Para onde seguirá o povo de Deus?

O Brasil será um país evangélico e a mescla entre religião e política poderá já definir nossos próximos passos.

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6 min readSep 10, 2022

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O escândalo do envolvimento dos pastores Gilmar Santos e Arilton Moura nas ações do Ministério da Educação acendeu novamente o alerta sobre os limites entre religião e política brasileira, cada vez mais entrelaçados nos últimos anos.

Mesmo sem cargos oficiais no governo, os pastores fizeram cerca de 127 visitas ao MEC e favoreciam prefeituras com verbas públicas destinadas à educação, com negociações que envolviam construção de igrejas ou distribuição de Bíblias.

Com cada vez mais clima de ‘Guerra Santa’, Bolsonaro e a primeira-dama Michele pretendem apelar aos evangélicos para se manterem no poder, mesmo que isso gere uma ruptura entre os brasileiros e o começo de um ‘Conto da Aia’ brasileiro.

Os primeiros atos da campanha de Bolsonaro em 2022 já reforçam que, mais que nunca, a rede bolsonarista, sempre bem aparelhada, utilizará a narrativa de ‘Guerra Santa’ para se aproximar dos evangélicos, associando o rival Lula com ‘pactos demoníacos’, Exu (que só demonstra a ignorância sobre o tema) e disseminando o boato do fechamento de igrejas pelos ‘comunistas’, o que promete ser a ‘mamadeira de piroca’ destas eleições.

Bolsonaro, apesar de ser católico, sempre acenou para essa parcela da população com entusiasmo, como as participações na Marcha para Jesus, na indicação de André Mendonça, um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) ‘terrivelmente evangélico’, com a primeira-dama que comemora ‘falando em línguas’, na pastora Damares Alves, ex-Ministra de Estado da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e com o pastor Milton Ribeiro, ex-Ministro da Educação que acredita que os gays vêm de ‘famílias desajustadas’.

Com um visível afago para esse setor aliado, Bolsonaro chegou a ampliar a isenção de impostos aos pastores pouco antes do começo da campanha eleitoral.

Tanto esforço em agregar essa parcela da população está longe de ser apenas pela identificação com o discurso pelos ‘valores da família’, mas uma óbvia realidade populacional: a pesquisa Datafolha indica que até 2032 eles serão a maioria do país e já predominam a região Norte, inclusive entre os indígenas.

Foram os evangélicos que ajudaram a eleger Bolsonaro em 2018, já que 70% dos votos no 17 foram dessa parcela da população. Para muitos especialistas, serão eles novamente quem poderão definir os rumos das eleições em 2022, considerados como o ‘pote de ouro’ na disputa entre o bolsonarismo e um governo de oposição, com uma leve vantagem da reeleição nesse grupo.

Entre as particularidades desse grupo, diferente de muitos católicos que não pisam há décadas em uma igreja, a vivência evangélica é muito engajada e tem, tradicionalmente, a sensação de participação do um grupo, o que expande as discussões e decisões para a coletividade. Dessa forma, ao conquistar a ‘lealdade’ de uma igreja pode representar conquistar dezenas (centenas, milhares?) de famílias que frequentam assiduamente aquelas reuniões.

O que explica essa ascensão?

Gilberto Nascimento, jornalista e autor do livro “O Reino — A História de Edir Macedo e uma Radiografia da Igreja Universal” (Companhia das Letras) acredita que dois pontos foram importantes na consolidação do movimento evangélico no Brasil como força política: o domínio de canais de comunicação populares (como TV, novelas) e a chamada ‘teologia da prosperidade’, que o autor indica como uma crença da retribuição divina ainda em vida, mais ligada à lógica de consumo.

Atualizada com novas tecnologias e desejos, portanto, a prosperidade financeira seria uma gratificação de Deus para seus ‘escolhidos’, um discurso que dissemina em uma era cada vez mais pautada pelo materialismo. “Enfatizam muito a importância do bem material para a prosperidade e sucesso das pessoas. É uma coisa muito martelada nos cultos”, indica Nascimento em entrevista ao podcast Guilhotina do Le Diplomatic.

Ao ver que grande parte dos evangélicos brasileiros são formados por mulheres, negras (59%) e de baixas camadas sociais, como indica o DataFolha, faz sentido pensar como um discurso de prosperidade financeira glorificado por Deus reúna tantos devotos, que se mostram entusiasmados em seguirem essa vivência coletiva.

Existe ‘crentefobia’ no Brasil?

Vira e mexe o vídeo de Fernanda Torres declarando que tem preconceito com crente volta às timelines em tom de sátira, mas que também alimenta os discursos conservadores de que vivemos na era de ‘cristofobia’, uma ‘crentefobia’ que reforçaria que há um golpe comunista em operação para prejudicá-los. Essa sensação de ‘perseguição’ pela mídia e os artistas, seria um os motivos que inflam muitos discursos de intolerância, como se, de fato, eles estivesse em uma guerra.

Obviamente, os evangélicos não são todos iguais e não há problema algum em professar sua fé na intimidade, dentro de casa ou nos cultos. O risco, porém, é quando algumas pessoas desses grupos professam justamente contra uma sociedade com pluralismo de religiões, vivências sexuais ou escolhas pessoais, especialmente quando envolvem os direitos femininos. Acha exagero? Desde 2018 houve um aumento expressivo de ataques à terreiros.

Na distopia O Conto da Aia, obra de Margaret Atwood adaptada na premiada série da Hulu, conservadores religiosos dão um golpe de estado e transformam os Estados Unidos em uma ditadura, com fuzilamentos de quem não esteja de acordo com o rigoroso padrão religioso vigente. Alguns trechos, infelizmente, mostram como a obra, escrita em 1984, continua, mais atual que nunca: “Nada muda instantaneamente: numa banheira que se aquece gradualmente você seria fervida até a morte antes de se dar conta.(…)”

O problema, dessa forma, não são (e nunca foram) os evangélicos, mas os evangélicos bolsonaristas de um tipo muito específico: os que botam fogo em terreiro, pedem propina em ouro, negociam vacinas falsas, perseguem adolescentes grávidas em situação de vulnerabilidade e acreditam que os gays são desajustados, tudo (aparentemente) em nome de Jesus. Pessoas que não estão na política para uma melhoria social geral, mas para a imposição de uma vivência baseada em suas escolhas pessoais.

O que vem pela frente?

Não é uma preocupação do futuro, mas um alerta atual. Hoje, é a única religião com uma bancada declaradamente formada com 181 deputados, 8 senadores e que não esconde que o estado laico está ficando cada vez mais questionável.

Entre candidatos a prefeito e a vereador, 2.579 dos concorrentes utilizaram o título “pastor” no nome da campanha, o TSE indica que 2.186 candidatos que registraram seus nomes de campanha como “irmão” e 841 que usaram “irmã” na apresentação. Mais do que nunca, eles estão ativos na disputa eleitoral, como no vídeo do pastor em Botucatu que diz que quem votar em Lula não merece ‘tomar a ceia do Senhor’, por ser um apoiador do comunismo.

Michele, utilizada como super trunfo nessa discussão por ser fluente nos termos pentecostais, chegou a subir o tom de guerra santa ao dizer que antes o governo era ‘consagrado aos demônios” e que eles seriam os ‘escolhidos de Deus’, o que, segundo Esther Solano, professora da Unifesp em entrevista para o Ilustríssima Conversa, é uma afirmação perigosa, afinal, se Bolsonaro é um eleito divino, logo todas as ações seriam justificadas para manter o poder, não aceitando outro resultado.

Para a pesquisadora, é hora também da esquerda se apropriar do discurso da família, especialmente pela ótica do cuidado com quem mais precisa, o que seria encarado entre os religiosos com um importante valor cristão. “Podemos integrar a família como um vetor de políticas públicas, não no lado conservador de bolsonaristas”, orienta Solano. “Temos que começar a tomar essa briga, a esquerda deveria ter mais conexão com esse campo popular, tirar a hegemonia bolsonarista entre os evangélicos”.

Apesar do cenário, ainda há esperança. O Datafolha indica que apesar dos esforços em paparicar essa base, Bolsonaro passa longe da popularidade de 2018, mesmo que apareça numericamente na frente de Lula entre os evangélicos. Entre as explicações dessa dificuldade é que apesar da identificação com as pautas sociais, o desempenho do governo na crise econômica e sanitária, entretanto, afetaram diretamente a rotina desse grupo.

“Ninguém se considera feliz ralando a vida toda, sem conseguir nada, passando dificuldades. Vem a igreja com a teoria da prosperidade e o cara entende que Deus não quer ele pobre daquele jeito”, indica Marco David no podcast do projeto Querino. Abandonados pelo estado, não é estranho que a parcela mais pobre (e negra) tenha se aproximado desse discurso e, no entanto, é a parcela que mais sofreu com a quarentena, com a falta de suporte social nos últimos anos.

O Brasil do futuro, mais do que nunca, dependerá da vontade dos evangélicos e estar atento à essa mistura entre religião e política não é mais uma sátira, mas uma preocupação legítima. Afinal, como orienta a máxima cristão, amar ao próximo como a si mesmo deveria ser a base de uma empatia geral, não apenas para poucos selecionados, ou que frequentam a mesma igreja.

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Tentando ser FASHION, aficionado pelas novidades POP e apaixonado pelo universo GEEK. “Cher acima de tudo, Madonna acima de todos.” 🏳️‍🌈🕶️