Fábio Becker Loppe
Discolonizando
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9 min readMar 26, 2018

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A antipoesia de Nicanor Parra

Em janeiro, aos 103 anos, o irmão da folclorista chilena Violeta nos deixou, e finalmente sua primeira obra deve ser traduzida e publicada por aqui; praticamente desconhecido no Brasil, o conterrâneo de Neruda foi um dos mais inventivos artistas de nosso continente, apresentando ao mundo um novo modo de criar e desconstruir a poesia

Coleção de Arquivo do escritor da Biblioteca Nacional do Chile— Foto: Divulgação CP

“Há mais ídolos do que realidades no mundo”. A máxima encontrada no prefácio de “Crepúsculo dos Ídolos ou como se filosofa com o martelo” é a síntese perfeita do espírito e das convicções de Nietzsche. O homem que afirmou que deus estava morto, se lança, nessa obra, contra todos os ícones que estruturavam o pensamento moderno: desde a moral cristã até os escritores em voga, das correntes políticas aos filósofos e aos pensadores que o antecederam. O “martelo” do subtítulo era uma analogia à ferramenta que golpearia e quebraria os ídolos, comprovando que todos eram ocos. Algumas décadas após sua morte, frases como “El mundo es lo que es, y no lo que un hijo de puta llamado Einstein dice que es” e “La esquerda y la derecha unida jamás serán vencidas”, estampavam publicações e exposições em Santiago, no Chile. Estava claro que o martelo do filósofo alemão tinha passado de mãos.

Nicanor Parra, poeta chileno nascido em 1914, se mostraria o maior dos iconoclastas de nosso continente, adicionando ao espírito de Nietzsche duas coisas que certamente faltavam ao filósofo: humor e auto-contestação. E foi com essa fórmula, que Parra gravou seu nome no mundo da literatura: afinal, para além das críticas sociais, foi o primeiro poeta a desconstruir a própria noção da poesia, o que lhe rendeu o título de “pai da antipoesia”.

“Una familia que es un patrimonio cultural”

Registro de Violeta e Nicanor Parra — Foto: Divulgação

É assim que a página do Napster, intitula e homenageia a Família Parra, sem resquícios de exagero. Entre os que defendem o talento como um dom e os que acreditam que se trata de prática e aperfeiçoamento, por ceticismo, estou com o segundo grupo, mas são casos como o dos Parra que nos fazem duvidar de nossas certezas. Por mais de 100 anos, os herdeiros do professor de música Nicanor Parra Parra e da camponesa Clara Sandoval Navarrete, que tinha por hobbie cantar e tocar violão, de alguma forma herdaram e compartilharam o gosto e o talento artístico dos pais, nutrindo a história da cultura chilena de um modo que nenhuma outra família já fez.

Além do primogênito, Nicanor, e de sua irmã Violeta (sem dúvida o nome mais conhecido fora do país), a árvore genealógica da família continua a alimentar a cultura chilena com seus frutos. Entre os nomes conhecidos estão Isabel e Ángel, filhos de Violeta, que foram peças importantes na construção do movimento “Nueva Canción Chilena”, até os nomes mais recentes como Javiera do grupo Javiera y Los imposibles e Ángel (neto de Violeta), que fez parte da banda de rock Los Tres. Destacam- se ainda, La Negra Ester, e os irmãos de Nicanor, os folcloristas Roberto, Eduardo e Lalo, entre outros.

Como o próprio Nicanor declarou, uma das explicações para o sucesso da família de artistas e para o incentivo mútuo que sempre existiu entre todos eles, vem da infância pobre compartilhavam. Violeta e alguns dos irmãos, inclusive, cantavam e tocavam na rua, ainda crianças, para ajudar com as despesas da casa. “Vivíamos los diez en una sola pieza, de mi niñez, que transcurrió a pie pelado, jugando con los niños de la población en los basurales y el barro, nace todo el sentido de la muerte, todo el dolor, toda la protesta de mi poesía. Y cada vez estoy recuperando más mi resentimiento de clase, que debe ser la fuerza motriz de mi poesía”, recordou o escritor em entrevista concedida ao jornalista José Danoso em 1960, explicando como sua infância e o cotidiano das comunidades carentes se refletem em seu trabalho.

Incentivado como os demais irmãos a dedicar-se a arte popular, Nicanor Parra foi, no entanto, o único membro da família que seguiu na escola além do ensino fundamental. Matriculado no “Liceo de Hombres de Chillán”, Nicanor teve a oportunidade de ler poetas modernistas e chilenos como Manuel Magallanes Moure, nos quais se inspirou para escrever seus primeiros poemas. Marcados pelo barroquismo e sentimentalidade que encontrou nessas primeiras leituras, seus primeiros versos seriam descritos mais tarde, por ele mesmo, como “muito pomposos e cheios de floreio”.

Em paralelo aos estudos universitários e posterior emprego de professor universitário de matemática e física, Nicanor iniciou sua carreira de escritor. Em 1937 publicou o primeiro livro: “Cancionero sin nombre”. Mas foi em 1954 que lançou a obra que marcaria seu estilo e seu nome na história da literatura de fala espanhola: “Poemas y antipoemas”.

Inspirado em nomes como Charles Chaplin, Franz Kafka, Ezra Pound e William Blake, os textos dessa obra se desgarraram de todos os vestígios do romantismo e dos exageros do que Parra escrevia e lia na adolescência; seu mais novo e famoso livro era caracterizado pela linguagem coloquial, ironia e umas pitadas de humor negro. Nascia a antipoesia.

A poesia desce do Olimpo

Para além da escrita, Parra era famoso por levar suas palavras e obras para além do papel

“A arte precisa assumir a sua própria crise, a própria época, como uma condição essencial, e, neste sentido, precisa definir-se como uma antiarte. […] Cabe à ela, se não quiser perder sua autenticidade e legitimidade como expressão do homem e da sociedade, não fazer concessão aos modismos das descobertas puramente formais, aos padrões do gosto ‘digestivo’ e aos juízos estéticos alienados.” Talvez nenhum outro artista da América Latina exemplifique melhor esse conceito de arte retirado de “A arte na era da indústria cultural”, livro do filósofo Jayme Paviani, do que Nicanor Parra.

Em contato constante com a vida acadêmica e com os livros, Parra acreditava que a erudição universitária era excludente e contratava com a vida das ruas, com a vida cotidiana. Em oposição a elitização da cultura que permeava os círculos literários e as universidades, ele invocava a “cultura popular” para falar das banalidades do dia a dia. Com o lançamento de “Poemas y Antipoemas”, o escritor dava por finda a herança dos “floreios e pomposidade” de seus conterrâneos poetas, para alcançar quem mais estimava: o “homem comum”.

“Los poetas bajaran del Olimpo”, diz a estrofe de seu poema “Manifesto” (com o qual introduz a antipoesia ao mundo), ou seja, os poetas já não estavam isolados falando entre si e para si, involucrados como deuses distantes do povo; afinal a poesia não devia ser uma expressão artística de uma classe privilegiada, mas uma expressão do todo e para todos. Para ele a poesia não era “objeto de lujo, sino un artículo de primera necesidad.”

De charges à objetos físicos, a antipoesia era cotidiana e antipoética até nos meios pelos quais se expressava — Imagens: Divulgação

Se a poesia da época era repleta de floreios, a antipoesia era objetiva; se a poesia tinha uma linguagem arcaica que a limitava a discussões de intelectuais, a antipoesia usava do coloquialismo para se fazer entender pelas pessoas da rua; se a poesia respondia a formas estruturais específicas, a antipoesia era libertária não só na escrita como se estendia para além dos livros, com colagens de jornais, uso de objetos físicos, entre outros.

Em entrevista para a revista “Algo Novo”, em 1966, Parra destacou a simplicidade e o caráter “anárquico” de sua arte como características essenciais da “antipoesia”. “La caracteristica del antipoema es la libertad. No tiene nada que ver con literatura, sino con la vida. Se escribe en lenguaje directo y la ironia y el humor son condiciones básicas.”

Epitáfio

Uma das últimas fotos de Nicanor Parra em sua casa em Las Cruces — Foto: Divulgação

Gracias a la vida que me ha dado tanto”, entoou o coro de presentes no funeral de Nicanor, no dia 23 de janeiro deste ano, atendendo assim, um de seus pedidos póstumos: despedir-se de nosso mundo, com uma homenagem a sua irmã, com quem se encontraria em breve.

Assim partiu Parra: deixou a vida, agradecendo cada um de seus longínquos 103 anos. Mas, para além, deste e de outros emocionantes pedidos atendidos, havia outro detalhe, orquestrado por Parra para seu cortejo fúnebre, que apesar de simples, chamou a atenção de todos: acima de uma manta costurada por sua mãe, que ele escolheu para cobrir seu caixão, Nicanor pediu para fixar uma pequena nota de papel.

O antipoeta, como últimas palavras (escritas), deixava para os presentes e para todos nós uma última amostra de seu característico escárnio e bom humor: “Voy y vuelvo”, dizia o papelzinho em letras de forma.

“Los Parecidos”, cueca (gênero musical chileno) de Roberto Parra, também irmão do poeta, foi outra das canções entoadas no velório; destaque para a participação da presidenta Michelle Bachelet

Com Uma das cenas que marcaram a despedida do poeta, reverenciando sua importância para o povo chileno, foi a participação da presidenta Michele Bachelet, que se juntou ao coro cantando “Los Parecidos”, de Roberto Parra, também irmão do poeta.

Legado

Nicanor Parra em sua casa de Santiago, em 1995 — Foto: Divulgação

Com um legado de mais de 20 obras lançadas e reconhecido com o Prêmio Cervantes (principal prêmio para autores hispanófonos do mundo) de 2011, oferecido pelo Ministério da Cultura da Espanha, Nicanor é, no entanto, praticamente desconhecido por nós brasileiros. Mais de 80 anos depois de “Cancionero sin nombre”, seu livro de estreia, o Brasil finalmente prepara sua primeira publicação de Nicanor Parra. A edição, agora póstuma, de sua primeira antologia de poemas será lançada pela editora 34, no segundo semestre deste ano. É a oportunidade de o público brasileiro ter acesso a uma amostra do talento do poeta chileno, cujo muitos críticos, como o escritor argentino Ricardo Piglia, consideram maior que seu conterrâneo Pablo Neruda.

“Neruda es el poeta de las efemérides; Parra es el poeta de todos los días” (Rciardo Piglia)

Enquanto a edição em português não chega é possível conhecer um pouco mais de Nicanor Parra pelos filmes e vídeos sobre sua vida e obra. Dentre elas, destacam-se “Nicanor en Nueva York “ de Jaime Barros, “ Nicanor Parra “ de Guillermo Kahn, o documentário de Claudio Girólamo, além dos poemas lidos pelo autor, disponíveis no Youtube.

Os objetos do cotidiano são elementos presentes na antipoesia

Alguns poemas

Última poesia de “Poemas y antipoemas” declamada pela voz do próprio autor

Advertência ao leitor

(tradução: Antônio Cabrita)

O autor não responde pelas moléstias que podem

provocar os seus escritos:

ainda que lhe pese

o leitor terá de dar-se sempre por satisfeito.

Sabelius, que para além de teológo foi um humorista consumado,

depois de ter reduzido a pó o dogma da Santíssima Trindade

respondeu acaso pela sua heresia?

E se chegou a responder, como o fez?

De que forma descabelada!

Baseando-se em que cúmulo de contradições!

Segundo os doutores da lei este livro não deveria publicar-se:

A palavra arco-íris não aparece nele em nenhuma parte,

Menos ainda a palavra dor,

A palavra torcuato.

Mesas cadeiras sim, figuram a granel,

Ataúdes, clipes, material de escritório.

O que me enche de orgulho

Porque no meu entender o céu está a cair aos bocados.

Cronos

(tradução: Carlos Machado)

Em Santiago do Chile

Os

dias

são

interminavelmente

longos:

Várias eternidades num só dia.

Nos deslocamos em lombo de mula

Como os vendedores de cochayuyo:

A gente boceja. E volta a bocejar.

No entanto as semanas são curtas

Os meses passam a todo vapor

Eosanosparecequevoaram.

Antes me parecia tudo bem

(tradução: André Merez)

Agora tudo me parece mal.

Um telefone velho de campainha

bastava para me fazer o sujeito mais feliz da criação,

uma poltrona de madeira — qualquer coisa.

Domingo de manhã

ia ao mercado persa

e voltava com um relógio de parede

- digo, a caixa do relógio -

e suas respectivas teias,

ou com uma vitrola desmantelada,

a minha cabana em La Reina,

onde me esperavam o herdeiro

e a Senhora sua mãe na época.

Eram dias felizes,

ou, pelo menos, noites sem dor.

Clique AQUI e confira um acervo de poemas de Nicanor Parra, disponibilizados pela Universidad de Chile, onde o poeta foi professor de física e matemática.

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