Na pandemia do coronavírus pouca coisa permanece igual.

Em nossas novas rotinas, além do vírus temos que enfrentar a intolerância e nossos piores temores.

FPG
Vox.POP!
5 min readApr 20, 2020

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O caminho é o mesmo. As ruas que há poucas semanas me viram indo e vindo do trabalho, recebendo amigos em casa ou caminhando enquanto fazíamos novos planos. Um mês depois, quase nada mudou, mas pouca coisa parece igual.

Fim de tarde de abril e aquele brilho dourado dá um novo tom na copa das árvores e telhados. Na timeline há várias fotos do pôr do sol nos últimos dias. Chega a ser quase irônico que façam dias tão lindos justo quando as pessoas estão isoladas em casa. Será que se estivessem na rotina diária elas apreciariam a beleza do céu ou estariam entretidas nas telinhas, trancadas em escritórios ou apressadas para o próximo compromisso inadiável? Não dá para saber.

Eu mesmo fazia esse percurso num ritmo frenético dos prazos apertados, dos cursos depois do expediente e a preocupação da próxima semana, do próximo encontro, da última tendência. Na agenda, quase tudo já planejado para a viagem do feriado, a entrega da grande campanha do mês seguinte, os ingressos da exposição já no celular… Agora, com quase metade da empresa demitida (incluindo eu), caminho sem horários e uma agenda vazia de compromissos. Sem a perspectiva de quando voltaremos ao normal, todos aqueles planos e metas que fiz no começo do ano parecem já distantes, quase como se fossem uma fantasia.

Nos mercadinhos perto de casa há pessoas de máscara com olhar de medo, enquanto muitos ainda conversam entre si, ignorando os alertas e talvez ainda acreditando que tudo não passa de alarmismo da imprensa ou uma conspiração global do partido comunista (e o PT, hein?) para quebrar a economia ou tirar o presidente do poder. Muitos seguem alienados acreditando que o “vírus chinês” não teria coragem de cruzar os muros dos condomínios fechados.

Cinco mortes foram confirmadas na cidade, há 138 casos de COVID19 e 1130 ainda em análise. Sejamos francos, esses são apenas os casos que foram testados e sabemos que estão subnotificados. Em Manaus já há contêineres frigoríficos para estocar os mortos ao lado dos hospitais. Não seria exagero pensar que há o triplo de infectados circulando por aí que acreditam que estão com uma gripezinha ou mal-estar pela mudança de estação e não entrarão nas estatísticas.

No ponto de ônibus um pedreiro de idade já avançada espera a carona chegar, enquanto as domésticas torcem para que a condução não esteja tão lotada hoje. Afinal, enquanto as patroas estão de férias ou home office quem poderia cuidar da casa ou ficar com as crianças sem aula? Para eles, a quarentena nunca existiu. Nas redes sociais muitos reclamam de tédio ou fazem graça com a situação, sem lembrar das diversas pessoas que são obrigadas a continuar nas ruas se expondo ao risco, sem nem a opção de poder ficar em casa.

Um abismo social tão evidente que me faz lembrar dos vizinhos que fizeram churrasco no fim de semana com vários carros na rua, as crianças brincando no parquinho como se estivessem de férias, os grupos de mulheres que saem para caminhar no fim do dia já que as academias foram fechadas e os colegas que publicaram stories com amigos assistindo lives sertanejas todos reunidos. Dá um misto de asco e irritação.

Será que é tão difícil não encontrar com outras pessoas além da sua família? É tão absurdo entender que estamos em casa agora para não detonar o sistema de saúde? É impossível ter empatia com quem precisar estar nas ruas ou com aqueles que não terão renda neste ou nos próximos meses? Ou pensar nas pessoas que perderam seus parentes e nem puderam se despedir ou receber o conforto dos amigos? Quando vamos aprender que não se discute ciência com opiniões pessoais? Numa era de tecnologia e informações do mundo todo, como é possível haver carreatas pelo fim do isolamento social? Ou comentários que é absurdo fechar cidades inteiras por “apenas” algumas centenas de mortes?

Nos filmes e séries nós sempre ficamos chocados quando as pessoas desrespeitam os alertas acalorados dos cientistas, quando os vilões decidem sacrificar as pessoas mais indefesas para ganhar dinheiro ou quando algum titã louco acha válido o genocídio de metade do universo. Na realidade, porém, vemos pessoas esclarecidas que se acham superiores aos demais, empresas que não abrem mão do lucro estratosférico mesmo com uma recessão global, especialistas de WhatsApp questionando as autoridades da saúde e os EUA, sempre tão idôneos nos filmes, retendo e desviando itens médicos dos outros países. Se fosse na ficção, ficaríamos revoltados ao ver que a mesquinharia é mais comum que os atos heróicos.

Para entrar no mercado agora é necessário limpar bem as mãos. Uma moça com máscara higieniza os carrinhos com olhar cansado. Pegamos os itens com pressa, com medo de que alguém já tenha contaminado as superfícies. Não vejo a hora de chegar em casa e tomar um banho. Neste mesmo mercado há um mês eu me preparava para receber amigos em casa. Sinto falta de encontrar as pessoas queridas, meu namorado, ir até a cidade dos meus avós. Sei que mesmo quando voltarmos gradualmente à normalidade serão necessários novos cuidados e hábitos.

Li que o século 21 poderá divido entre o antes e o pós COVID-19, assim como nas guerras mundiais ou grandes descobertas tecnológicas. O trabalho remoto, a educação on-line e o questionamento sobre o consumo exacerbado são apenas alguns dos pontos que já tivemos que rever durante o isolamento social e poderão trazer mudanças estruturais para os próximos anos ou décadas.

Volto para casa feliz de ter o privilégio de passar esse período de tantas incertezas em família. Sei que muitos estão sozinhos, lidando com os dilemas mais profundos enquanto recebem uma enxurrada de notícias com o número de mortos, demissões em massa, pedidos de intervenção militar, saída do ministro da saúde e o ódio daqueles que nem usam máscara para disfarçar os preconceitos. Os intolerantes não têm medo do vírus por acreditarem que estão acima de tudo.

Na nova rotina, oscilo entre o otimismo e a inércia, como acredito que muitos estejam. Há dias que eu fico eufórico e quero arrumar as gavetas esquecidas, começar a praticar yoga, empreender num projeto inovador e retomar os hobbies que ficaram esquecidos. Em outros, bate o pessimismo de saber que há pessoas em situações preocupantes, que a doença pode fazer muitas vítimas por pura intolerância e que estamos cercados por pessoas sem empatia que preferem acreditar em fake news de rede social do que pesquisa científica. Tem dias que eu penso que tudo isso irá nos fazer evoluir em muitos aspectos, em outros fico chocado como ainda somos atrasados, apesar da tecnologia.

Lavo as mãos, higienizo as compras, sigo para o banho. Parece que essa nova rotina já faz parte do dia a dia. Quase nada mudou, mas pouca coisa permanece igual.

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Tentando ser FASHION, aficionado pelas novidades POP e apaixonado pelo universo GEEK. “Cher acima de tudo, Madonna acima de todos.” 🏳️‍🌈🕶️