Como curar o bolsovírus?

Apesar da derrota, bolsonaristas continuam alienados.

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Vox.POP!
5 min readDec 30, 2022

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Marília arrumou as malas com pressa. Ligou para a filha avisando que anteciparia a viagem após a receber várias mensagens que diziam que as estradas seriam tomadas por manifestantes e que uma grande greve aconteceria nos próximos dias. Seria o começo de uma guerra civil no Brasil.

Nervosa, nem teve tempo de verificar a bagagem antes de ir para a rodoviária. Pelas mensagens, em poucas horas haveria tanques depondo os governantes e ‘traidores’ da pátria, que seriam punidos publicamente. Outras mensagens indicavam marcar com uma estrela vermelha os comerciantes e prestadores de serviços que votaram no PT.

Nos dias seguintes, já em segurança no destino, Marília perguntava a cada oportunidade se havia notícias sobre a grande paralização das vias, mas tirando alguns bloqueios de alienados vestidos de verde e amarelo e o meme do patriota carregado pelo caminhão, tudo seguia na normalidade.

Apesar da aparente frustração da senhora, os grupos do WhatApp continuavam movimentados, com um suposto relatório militar que provaria as fraudes das urnas em poucos dias e chocaria o país. “Aguarde!”, era repetido como um mantra a cada questionamento.

Marília não vê mais TV, nem ouve rádio. Não acompanha mais novelas ou séries, nem sabe quais programas estão no ar. Seguindo as orientações dos grupos no Zap, também não acredita mais em jornais, já que todos os meios de comunicação querem implementar uma agenda globalista que converterá as crianças em comunistas assexuados. A única fonte de entretenimento e lazer da senhora é o celular e os grupos que não param de enviar mensagens.

Para a aposentada, ela faz parte de um grupo seleto, extremamente bem informado e articulado, que recebe informações ‘exclusivas’, que mostram os bastidores do poder. Qualquer argumento que venha de fora do círculo é rechaçado como mentira criada pelo PT. Monotemática, Marília circula sempre pelos mesmos argumentos de “Lula é ladrão e analfabeto”, “o filho do Lula é milionário”, ou o plano de governo dele de “tirar 30% do salário dos aposentados”.

Se antes alguns amigos e familiares até tentavam argumentar ou trazer alguma luz para essas afirmações, a maioria já desistiu e deixam a senhora praticamente falar sozinha. Cada vez mais alienada da realidade, Marília realmente acredita que está em uma cruzada pessoal contra o comunismo que vai colocar moradores de rua dentro de casa e membros do MST no seu quintal.

“Perdeu mané, não amola!”

Se nos vídeos as pessoas vestidas de verde e amarelo acampando, tentando se comunicar com extraterrestres ou fazendo coreografias nos quartéis parecem um humorístico ruim sem verba, no dia a dia conviver com bolsonaristas que foram sugados por essa onda negacionista é frustrante e muito exaustivo.

Ao transformarem os delírios olavistas em um código moral, eles passaram a viver um eterno clima de perseguição, onde poucos serão responsáveis por salvar a tradicional família brasileira. Assim como líderes de seitas, como na Família Manson ou no desastre de Jonestown, há uma ideia de apocalipse iminente, em que professores, cientistas, artistas, jornalistas ou qualquer pessoa de um grupo minorizado é um potencial inimigo, que deseja o fim da moralidade brasileira.

Pessoas que, de tão envolvidas, não conseguem nem mais perceber as hipocrisias e incoerências dos próprios pedidos, como clamar por ditadura militar para garantir a ‘liberdade de expressão’. Ou não se manifestarem quando um vírus matava milhares de brasileiros, mas fizeram campanha contra as vacinas. Um tipo estranho de patriota vestido nas cores da bandeira, mas que odeia a própria fauna, flora, cultura, arte, língua e a história do país.

Pessoas que se chocam por haver uma mulher negra como Ministra da Cultura, mas que não se sensibilizaram quando viram filas de esfomeados para comer osso. Um mar de ressentidos, que preferiam viver em O Conto da Aia que demarcar um centímetro de terra para os indígenas.

Quando o delírio termina?

Talvez você conheça alguém que está neste momento contaminado pelo bolsovírus, que ainda acredita que não haverá posse do novo presidente e que Bolsonaro dará um golpe até 31 de dezembro, mesmo que ele esteja curtindo a fuga para os Estados Unidos. Talvez você já tenha perdido as esperanças de discutir e só ignore os devaneios, mas mesmo com a vitória é necessário pensar como superar e frear o bolsovírus nos próximos anos.

Não deixa de ser curioso que esse discurso golpista e odioso tenha encontrado morada entre uma parcela tão grande de idosos e aposentados. Pessoas que talvez não se identifiquem mais aos valores atuais, que se sintam pouco produtivos e tenham uma ‘lembrança dourada’ da ditadura militar, quando eles eram mais jovens e controlavam as narrativas. Pessoas que talvez se sentissem sem um propósito e encontraram no bolsonarismo um grupo para se sentirem como protagonistas de grandes feitos. Pessoas que talvez não conquistaram o que desejavam e aproveitam o ressentimento para culpar os avanços sociais em geral.

No podcast Ilústrissima Conversa, a antropóloga Letícia Cesarino indica que as máquinas mudaram nossas relações e que as redes sociais foram a causa dessa popularização das conspirações e discursos de ódio, uma vez que valorizam as reações e não a qualidade dos conteúdos. Para ela, seria momento também de usarmos essas ferramentas para frear a desinformação e cobrar mecanismos mais claros, que não permitam a transmissão de fake news como ‘liberdade de expressão’. Mesmo com a liberdade é essencial cobrar que a defesa de ideias negacionistas, racistas, homofóbicas e violentas não possam mais ser encaradas como uma ‘opinião’.

Para quem ainda acha que esse discurso não tem resultados, as manifestações e tentativa de ato terrorista em Brasília durante a transição de governo só comprovam que essas teorias já extrapolaram as redes e têm efeitos práticos na realidade. Desfazer anos de mensagens delirantes sobre “guerra santa” pode não ser tão simples quanto só virar uma página ou minimizar o problema. Pode ser necessário ainda muita denúncia, bloqueios e uma postura ativa para não permitir novamente que o vírus da mentira se espalhe sem consequências.

Ignorar o problema não é uma solução. Negacionismo, afinal, não ajuda em nenhum tipo de crise. É triste, mas contra o bolsovírus talvez seja hora de nos vacinarmos e praticar uma imunidade de rebanho contra as mentiras.

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Tentando ser FASHION, aficionado pelas novidades POP e apaixonado pelo universo GEEK. “Cher acima de tudo, Madonna acima de todos.” 🏳️‍🌈🕶️