Parasita, desigualdades e sorvete caro.

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4 min readJan 31, 2020

Sábado à noite, decidimos parar numa dessas sorveterias da moda em que o copinho custa o preço de uma refeição completa. Paredes brancas, plantas de plástico, livros antigos enfileirados e latinhas de leite decoravam o ambiente meticulosamente calculado para ser elegante e não ter personalidade suficiente para desagradar ninguém. Nas mesas, casais de meia-idade olhavam o celular entre colheradas do “gelato italiano”.

Nenhum sabor com nome estrangeiro (e legendas dos ingredientes abaixo) me desperta interesse e decido só beber alguma coisa enquanto espero meus amigos se decidirem. “Não temos aqui”, responde a moça do caixa quando peço um refrigerante, me olhando como se tivesse cometido um sacrilégio naquele ambiente.

Achei melhor sentar antes de cometer outra gafe, até que uma figura me tira da inércia: uma criança se esgueira rapidamente pela porta e se esconde embaixo das mesas, para que não fosse vista pelos funcionários. Cutucando as pessoas, o menino se apresentava, dizia ter 5 anos e perguntava se alguém queria comprar um dos paninhos que carregava ou um sorvete, para que ele pudesse ir embora.

Ao centro, uma menina com amigos, possivelmente de outra cidade, tenta explicar a situação como se fosse uma atração turística corriqueira. “Eles brotam por aqui. Meu pai falou que enquanto não vendem os paninhos nem podem voltar para casa. Fiquei chocada quando soube disso”, explica. Na outra mesa, um casal compra um sorvete para a criança, tentando resolver rapidamente a situação antes de ir embora.

Aquele ambiente outrora maculado, planejado para ser extremamente agradável, agora era a representação de um gigantesco abismo social e as colheradas do sorvete caro eram agora, visivelmente, constrangedoras.

Parasita não é só uma ficção instigante.

Parasita de Joon-ho Bong ganhou a mídia e interesse geral por aparecer nas principais listas de “Melhores de 2019” e conseguir a façanha de ser o primeiro filme sul-coreano a concorrer ao Oscar de Melhor Filme, além de Melhor Filme Estrangeiro, categoria que possivelmente irá ganhar.

Na linha das obras do diretor Park Chan-Woo, dos impactantes Oldboy (2003_ e A Criada (2016), o longa vai gradualmente nos envolvendo com algumas situações absurdas até reviravoltas que nos deixam verdadeiramente angustiados. Caso ainda não tenha assistido, quantos menos souber será melhor e de maneira geral, a trama acompanha duas famílias coreanas em diferentes condições sociais que têm suas rotinas entrelaçadas pouco a pouco.

O que torna o filme tão envolvente e universal é, justamente, não cair em clichês e evitar aquele cenário fácil de luta de classes, sem vilões ou heróis evidentes. Nem os patrões riquíssimos são maus ou exploradores e, na verdade, se esforçam em ser agradáveis na maior parte do tempo. O grande problema aqui não é uma pessoa em específico, mas uma estrutura social que mantém pessoas numa mesma cidade separados em bolhas, anestesiados pelos problemas que ocorrem algumas ruas mais distantes ou, no caso, dentro da própria casa.

Em uma época em que vemos nas manchetes as manifestações globais questionando justamente a “evolução” a todo custo do neoliberalismo e da globalização, mesmo com uma iminente crise ambiental e social, Parasita critica um sistema que segrega pela capacidade de consumir, ao mesmo tempo vende uma ilusão de ascensão social pelo estudo e esforço, em que há uma simbiose doentia entre os extremamente ricos que mantém pessoas necessitadas orbitando ao redor deles, sejam como bajuladores ou aproveitadores, e dos paupérrimos que tentam sobreviver com as oportunidades que aparecem, mesmo que eticamente questionáveis.

Os dois extremos da pirâmide se nutrem e destroem.

Ao ver aquela criança escondida entre as mesas a poucos passos dos gelatos tão disputados, foi impossível não pensar que as situações de desigualdades criticadas no tragicômico filme sul-coreano acontecem diariamente, mesmo que já estejamos anestesiados e acostumados a encará-los como parte do cenário urbano.

Assim, mesmo desconfortáveis e com pesar pelas injustiças, seguimos na bolha que acredita que usar canudos de papel já é o bastante para salvar a natureza(mas não deixa o carro na garagem nem para cruzar a rua), que ocasionalmente faz uma doação on-line para uma campanha social da TV, que compartilha a foto de um animalzinho resgatado nas redes sociais e que diz não ter nenhum tipo de preconceito, mas segrega diariamente pela capacidade de consumo, pelos bairros frequentados, pelos meios de transportes escolhidos e principalmente, pelas oportunidades ofertadas.

Seguimos alheios as hierarquias sociais, aos muros urbanos e aceitamos calados que os poderosos desmantelem o meio ambiente, a cultura, educação e os direitos das minorias em nome de um suposto avanço econômico. Contando que o dólar baixe até as férias, quem sabe vale a pena até abrir mão dos direitos trabalhistas, democráticos e humanos?

Aceitamos tudo, contanto que tenhamos o bastante para tomar um gelato de vez em quando e o suficiente para ignorar o parasita que vive embaixo da mesa, em nossa casa e dentro de nós.

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Tentando ser FASHION, aficionado pelas novidades POP e apaixonado pelo universo GEEK. “Cher acima de tudo, Madonna acima de todos.” 🏳️‍🌈🕶️