Nossa última caminhada no cemitério

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3 min readJun 28, 2019

Entre túmulos de mármore, flores coloridas e estátuas de anjos, o senhor e o menino caminham sem propósito ou pressa, em um percurso particular.

Numa época longe de tablets ou celulares, entreter crianças sem gastar exigia criatividade e dedicação. Assim, o avô criou uma verdadeira programação semanal que envolvia andar de ônibus, ir até a mercearia do bairro vizinho comprar comida do passarinho, dar voltas na praça e o ápice da semana: a caminhada no cemitério.

O que para muito pode soar um tanto mórbido ou até inapropriado, ente os dois era a oportunidade de caminhar sem precisar desviar de carro ou pedestres e para o pequeno era a chance de ouvir histórias da família e até alguns casos de quem já estava descansando ali nos túmulos.

Foi durante essas caminhadas, inclusive, que algumas lições para a vida foram ensinadas:

Ninguém escreve mundos fantásticos como os ingleses;

Comer pipoca atrapalha o filme e dá sede depois;

Beber refrigerante não mata a sede de verdade;

Se não conhece ninguém no ambiente, melhor ficar na sua e evitar gafes;

Conversas que foram lapidando a personalidade do menino, que do avô espelhou a paixão pelos livros, séries, filmes e pelas boas histórias, independente do formato. Valia até aquelas repetidas, que quando contatas mais de uma vez geram um sorriso de lembrança.

O avô, filho mais velho daquelas famílias tradicionais italianas, não seguiu com os estudos para ajudar na criação dos irmãos e trabalhar com o pai, mas compensava a falta de diplomas com a leitura diária e uma abertura para o que havia de novo, fosse ler Harry Potter, assistir Master Chef ou debater músicas da Rita Lee. Era mais esclarecido que muito doutor. Valorizando o conhecimento, incentivava o neto a continuar estudando, lendo, viajando e ter um hobby nas horas vagas.

Com o tempo, as caminhadas juntos se tornaram menos frequentes. O menino já conseguia se distrair sozinho e novos aparatos tecnológicos supriam os momentos de lazer. Quando surgia alguma brecha, porém, ainda iam caminhar no cemitério como décadas atrás e aquelas histórias da infância ganhavam agora novos contornos, muitas vezes bem mais macabros ou adultos que nas versões originais. Nos últimos anos, foram juntos limpar o túmulo da avó, que o senhor fazia questão de deixar impecável todos os domingos.

A última caminhada, porém, não teve mais conversas ou histórias da família.

Dessa vez, foi o neto quem guiou o caminho entre as estátuas e flores que ele conhecia desde a infância. O senhor, tão ativo e determinado, agora estava inerte com a serenidade de quem sabe que deixou a continuidade de seus exemplos. Foi impossível segurar a emoção ao fazer aquele percurso pela última vez e tentar lembrar todas as conversas que tiveram por entre aqueles túmulos frios de mármores. Seriam as estátuas testemunhas do cuidado e afinidade entre aqueles dois?

Se despediram com pesar, mas com a certeza de que esse não seria o final da história. Afinal, aquele era o lugar onde os dois sempre poderiam conversar.

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Tentando ser FASHION, aficionado pelas novidades POP e apaixonado pelo universo GEEK. “Cher acima de tudo, Madonna acima de todos.” 🏳️‍🌈🕶️