Pocho Lepratti: el ángel de la bicicleta
O ativista Pocho Lepratti foi uma das vítimas assassinadas pela repressão policial durante os protestos que marcaram o mês de dezembro de 2001 como um dos períodos mais conturbados da história argentina; enquanto sua história ganhou o mundo após a canção-homenagem do trovador León Gieco, sua luta contra as injustiças sociais e as revoltas populares contra o abuso de poder da polícia, que se multiplicaram com sua morte, continuam mais presentes do que nunca
O dia 19 de dezembro de 2001 começou de forma rotineira para Claudio Hugo Lepratti, ou Pocho, como era conhecido. Pela manhã cedo, partiu de bicicleta desde o bairro Ludueña em direção à Las Flores, atravessando a cidade de Rosário, para começar mais um dia de trabalho na escola 756. Ajudante de cozinha (além de voluntário comunitário e militante político), Pocho picava tomates e cebolas para preparar o menu do dia quando tudo mudou de rumo. Entre o aroma que despertava o apetite das crianças e as usuais piadas de Graciela Capelano, cozinheira chefe, os sons de disparo e de tumulto que vinham da rua deixavam claro que aquele, ao fim, não era mais um dia como qualquer outro.
Em recessão desde 1998, com uma alta taxa de desemprego e trabalho informal, após uma década de transformações econômicas baseadas na conversão do peso e do dólar, privatizações e flexibilização de leis trabalhistas, seguindo as pautas do Consenso de Washington e as instruções do Fundo Monetário Internacional (FMI), a Argentina começava a sofrer o impacto negativo de suas medidas neoliberais. Mas foi no dia 3 de dezembro de 2001, com a implementação do “Corralito” — uma imposição do Governo que limitava os saques de dinheiro em efetivo dos bancos em 250 pesos ou dólares semanais como meio de frear a inflação e a desvalorização da moeda argentina — que a situação saiu de controle.
A medida impedia, sobretudo, que as pessoas que atuavam na economia informal (45% dos trabalhadores) pudessem receber seus pagamentos. Para conter a indignação popular que tomava as ruas de todo o país, no dia 19 de dezembro o então presidente, Fernando De la Rúa, anunciou em rede nacional de televisão o decreto do “estado de sítio”, um mecanismo legal que proibia a reunião de pessoas em espaços públicos e permitia prisões sem causa e intervenção do poder judicial.
Ao buscar coibir a revolta da população impedindo as manifestações, acabou por multiplicá-las, inflamando os gritos de protesto. O resultado foi um dos casos mais violentos de repressão policial da história. De la Rúa renunciou e fugiu do país de helicóptero, enquanto nas tumultuadas ruas de Buenos Aires e de Rosário, segunda maior cidade do país, os dias 19 e 20 de dezembro ficaram marcados com um saldo de centenas de feridos e 39 pessoas assassinadas, entre elas Pocho.
Alarmado pelos sons de armas de fogo que aumentavam de intensidade, junto a outros funcionários da escola, Pocho correu ao telhado. Ao ver o avanço de um comboio de policiais recém-chegados de Arroyo Seco, a 30 km de Rosário que, com ordens de dispersar os manifestos populares, disparavam contra um grupo de manifestantes próximo a escola, o ajudante de cozinha ergueu a voz:
“Paren de tirar, hijos de mil putas, aquí solo hay pibes comiendo!”
Essas foram as últimas palavras de Pocho, que morreu da forma como escolheu viver: defendendo as crianças pobres de Rosário. Embora uma bala certeira tenha atingido sua garganta, sua voz ecoou.No exato momento que Pocho nos deixou, nasceu o “Anjo da Bicicleta”.
“Pochormiga”
O neologismo que dá nome a um dos documentários dedicados a Pocho , não surgiu ao acaso. Incansável como uma formiga, o “anjo da bicicleta” dedicou a vida ao trabalho voluntário com jovens e crianças pobres da região.
Primogênito em uma família de seis filhos, Pocho nasceu em Concepción del Uruguay, Entre Ríos, no dia 27 de fevereiro de 1966. Após o ensino fundamental na Escola Nº 30 de Concepción del Uruguay, fez o ensino médio no Colégio Santa Teresita, pertencente à ordem salesiana, com a qual fortaleceu vínculos ao longo do tempo, tendo, inclusive entrado no seminário.
Sem querer seguir a carreira religiosa, Pocho abandonou a vida de seminarista, mas nunca o sentimento de compartilhar esperança e ajudar os mais necessitados — princípio comum aos salesianos. Marchando para Rosário, passou a viver no bairro de Ludueña onde deu aulas de Teologia na escola do padre Edgardo Montaldo, além de coordenar oficinas para crianças. “Pocho consagró su vida a chicos que corrían el peligro de perder sus sueños […]”, declarou Montaldo em uma de suas falas no documentário “Sueños alados”, que destaca a continuidade da obra social de Lepratti pelas mãos de novos voluntários.
Além do trabalho junto a Montaldo, Pocho realizou muitas outras atividades com os jovens de Rosário, como a coordenação das revistas El Angel de Lata e os jornais La Nota e La Notita, o desenvolvimento de oficinas e cursos de formação, além da criação de mais de uma dezena de grupos de jovens, dos quais se destaca La Vagancia. “La Vagancia era un grupo de jóvenes que nos juntábamos para hacer cosas porque no había actividades ni propuestas para los adolescentes y los jóvenes en la villa. Entonces nos empezamos a juntar, primero para ir a algún campamento, para ir a La Florida los domingos, hacer tortas fritas, tomar mate y charlar”, explicou Pocho.
Além disso, Pocho é lembrado ainda por sua militância política, tendo participado da luta pelos direitos dos trabalhadores, atuando como delegado de Base da Central de Trabajadores de la Argentina (CTA) e da Asociación de Trabajadores del Estado (ATE), onde Celeste Lepratti, sua irmã, seguiu seu exemplo, militando e dando aulas.
Mãe de Simon Claudio (em homenagem ao tio) e Severino León (em homenagem a Gieco), hoje Celeste é vereadora e docente pela “Frente Social y Popular” onde luta ora pelas motivações herdadas de seu irmão mais velho, ora pela justiça em nome dele, uma vez que muitos dos policiais envolvidos no caso Pocho nunca foram condenados.
A luta e a memória que seguem vivas nas atividades e nos nomes dos filhos de Celeste, bem como com os grupos de jovens semelhantes a “La Vagancia”, e em canções políticas como as de León Gieco, nunca hão de ser esquecidas. Hoje, escolas, bibliotecas, centros culturais, uma rua, e milhares de paredes levam o nome de Claudio Pocho Lepratti.
El ángel de la bicicleta
Se as paredes de Rosário, sobretudo, do bairro Ludueña, nunca deixaram de clamar em letras garrafais a consciência de que “Pocho vive!”, foi com o lançamento da canção “El ángel de la bicicleta”, música de León Gieco, que a história do ativista e voluntário comunitário se tornou conhecida para o mundo.
Bom contador de histórias e famoso por suas canções de temas sociais e personagens políticos, o trovador argentino León Gieco, enquanto se dirigia a um de seus shows marcados em Rosário, não pôde deixar de prestar atenção nas inúmeras alusões à Pocho, sua bicicleta alada e suas formigas, incrustadas nas paredes da cidade. “Una vez que fui a tocar a Rosário, unos meses después de la caída de De la Rúa, me llamó la atención que había pintadas en las paredes de bicicletas con alas. Me contaron que eso era por Pocho Lepratti, que andaba en bicicleta, y esa noche le dediqué el concierto”, relembrou Gieco, em entrevista concedida ao jornal Página/12. Em fevereiro de 2004, após um recital na cidade de Cólon, o cantor prometeu a Celeste Lepratti escrever uma letra em homenagem ao seu irmão.
Três meses depois da promessa, a demo de “El ángel de la bicicleta” já circulava entre pessoas e organizações ligadas a Pocho, incluindo-se também como trilha sonora no já citado documentário “Pochormiga”, de Francisco Matiozzi. A canção, que contou com musicalização do Pianista Luis Gurevich, participação do grupo Pibes Chorros (tocando o teclado característico da “cumbia villera” e o baixo), além de David Kemper, baterista de Bob Dylan, foi lançada como single do álbum “Por favor, perdón y gracias” (2005).
Mais tarde, a música seria regravada pelo grupo de punk rock argentino Attaque 77, em seu disco-homenagem “Gieco Querido”. A banda Vocal de Los Pueblos também renderia uma homenagem ao tema, incluindo uma versão própria no CD “Un extraño brillo en la mirada”.
“Pocho Vive” já não era apenas mais uma mensagem nos muros. De Rosário à Terra do Fogo, até os Chacos, e daí cruzando as fronteiras, as formigas se multiplicaram e Pocho está em sua bicicleta alada pedalando lá do alto, frente a cada uma delas.
Fardas x Formigas
A covardia policial não se limitou a tombar um homem desarmado que apenas protegia um grupo de crianças. Uma testemunha encontrou e entregou o cartucho laranja (usado em balas de armas de fogo) que atingiu Pocho aos investigadores, mas eles entregaram à Justiça um cartucho verde (usado em balas de borracha); ademais, após fugirem da cena, os policiais balearam o próprio carro alegando que alguém no telhado da escola estava atirando neles, o que os obrigou a reagir.
A perícia, por fim, desmentiria os policiais comprovando que os disparos haviam sido realizados no nível do solo. Muito embora as investigações tenham comprovado a farsa, somente Esteban Velazquez, o policial que assassinou Pocho, foi condenado. Os policiais Marcelo Arrúa, Rubén Pérez, Daniel Braza, Roberto De la Torre e Carlos Alberto de Souza, inicialmente condenados por falsidade ideológica e encobrimento agravado (visto que atiraram contra a própria viatura), acabaram em liberdade por “falta de provas”. E as pessoas que comandaram e permitiram a operação nunca sequer foram nomeadas.
Ao mesmo passo que exemplos como o de Pocho se multiplicam, de outro lado a corrupção e a repressão policial também o fazem e atravessam fronteiras. Meses antes da Intervenção Militar do Rio de Janeiro, que tem sido condenada por inúmeras entidades de defesa dos Direitos Humanos, o El País fez uma excelente reportagem, criando um panorama geral do abuso do poder policial no mundo para conter manifestações como à de 2001 na Argentina, mostrando que a história segue se repetindo.
Com um toque amargo de ironia, Velazques, o assassino de Pocho, após cumprir pena, passou a atuar na militância da Proposta Republicana (PRO), partido de Mauricio Macri. Da mesma forma, um dos convidados presente nas primeiras filas da cerimônia de posse do atual presidente argentino foi nada menos que Fernando de La Rúa. “El Pro es el mismo espacio político que tiene en sus filas militantes a Esteban Velazquez, el policía que le disparó a Pocho. Era el responsable en tiempos de campaña de un local muy importante del PRO en Arroyo Seco. Y cuando asumía el actual presidente Macri, estaba como invitado en las primeras filas, Fernando de la Rúa. Pasaron distintos gobiernos en lo provincial y nacional, y hay una responsabilidad muy grande compartida por todos“, protestou Celeste Lepratti, em entrevista concedida para o El Disenso, após a vitória de Macri.
As chocantes imagens dos protestos contra a reforma da previdência na Argentina, que estamparam jornais em todo o mundo em dezembro de 2017, deixavam claro que, com Macri, o velho fantasma da repressão policial que manchou a história do país no começo do século XXI estava de volta. Os números levantados pela Coordinadora contra la Represión Policial e Institucional (Correpi) confirmaram isso: em dois anos de governo do PRO, a polícia argentina matou em média mais de uma pessoa por dia, o número mais alto visto desde a ditadura. “As mobilizações populares sempre levam os governos a matarem mais gente para tentar deixar a população sob controle”, declarou a advogada e idealizadora do Correpi, Maria Del Carmen Verdú em entrevista para a Ponte.
À história de Pocho somam-se: os 725 mortos pela polícia militar da Argentina nos últimos dois anos; o assassinato emblemático de Michael Brown em Ferguson, nos Estados Unidos, em 2014; os detidos ilegalmente em Oaxaca, no México, em 2006; as injustiças cometidas contra Rafael Braga nos famosos protestos de 2013; e o recente caso da vereadora Marielle Franco, ativista contra a repressão policial e crítica da Intervenção Militar do Rio de Janeiro, executada na última terça-feira (14/03), entre tantos outros.
A luta de todos estes ainda não terminou. “Voy a cubrir tu lucha más que con flores”, invoca um dos versos de Gieco. Que a canção jamais se cale. Pocho, Marielle, Braga, Brown, Mendes, Jara seguem vivos.