FAMÍLIAS

Mulheres criadas por mulheres

Conheça histórias de famílias matriarcais que têm vidas costuradas pela força e pelo cuidado compartilhado

Anna Ortega
Vozes em Travessia

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Mulheres criadas por mulheres são muitas no Brasil. A última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE, em 2015, apontou que 28,9 milhões de famílias no país eram chefiados por mulheres. Apesar de a maior parte das chefes serem aquelas que vivem sozinhas com seus filhos (um total de 11,6 milhões), existem outras formações, como mulheres criadas por avós, por mães e avós, por mães e mães, por tias, por dindas, por irmãs, por primas. As formações, assim como as histórias e trajetórias, são múltiplas e plurais. Vera, Vicência, Maria, Natanielle, Carla, Claúdia e Karla são mulheres criadas por mulheres que também criaram outras mulheres.

Sempre Juntas

Foi no interior do Rio Grande do Sul, em Santa Vitória do Palmar, fronteira do estado com o Uruguai, que Nazeazena Correa deu à luz Maria, Vivi e Vera. Poucos anos após o nascimento de Vera, o pai das três crianças e marido de Na, como sempre foi conhecida, faleceu. Foi quando, pensando no futuro daquelas quatro mulheres, uma irmã de Na a aconselhou a sair “lá do fim do inferno” e ir para Porto Alegre. “Quem sabe tu não quer ir para Porto Alegre para trabalhar e criar tuas filhas?” Esse foi o início da história de Vera Tereza Centeno, de suas irmãs e da mãe, que, mesmo quando não podiam, estavam sempre juntas. É o começo da história de uma mulher criada por outras mulheres, e que hoje, com 72 anos, em um apartamento no bairro Santo Antônio, na capital, relembra a própria criação, o vínculo com as irmãs, a maternidade e a força do núcleo familiar matriarcal.

Vera tinha 11 meses quando a mãe decidiu sair do interior e, por ser a caçula, foi a única filha que ficou durante toda infância com Na. “Ela não teve dúvida, pegou nós três pequenas e viemos. Ela trabalhou muito para nos criar. Ela era pai e mãe. E na época tu sabe que não era fácil. Setenta anos atrás, não era mole aquilo. E, além de tudo, falavam, que a mulher não podia andar sozinha na rua, não podia ir a uma festa, senão seria taxada de vagabunda. Ela se anulou só para nos cuidar”. Na saiu de Santa Vitória do Palmar para trabalhar em uma fazenda, no Passo do Vigário, no interior de Viamão. Lá criou as filhas juntas, até que, quando Vera tinha sete anos, a irmã mais velha, Vicência, foi trabalhar em um parente. E Maria, quando tinha dez, foi trabalhar no parente do parente.

Foi a primeira separação das quatro. Era como se o útero de Dona Na se repartisse pela primeira vez. As irmãs, na época, se viam uma vez por mês, quando, sentadas na grama do Parque da Redenção, se encontravam para contar como estavam as coisas. Como não tinham casa em Porto Alegre, o encontro no parque era a única reunião, era “um acontecimento”, e, sempre que se encontravam, falavam do sonho de estarem juntas em um casa delas. Vera lembra como era difícil para a mãe viver separada de Vivi, como era chamada Vicência, e de Maria. Por outro lado, a infância de Vera foi muito próxima de Na.

“Eu me lembro que eu devia ser uma negrona grande com seis, sete anos e eu chegava na porta da cozinha. ’Mãe, mãe, mãe’. Eu mamava. Eu mamei até uns sete anos e meio. Ela largava tudo e parava na beira da porta. Eu lembro que parecia um bicho mamando. Mamava e ia brincar.”

Quando Vera tinha 12 anos, as irmãs se reuniram novamente. Vieram para Porto Alegre, primeiro para uma peça grande, com um quarto e uma cozinha. Aos poucos, foram aumentando para duas peças, depois três peças, depois para uma casa. Vivi trabalhava como maquiadora em Porto Alegre, e, segundo Vera, se não foi a melhor que tinha na cidade, foi uma das melhores. Maria trabalhava na mesma casa que trabalha hoje, com a mesma família. Juntas, todas sabiam tudo de todas. “A gente sempre sabia de namorado, sabia da vida da outra, sabia até quando tava menstruada. Podia ser um apartamentinho desse tamanho, mas estávamos sempre juntas”, lembra Vera.

As quatro mulheres passaram por outros três momentos de separação. O primeiro, como conta Vera, não durou muito tempo: “A gente ficou junto até eu sair de casa e me casar. Fiquei muito pouco tempo, quis voltar para casa, não aguentei ficar longe. Eu me separei e vim para cá de novo. Todas juntas, só as mulheres. Aí eu vim com duas gurias.” Ana Paula e Patrícia, as duas filhas de Vera — que ela tinha certeza, desde a gravidez, que seriam meninas — foram criadas por ela e por Na. A avó era a grande escudeira, andava sempre com uma vara. “Tu sabe o que é vara? Ela tinha uma vara em cima da geladeira e andava com outra. Ia levar elas pro colégio, pro jardim, com uma vara. Vai que alguém mexesse com as netas dela.”

Maria, Na, Vera e Vivi no casamento de Vera/ Foto: Anna Ortega

O segundo momento de separação foi a morte precoce de Vivi, aos 40 anos, quando Vera ainda estava grávida da filha mais velha. Foi um momento de tristeza e ruptura muito grande. Vera conta que Na “entrou em parafuso” com o falecimento da filha e o que a salvou do luto foi criar as netas. Na casa, era como se sempre existisse uma matriarca, alguma que cuidava de tudo e de todas. Antes de Vivi falecer, era ela. Hoje — e desde o primeiro momento em que Vera se referiu à irmã — é Maria.

Vera lembra com carinho da irmã Vivi/ Foto: Anna Ortega

Quando as irmãs começavam a vida em Porto Alegre, Vivi era quem ajudava a família. Como era maquiadora e tinha um padrão mais alto de vida na época, era ela quem comparava as coisas para casa, que alugou uma casa maior pela primeira vez. Quando faleceu, Vera lembra que a mãe “tomou conta”. Começou a querer fazer tudo que Vivi proporcionava, mas não tinha toda essa força. “ Aí que a Maria começou a entrar. Tudo que a gente precisava, dizia ‘Maria eu preciso…’ e ela tava ali com o negocio na mão. Quando a minha mãe faleceu, a Maria abraçou tudo, abraçou toda familia. Tudo que tu pensar ou precisar, falar, pedir, qualquer coisa que tu peça a Maria tenta atender. Aqui dentro de casa ela é conhecida como matriarca, a decisão de tudo que acontece é dela. Ela quer abraçar todo mundo, mesmo que ela não possa.”

Vera conta com muito carinho sobre a matriarca. Mesmo não tendo filhos, Maria assumiu o lugar de mãe e irmã. Mãe-irmã. O lugar do cuidado. Foi a irmã que conseguiu o primeiro emprego para Vera e, até hoje, é com a irmã que ela conversa sobre tudo que precisa resolver e fazer. A cumplicidade das duas transcende o tempo e o espaço. Estiveram juntas, inclusive, literalmente uma ao lado da outra, quando a mãe faleceu em 2005. Vera lembra que os últimos anos de vida de Na foram muito difíceis. Com Parkinson, precisou ser cuidada dia e noite.

“Fiquei sete anos direto dentro de casa, me aposentei para cuidar dela. Cuidando dela e cuidando dos meus netos [a filha mais velha de Vera, a Ana Paula, é mãe de dois filhos, o Gabriel e a Manuela]. Cuidava de três crianças, porque minha mãe virou uma criança. Nós fomos ser mãe dela. Ela faleceu nos meus braços. A Maria deitada aqui do lado, tinha dado um cochilo. Quando a Maria dormiu, ela faleceu. A Maria nem viu. Para nós foi muito triste aquilo, quebrou um elo”

Uma das lembranças mais fortes que Vera tem de Na também atravessa a questão do cuidado. Ela lembra que a mãe conhecia a rua inteira, todos os vizinhos. Quando eles iam para praia ou iam viajar, deixavam as chaves da casa com Na. “A gente tinha um painel de chaves dos outros. A gente perguntava para ela: ’O que é isso?’. Ela dizia: ’A Dona Flor deixou comigo para eu abrir ali e dar comidinha para os gatos. A Dona Flor deixou para eu molhar as plantas’. Eu dizia para ela que ela não tinha obrigação, mas era um prazer para a mãe ficar com a chave de toda vizinhança. Todo mundo confiava nela”, lembra com carinho.

Vera Centeno hoje com 72 anos / Foto: Anna Ortega

Hoje, as duas irmãs continuam a cuidar uma da outra. A maior tristeza de Vera é não poder estar tanto quanto gostaria com Maria, porque a irmã, hoje com 74 anos, ainda trabalha na mesma casa que trabalhava quando se mudou para Porto Alegre. O momento de encontro é, geralmente, nos domingos, quando a irmã pode estar presente. Vera conta que, quando Maria não consegue ir, falta algo e dói muito. Apesar disso, as duas se falam todos os dias. “Nos falamos duas vezes por dia, por telefone. Ela liga de manhã e de noite. Às vezes eu to dormindo e digo: ‘Ai meu deus do céu. Uma hora da manhã e a Maria liga’. Eu digo ‘O que é Maria?’. Ela diz ‘Tô ligando pra te dar boa noite’.”

O pátio das mulheres

E m um domingo, no Centro de Porto Alegre, Natanielle Almada dos Santos comemora os 27 anos. Quase três décadas de existência, todas elas rodeadas de mulheres. Natanielle — ou Nati, como é chamada pela família — é uma mulher criada por mulheres: pela mãe, Carla, e pelas duas tias, Katia e Claúdia, que, por sua vez, também foram criadas por mulheres. Nati hoje cria, junto com a mãe, a filha Isabelle. Em um sofá, depois do almoço de aniversário, as quatro sentam juntas para conversar, lembrar como foram criadas, como criaram, como criam e pensar a força e os desafios que sempre coexistiram em suas histórias individuais e familiares.

Nati cresceu amparada pelo cuidado coletivo das tias Katia e Claúdia. Foi Katia quem levou Nati no primeiro dia de aula no colégio e foi Claúdia quem esteve no primeiro dia da matrícula, já que Carla trabalhava em tempo integral. O pai de Nati abandonou ela, as irmãs e a mãe quando ainda era uma criança pequena, e, desde então, o educar e o criar sempre foram feitos por essas três mulheres. Elas contam que a relação sempre foi de muita proximidade e que muitas coisas da infância e da adolescência, eram assunto apenas para as tias. “Ela desabafava muito com nós duas, mas não desabafava com a mãe dela. Namoro, sexo, tudo, ela não contava para mãe dela, contava para gente”, lembra Katia. Brincando, Carla responde para a irmã: “Não sei o que tem, mas elas [Nati e as irmãs] querem sempre ir para tia. Desde pequenas, sempre quiseram tia e tia”

Pensando sobre a criação sem a figura do pai, todas falam sobre força e autonomia. Kátia, que também é mãe solo, enfatiza: “querendo ou não, nós fomos mulheres fortes e batalhadoras. Não precisamos de homem para ter uma vida, para ajudar a gente em alguma coisa. Nós fomos dependentes de si, para construir, para tudo fomos nós. Até hoje, até ela [apontando para Nati] não precisa ter homem”. Cláudia, então, complementa: “Na verdade não mudou muito, porque ela [Nati] também cria a filha dela sozinha, assim como a Carla criou ela e como a nossa mãe nos criou. Eu acho que é quase uma sequência”

Kátia, Cláudia e Carla / Foto: Anna Ortega

Kátia e Cláudia contam que Carla, além de ter sido irmã mais velha, foi como uma mãe para elas. Uma mãe-irmã. O cuidado compartilhado vem, portanto, não apenas de Nati sendo cuidado pelas tias. Vem de antes. “A Carla foi quase uma mãe para nós. Nossa mãe era nova, era como se fosse nossa irmã mais velha. Então, a cobrança de compromisso e responsabilidade em casa veio mais dela. A gente se focava mais nela, ela sempre teve isso. Mesmo depois de ter os filhos, ela sempre foi a nossa referência. Mesmo depois que o marido dela foi embora quando as crianças eram pequenas. Com a diferença que o nosso pai morreu e o marido dela foi embora. É quase igual o que aconteceu com a Carla e com a nossa mãe, criaram os filhos sozinhos”, lembra Cláudia.

Ainda sobre isso, conversando com as irmãs e com a sobrinha, Cláudia questiona a visão que se tem da mulher enquanto ser mais fraco. “É que se tu olhar bem, hoje em dia, a mulher, no geral, é mais forte em criar seus filhos. É o que tu mais vê hoje em dia, muitas mães criando seus filhos sozinhas. Trabalhando, sustentando, sendo mãe e pai. A mulher é tudo né. Ela tem que pensar no filho, na vida pessoal, profissional, sentimental. Tá tudo junto. Se falam que a mulher é o sexo frágil, acho que se enganaram. Eu acho não. É. Nós somos a parte mais forte.”

Claúdia, apesar de ser a única das quatro que não tem filhos (paridos, porque, na prática, são muitos), conversa com as irmãs sobre educar. Os três filhos de Carla, inclusive a Nati, já moraram com a Tia Ne — como chamam Cláudia — e, também por isso, ela se preocupa muito com o que dizer, o que ensinar. O mundo lá fora, como ela diz, “não é um doce, não”. “Não dá para ter meia palavras. Eles têm que saber que a vida é assim. É tudo ensinado”.

Os primos Isabelle [filha de Nati ] e Miguel [ filho de Kátia ] assistem a um desenho no computador enquanto as quatro mulheres conversam/ Foto: Anna Ortega

Uma das lembranças de Nati sobre a infância ao lado dessas mulheres é dos momentos em que se reuniam em um pátio, na Zona Sul de Porto Alegre, um terreno grande em que todos da família tinham casa. Era o pátio das mulheres. Sem muro ou grades, era onde a infância e a maternidade se encontravam. As quatro riem ao lembrar o quanto Nati era “capetinha, espoleta”, e que a maior diversão dela enquanto criança era subir na árvore de goiabeira. O pátio era o lugar em que espacialmente o cuidado coletivo tomava forma e — talvez como o sofá em que conversavam naquele momento — era o lugar do encontro.

Nati, Belle, Kátia, Cláudia e Carla se reúnem para comemorar o aniversário de 27 anos de Nati / Foto: Anna Ortega

No fim da conversa, falando sobre o que significava “família”, Carla para tudo e começa a gritar. “Ah não. Peraí. Ninguém vai comer pizza agora.” Se ninguém ganha, tu também não vai ganhar, Belle”. A filha de Nati havia aberto a geladeira para pegar a pizza que as três irmãs tinham feito para o café da tarde. Cláudia, então, olha para todas e diz: “‘O que é família? ’Familia é isso aqui, ver a Carla brigar por causa de pizza.”

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