“Deixa a festa acabar, deixa o barco correr, deixa o dia raiar…”

FPG
Vox.POP!
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3 min readFeb 27, 2020

O asfalto tão acostumado com a aspereza e o ritmo frenético dos carros, ônibus e motos no dia a dia experimenta os passos cadenciados de quem não tem muita pressa de chegar em lugar nenhum. Aquelas ruas que diariamente são apenas cenários para cenhos fechados e expressões preocupadas agora estão coloridas de glitter, a pluralidade das fantasias e corpos mais desnudos. Até as buzinas insistentes se calam para escutar o axé, samba, pagode, o funk das novas gerações e até as marchinhas dos saudosistas.

Numa mesma esquina, a senhora de cabelos brancos se abana com um leque para apaziguar um pouco do calor, enquanto crianças brincam fantasiadas de super heróis norte americanos sem nenhuma preocupação. Uma moça que exagerou na mistura de bebidas precisa sentar um pouco na sarjeta antes de voltar para o bloco com a amiga. Um casalzinho troca beijos rápidos enquanto um folião desatento procura os amigos entre dezenas de descamisados que transformam as ruas e calçadas do cotidiano no palco da maior festa popular do mundo.

A beleza do carnaval é justamente essa sensação de poucos dias de que estamos todos um pouco mais próximos e que tudo pode acontecer. Com as barreiras um pouco mais frouxas, deixamos o imaginário solto e podemos ver anjinhas e diabas compartilhando a mesma garrafa de bebida, os reprimidos libertarem fantasias extravagantes, os aventureiros em busca da próxima história de carnaval e a chance de uma vez ao ano ver o pobre se vestir como um rei e os reis se divertirem anonimamente entre os plebeus. O sagrado e profano se misturam numa festa apropriada pelo catolicismo como a última chance de pecar antes do início da quaresma.

Nessa torrente de pecados há também os excessos, afinal, nem todos os desejos são benéficos, mas diminuir uma festa apenas pelos casos isolados é negar nossas contradições, cores, belezas e particularidades que também nos definem como brasileiros, para o bem ou mal. Para aqueles que reclamam e não conseguem reconhecer a beleza de ver o povo nas ruas para celebrar a vida, ou o trabalho minucioso das escolas de samba, vale aquela velha máxima de quem “não gosta de samba bom sujeito não é: é ruim da cabeça ou doente do pé”.

Especialmente em tempos em que temos tão poucas notícias para celebrarmos, cada confete colorido se transforma no desejo de um futuro um pouco melhor, quando não precisaremos apenas sorrir enquanto durar o percurso do bloco. Sambamos nesses poucos dias para esquecer que no restante do ano nosso emprego está em risco, de que nosso dinheiro vale cada semana menos, que o número de moradores de rua cresce nas grandes cidades, que há uma epidemia global rondando o país, que nossos governantes estão mais preocupados em queimar as florestas, que os pobres perdem silenciosamente os programas sociais, que as empregadas não poderão mais viajar à Disney e que tem lama na água, água imundando as casas e pessoas sem casas. Por alguns dias, apenas, os escândalos são soterrados por glitter, papel picado colorido e samba.

Na quarta o cinza volta a ser a cor predominante na paisagem urbana e os sorrisos são trocados pela expressão fechada de poucos amigos, de quem não tem mais tempo a perder. A cadência do samba é atropelada pelas buzinas, sirenes, ambulantes e toques de celulares estridentes.

Guardamos novamente as fantasias, os planos e as risadas, desejando que eles tenham sido marcantes o suficiente para nos fazer aguentar com sanidade até o próximo carnal, que chegará em breve, se Deus quiser.

Deixa o dia raiar, que hoje eu sou
Da maneira que você me quer
O que você pedir eu lhe dou,
Seja você quem for,
Seja o que Deus quiser!
Seja você quem for,
Seja o que Deus quiser!

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Tentando ser FASHION, aficionado pelas novidades POP e apaixonado pelo universo GEEK. “Cher acima de tudo, Madonna acima de todos.” 🏳️‍🌈🕶️