Economia

A (re)existência do empreendedorismo feminino periférico

A luta de mulheres que superaram os medos e os preconceitos para conseguir empreender

Victoria Rodrigues
Vozes em Travessia

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Ilustração: Rawpixel/Freepik

“Remover para promover”, esse foi o discurso usado pelo governo federal na década de 1960 para a remoção da população negra e pobre do centro da cidade de Porto Alegre. Com isso, iniciou-se o movimento de higienização e gentrificação dos locais urbanos. Moradores de guetos e malocas foram retirados de suas casas e jogados o mais longe possível das áreas centrais da capital. Assim, no auge do embranquecimento das regiões urbanas, nos anos 1960, foi criado o bairro Restinga, localizado no extremo sul de Porto Alegre, que foi o destino de grande parte dos moradores que tiveram suas casas removidas durante o processo sombrio de segregação dos pobres periféricos.

Desde sua criação, a Restinga é vista como um ambiente marginalizado nos jornais e telejornais, sempre aparecendo na página policial. Em um bairro caracterizado pela violência e pelo tráfico de drogas os moradores enfrentam uma luta diária para resistir dentro da comunidade.

Se engana, no entanto, quem pensa que a Restinga se resume só pela violência e por marginais. Segundo o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre os 51.569 habitantes da comunidade, 27.184 são mulheres, e são elas sozinhas que, algumas vezes, precisam sustentar suas famílias. Assim, com a dificuldade de conseguir emprego, mulheres periféricas viram no empreendedorismo uma fuga para a falta de trabalho.

“Eu trabalho por conta há 10 anos. Primeiro trabalhava com outra pessoa, eu era comissionada, daí venderam o prédio onde a gente tava, e eu resolvi arriscar melhorar o meu salário e deu certo. Então eu aluguei um espaço, uma sala, dividi com outra pessoa e, automaticamente, o salário triplicou”, relata Luciana Perez, proprietária de um salão de beleza, o Espaço Lua na Restinga.

Por ser mulher periférica, a resistência se multiplica. O preconceito e o medo de ser mulher e morar em um ambiente que é discriminado socialmente pode dificultar na hora de começar o negócio. “Eu tive um receio no início, porque eu escutava as pessoas dizerem que restingueiro não faz unha. Mas, aí, eu comecei a trabalhar e descobri que restingueiro faz unha sim e vi que o retorno foi imediato”, diz Luciana. Hoje, ela atende em torno de dez pessoas por dia e fala que tem todos os seus horários preenchidos, o que faz com que consiga se manter com os clientes que atende. Além disso, conta atualmente com uma sócia, que também é manicure, e uma funcionária, que é cabeleireira.

O preconceito e a resistência na comunidade

Recepção clínica DentoSul Restinga / Foto: Victória Rodrigues

Apesar das dificuldades, as moradoras insistem em manter seus negócios na periferia, em função da comunidade fazer parte das suas histórias, vidas e vivências. Roberta Capitão, protética e proprietária das clínicas odontológicas DentoSul, conta que decidiu abrir uma clínica na Restinga pela necessidade de ter um consultório no bairro. “A minha vida toda como moradora da Restinga, eu via que precisava pegar um ônibus, se deslocar até o centro pra consumir os serviços de lá, e isso me incomodava profundamente. Então, eu pensei em abrir uma clínica aqui na Restinga e hoje já faz 16 anos que eu tenho a DentoSul”, completa a protética. Apesar de trazer profissionais de fora, como professores de pós-graduação, contar com quatro funcionários e atender 40 clientes por dia, Roberta relata os diferentes tipos de discriminações que sofreu ao longo da sua jornada no empreendedorismo feminino periférico, e diz que o preconceito já está vinculado à história do bairro.

“O preconceito vem permeando sempre na história. O primeiro deles é que os dentistas não queriam atender aqui por medo de serem assaltados. Depois disso, as pessoas não queriam pagar o preço que nós cobrávamos aqui, também por uma ideia que a população tem de que, se tá na Restinga, ou tem que ser de graça, ou tem que ser um serviço inferior”, conclui ela.

Roberta não foi a única que sentiu na pele as hostilidades das pessoas de fora quando pensava em abrir seu projeto. Millene Gonçalves, dona do café Casa de Chá Sabor e Arte, relata que entrega encomendas de fora do bairro, porém é visível a antipatia com que enxergam a periferia. “Eu atendo muitas pessoas fora do bairro, muitas mesmo. Mas várias delas não vêm aqui por ser na Restinga, por causa da marginalização que a comunidade sofre, então as pessoas acabam não entrando aqui para conhecer meu espaço”, conta.

Além disso, Millene critica o foco que os jornais dão às matérias sobre a periferia. Mesmo com os avanços que passou, como a construção de um hospital no bairro, por exemplo, a Restinga sempre acaba aparecendo apenas nas páginas policiais. “Quando tu abre o jornal e fala de Restinga, fala de tráfico, polícia, morte, enfim, e não sai nenhuma coisa boa mostrando sobre os comércios aqui dentro, coisas assim. Mas a gente tem muita coisa boa aqui dentro”, relata.

Machismo cultural x empoderamento

O Sebrae aponta que as mulheres, no Brasil, têm uma taxa de empreendedorismo superior a dos homens: 15,4%, enquanto a masculina é de 12,6% a pesquisa aponta também que as mulheres abrem mais negócios por necessidade que os homens. Mesmo assim, um fator que atinge a mulher quando ela pensa em empreender é o machismo, que já está impregnado na cultura brasileira.

“São as pequenas coisinhas sabe, por exemplo, de chegar um fornecedor e querer falar com o dono da empresa, é uma coisa cultural isso, não é nem por eu ser da comunidade. Não, não é um dono, é uma dona. Sou eu, Roberta”, conta a protética.

Assim, fora o preconceito com a vila, a mulher periférica tem que vencer o medo para conseguir iniciar uma carreira no empreendedorismo. Para dar o primeiro passo, é preciso ter coragem. “No início, pra abrir, a gente tem, por ser mulher, um pouco de receio, de medo né, daquela coisa de tu encarar algo sozinha, entende? Mas eu abri, e em outubro fechou um ano do meu espaço, e agora pra mim tem fluído muito bem, graças a Deus”, conta Virgínia Vieira, dona do Spazio Virgínia Vieira, outro salão de beleza na Restinga.

Virgínia Vieira é dona do Spazio que leva seu nome / Foto: Victória Rodrigues

Segundo o Global Entrepreneurship Monitor (GEM), 48% das mulheres começam uma atividade empresarial por vulnerabilidade financeira, ou para se recolocar no mercado de trabalho. Muitas delas, por não serem aceitas no ambiente corporativo em função de filhos pequenos, enxergam no empreendedorismo uma saída para conseguir conciliar a jornada dupla com os pequenos.

Casada e mãe de quatro filhos, Luciana, a dona do Espaço Lua, conta o principal motivo de ter escolhido manter seu projeto na Restinga: “É complicado, porque são três turnos, tu tem que te preocupar com o trabalho, com a casa, com os filhos. Quando eles eram pequenos, há 15 anos, o que me segurou na Restinga foi os meus filhos, de não ter que sair daqui pra trabalhar, pra poder estar mais presente na educação deles, e eu consegui, fazendo o meu horário”, diz ela.

Roberta também aponta como o empreendedorismo feminino é difícil por conta de todas as tarefas que são atribuídas às mulheres. Já quando um homem pensa em empreender, não é questionado se tem filhos ou não. Com a mulher, o pensamento é outro, é perguntada se tem filhos, com quem vai deixá-los, se vai conseguir conciliar casa e trabalho. Isso é um reflexo claro do machismo na sociedade brasileira.

Mesmo com as dificuldades, depois de ver seus projetos prontos, as mulheres acabam sentindo um empoderamento por ter independência financeira. Divorciada e mãe de uma filha, Virgínia diz ser muito guerreira desde novinha e, também, que sempre foi em busca dos próprios ideais. “Não depender de um homem é muito bom, porque eu posso acordar todo o dia e dizer que eu dependo só de mim, sabe, só do meu suor, do meu trabalho, das minhas coisas. Sou eu e eu pra tudo, entendeu?”, diz Virgínia.

É um desafio para a mulher de periferia conseguir se sentir empoderada, mas é possível passar por cima do preconceito e ter satisfação pessoal. “Eu cresci muito como pessoa, tá sendo maravilhoso, a cada dia que passa eu aprendo mais um pouquinho. E acho que a mulher não tem que esperar por homem, a mulher tem que procurar a sua vitória com o seu esforço, com seu dinheiro pra não depender de homem pra nada entendeu, eu penso dessa forma e passo isso pra minha filha também”, completa Virgínia.

O projeto

No começo deste ano, Roberta teve a ideia de criar um projeto que unisse empreendedoras da Restinga. A iniciativa era reunir em torno de 30 mulheres, mas a demanda foi bem maior do que ela pensou. “O primeiro encontro ia ser na recepção da DentoSul, depois na Casa de Chá, mas aí fomos nos organizando e paramos em 80 mulheres. Daí a ACIR (Associação Comercial Industrial Empresarial) nos ofereceu um espaço e nós fizemos nosso primeiro encontro lá”, conta a protética.

Depois disso, o grupo foi crescendo cada vez mais, e ela decidiu fazer um segundo encontro, dessa vez com o triplo de mulheres. “No segundo encontro, já tinha 220 mulheres. E essas mulheres não tinham rede social, não usavam o whatsapp, nunca tinham ouvido falar de marketing ou network, por exemplo, e eu comecei a incentivar elas a fazer um cartão, sabe, pra promover os serviços”, conta.

As mulheres empreendedoras que fazem parte do projeto já conseguem enxergar pontos positivos que ele trouxe para elas. “Foi tomando uma dimensão, uma coisa tão grande e tão legal, sabe? Hoje nós somos 256 mulheres, entendeu? Então isso pra gente tá sendo muito bacana. Uma ajuda a outra, uma indica a outra, uma tá sempre em função da outra. Eu creio que tá sendo muito bom pra todas nós”, diz Virgínia.

Segundo encontro das empreendedoras Restinga / Foto: Bianca Nunes

Além de promover o empreendedorismo feminino periférico, o intuito delas é estimular o comércio dentro do bairro, para as pessoas não saírem para procurar serviços de fora. “Eu acredito que movimentou muito o comércio. Com o projeto apareceu muita coisa que a gente nem sabia que existia dentro da Restinga né. Então, o que a gente mais quer é fomentar o comércio que tem aqui”, fala Millene, dona do café Casa de Chá Sabor e Arte.

O projeto, visibiliza a luta que as mulheres enfrentam diariamente para mostrar que a Restinga resiste mesmo com preconceitos e discriminações. A periferia vai além da marginalização que o senso comum já está acostumado a enxergar, que percorre sua história desde a fundação, e essas mulheres estão aí para confirmar isso.

“As pessoas estão nos vendo. Eu dizia que não queria mais ver a Restinga só na página policial. Quantas coisas boas acontecem aqui e não são divulgadas? Então eu disse que nós não íamos mais aparecer ali, que íamos aparecer na capa, e nós conseguimos”, conta Roberta. O projeto das mulheres empreendedoras foi capa do Jornal Vitrine, conhecido em alguns bairros da zona sul da capital por dar voz aos moradores. Além disso, foi matéria do Diário Gaúcho pela iniciativa de fortalecer os negócios e conseguir mudar a imagem do bairro.

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