabelece uma disputa entre haters e fãs, sem resultados práticos. Afinal, quem fala mal da falta de posicionamento política da Anitta realmente parou de consumir suas músicas? Assim como quem problematizou a roupa de Negrini está vivenciado, de verdade, a causa indígena?

Em outro nível, a cultura do cancelamento também esbarra em outra questão ainda sem resposta: podemos separar a obra do criador? Podemos seguir dançando e celebrando os hits de Michael Jackson, mesmo com as denúncias que levantam suspeitas de pedofilia em sua vida íntima? Elogiamos e prestigiamos as novas produções de diretores de cinema que foram acusados de abusos? Vamos seguir dando like naquelas celebridades que já tiveram posicionamentos machistas ou preconceituosos? Uma declaração ou ato mal planejado seria suficiente para cancelarmos toda uma carreira?

Quem vigia os vigilantes na Cultura do cancelamento?

Atualmente é comum vermos entre os elogios o “sem defeitos” ou “cristal lapidado”, que na realidade geram uma expectativa que não existe. Ninguém é tão perfeito que passe por todo o check-list da cultura do cancelamento impune. Com tudo registrado, haverá sempre um tweet antigo, uma mensagem enviada particularmente ou mesmo um vídeo gravado na surdina que fora do contexto poderá colocar toda a reputação em risco.

Com critérios do cancelamento cada vez mais restritos, não seria estranho se uma hora não tivesse mais ninguém “sem defeitos”, fora aquelas figuras públicas apáticas e meticulosamente treinadas para nunca expressar opiniões. Os “canceladores” também expõem seus tetos de vidro, uma vez que depois de cobrar uma postura exemplar das marcas e celebridades, é indispensável que eles também mantenham uma conduta irrepreensível. Afinal, de nada adianta fazer militância on-line e disseminar hate ou compartilhar fake news por aí.

O problema atual da cultura do cancelamento é que acabamos banalizando e enfraquecendo discussões sérias ao colocar o representante do governo que faz uma campanha nazista e uma celebridade que não quis tirar foto com um fã no mesmo comboio, sob a cancela de “cancelados”. Todo o debate importantíssimo sobre apropriação cultural, homofobia, feminismo, racismo e a mudança comportamental para os novos tempos acaba soando como radicalismo de militantes de internet, quando poderia ser uma discussão mais geral e que desse palco às minorias.

Como na brincadeira do carnaval, distribuir selos de “cancelados” pode até parecer descolado e politicamente engajado em posts bonitos, mas que na prática reduz discussões válidas e urgentes em tweets que também serão cancelados em menos de uma semana.

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Tentando ser FASHION, aficionado pelas novidades POP e apaixonado pelo universo GEEK. “Cher acima de tudo, Madonna acima de todos.” 🏳️‍🌈🕶️