COOPERATIVIDADE

Na Capela se faz luta

A história de um assentamento construído pela resistência e coletividade

Marina Carvalho
Vozes em Travessia

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O memorial sobre a luta e os valores da comunidade do Capela dá as boas-vindas, logo na entrada do assentamento. Foto: Marina Carvalho

Entre tons de rosa e vermelho-sangue, construídos por pinceladas em letras maiúsculas, está a máxima: “Povo que ousa lutar constrói poder popular”. A atmosfera de cooperação e ousadia que engloba o Assentamento Capela se naturalizou na flora. No tronco das árvores espalhadas pelo terreno de mais de 2200 hectares, as placas fixadas reafirmam o espírito guerreiro que mora ali, a 40 quilômetros de Porto Alegre. Pela manhã, junto com o nascer do Sol, ressurge a luta. Respiram, do oxigênio, a força. Plantam, na terra, sabedoria. Comem, do pão, vida. Em Nova Santa Rita, o dia nasce na mesma hora que na capital gaúcha, mas o tempo não tem pressa por lá. A falta de trabalho nunca é justificativa para essa calmaria. Quando se trabalha com a terra, ela mesma dita o ritmo. E, naquela manhã, cobrava agilidade.

Em outubro, é safra de arroz orgânico no Capela. O trânsito aumenta com os tratores, e a lei que rege o tráfego é da constituição única: a agroecologia. “A lógica é tu aproveitar os recursos da natureza. Respeitar e otimizar”, defende Airton Luiz Rubenech. Mas, em 50 anos de sua vida, nem sempre foi assim. “Nós mesmos passávamos veneno, nós se envenenava.” No mesmo instante, se arrepende. “Que fim tinha? Ganhar a terra e envenenar?” Como se estivesse num tribunal onde o martelo bate conforme a lei orgânica, ele confessa o crime: “Eu mesmo fui um que no começo passei [veneno] consciente, mas era um tempo de transição.” E, no mesmo fôlego, denuncia. “Tinha gente que antigamente dizia que não fazia nada. Que era um remédio que eles tavam passando.” Como evidência do caso, ele prova. “Hoje em dia, tu vê as consequências do veneno.”

Ambiente de armazenamento e beneficiamento do arroz orgânico da Cooperativa de Produção Agropecuária Nova Santa Rita (COOPAN). Foto: Marina Carvalho

Airton é empregado da terra — e de mais ninguém. Sua principal função é na lavoura, embora ele tenha o título simbólico de diretor da cooperativa. A 40 minutos da selva de pedras gaúcha, vivem 29 famílias que desafiam a hierarquia da lógica capitalista. Sem chefe nem funcionário, a vida local funciona obedecendo a uma única missão, visão e valor: a cooperação. O trabalho coletivo não permite que o olho cresça. Na lavoura, no abatedouro, no refeitório comunitário e na creche, todos dividem a mesma importância. Longe da competição corporativa, não existe distinção salarial. Na verdade, não existe salário. Existem sobras. O arrecadamento anual é planejado para ser redistribuído, mensalmente, aos cooperativados, conforme hora trabalhada. E, quando surge algum dilema, a decisão final fica a cargo de todos. Democraticamente, a comunidade se reúne e vota, por família. Nesse governo popular, a suprema Terra zela pela maioria. De herança para as futuras famílias, a agrovila reserva pequenos terrenos para descenderem dali novos lutadores de uma mesma causa.

Criaram raízes em 1994, ano da concessão de uso do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) aos jovens agricultores que depositaram na luta a esperança de uma vida melhor. “Não ia ter terra para todo mundo”, escancara Airton — o terceiro filho de cinco que deixou o lar para acampar. A luta nasce na subjetividade dos agricultores desprovidos de lar e trabalho e é impulsionada pela mobilização do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Airton despertou para o conflito em Sarandí, cidade no interior do Estado rio-grandense. Aos 20, despediu-se dos pais e partiu para um destino incerto, com uma convicção em mente. “Sai caminhar sem rumo. De noite, para no meio do mato, se ajeita, dorme, descansa um pouco”, revive a rotina dos acampamentos enquanto grupo. “Mas organizados e lutando por um objetivo maior”, reitera com firmeza e satisfação de falar no local que almejava estar. Com a roupa do corpo, lona, facão e panela, os sem terras percorreram varias cidades do interior do Estado. A ferramenta de sobrevivência era a insistência. “A gente sabia que aquela terra não ia sair para a Reforma Agrária, porque era uma questão de honra deles não liberarem”, satiriza, entre risadas, ao contar sobre a época de acampamentos. “Mesmo sabendo que aquela terra era improdutiva”, argumenta. Na persistência de que o orgulho dos latifundiários fosse subvertido pela iniciativa federal, Airton e seus companheiros viveram quatro anos e meio de luta em condição nômade. Hoje, fixados, a luta no Capela continua.

As placas espalhadas pelo terreno reforçam o espírito de luta e bravura que paira sobre os assentados de Nova Santa Rita. Foto: Marina Carvalho

A gestação

A hereditariedade da luta circula nas veias de mãos ásperas. O mesmo sangue ancestral que padece de uma patologia histórica: a concentração fundiária. Invasores europeus reeditaram o funcionamento do organismo tupiniquim. Como vírus que adentram e se estabelecem nas pequenas células, matam-as e inviabilizam o sistema, os latifúndios improdutivos adoecem o Brasil. De cama desde o século XVI, a população rural e pobre está debilitada pelos sintomas da desigualdade social. A história do país é a história da luta — a história do Capela é como a história do país.

Sócios da terra, os índios desconhecem a noção de propriedade privada. “A visão antropológica da terra é entendida como um bem comunitário”, dimensiona Décio Monteiro, supervisor de assentamentos do INCRA no sul do país. Ele justifica a lógica contraditória e vigente: “A visão de posse do terreno é herdada do homem branco”. A herança que ficou para esses agricultores é, então, indígena.

A desconstrução da genética branca iniciou nos acampamentos. Dedicavam-se, além de sobreviver, a pensar numa organização de vida respeitosa a terra e digna aos membros. “Nessas discussões que saiu a ideia de fazer a cooperativa. Depois de dois anos nos acampamentos, a gente já tinha um grupo que queria se organizar dessa forma”, relata o cooperativado Romeu Bosa, de 52 anos. O tempo livre era priorizado para arquitetar o modo de vida de famílias que ansiavam por um espaço para concretizar o plano. No projeto, acordaram em nuclear a comunidade em setores, que seriam encabeçados por um líder em cada um — apenas por questões organizacionais. A medida base era, assim como ainda é, que o poder fosse, cooperativamente, dividido. O ideal de coletivo se expande para o espaço físico: não há demarcação de lote por família. Eles coexistem, sem cercas nem proteções, na terra da coletividade.

Da esquerda para direita, Airton Luiz Rubenech, Flávio Luiz Seller e Romeu Bosa. Os assentados que viveram e construíram a história do Capela, juntos. Foto: Marina Carvalho

Crianças que mamam força

“Chê, Zumbi, Antônio Conselheiro, na luta por justiça somos todos companheiros.” A decoração do ginásio do Capela tinha temática de festa — e de luta. Era dia das crianças. Os produtos orgânicos, junto da bandeira do movimento, ornavam o palco que sediava o encontro anual dos Sem Terrinhas. A entrada do local dava as boas vindas com o grafite de mulheres e crianças de braços erguidos e punhos cerrados. Nos rostos, a expressão de clamor, mas as vozes ao fundo gritavam mais alto. Tão convidativa quanto a pintura, a música em coro dava melodia e força ao grito silencioso na parede. “Ei, companheiro, levanta e vamos pra luta! Ei, companheira, pra juntos a terra conquistar.” Guiadas pela voz e violão, dezenas de crianças batiam palma enquanto cantavam os versos. O incentivo ao combate é canção de ninar.

Alimentadas da pureza dos produtos cultivados no Capela e em assentamentos vizinhos, os sem terrinhas não se acomodam na conquista dos pais. O objetivo do Movimento ultrapassa os limites da questão territorial e transmitem o espírito coletivo para as próximas gerações. Após 25 anos de conquista da primeira batalha, o vínculo com o MST permanece sustentado na luta, agora com outras reivindicações. A educação voltada ao campo, a saúde básica, o lazer digno e produtos de qualidades movem as 29 famílias, diariamente, para o combate. As estratégias de resistência se proliferam no ensino, na agroecologia, no trabalho e no prato. Vivem das vitórias de lutas passadas e por lutas atuais. Reafirmam, nas trincheiras do Capela, a verdade que os guiam numa trajetória de sobrevivência: “É difícil defender só com palavras a vida.”

Grafite ilustra a luta da reforma agrária, para crianças e mulheres, na parede frontal do ginásio do Capela. Foto: Marina Carvalho

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