Saúde mental

No limite das emoções: como é viver com a organização borderline

A doença, que é uma forma mais branda do transtorno de personalidade borderline — linha tênue entre as neuroses e a psicoses — requer persistência no tratamento e apoio externo para ser confrontada

José Thiago Lemes
Vozes em Travessia

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Ilustrações Rafaella Germany Barni

A palavra personalidade tem sua origem no latim persona, que significa máscara, e dava nome ao adereço utilizado por atores nos primórdios do teatro romano a fim de representar emoções. Já na psicologia moderna, personalidade possui um significado difuso, mas que pode ser entendido como um conjunto dinâmico, organizado e exclusivo de elementos que influenciam o raciocínio e motivam o comportamento de uma pessoa, dando a ela consistência e individualidade. E em cada uma, traços e características se organizam e manifestam de forma particular. Porém, para os portadores do transtorno de personalidade borderline — ou limítrofe, em português — essas manifestações são muito mais sensíveis. É como um ator cuja máscara é trocada diversas vezes e de forma inesperada, sem ter o controle habitual de suas próprias emoções.

De acordo com o artigo “Transtorno borderline: história e atualidade”, de Paulo Dalgalarrondo e Wolgrand Alves Vilela, a noção de borderline se constitui como uma condição imprecisa, que compreende sintomas do espectro neurótico, passando pelos distúrbios de personalidade, até o espectro psicótico. Por isso a condição de estar “à borda”, no limite das emoções e atitudes, e consequentemente das relações humanas. O medo de abandono característico do transtorno torna a pessoa excessivamente ciumenta, pondo em prova a todo momento o carinho e atenção de seus pares, passando da idealização à desvalorização sem meios termos. Provocam sabotagens, agem por impulsão, colocando-se em situações de vulnerabilidade associadas a vícios, abusos de substâncias e comportamentos nocivos. A dificuldade de lidar com os próprios sentimentos e vontades estendem-se para as relações familiares, afetivas e sociais. A centralidade que ocupam na vida de seus entes queridos trazem desentendimentos e frustrações. A própria sexualidade é complexa e tende a ser um outro importante fator de autossabotagem. Em última instância, por não conseguir suportar a dor da própria existência, a angústia da dor sentimental passa para o físico e deixa marcas, as automutilações e tentativas de suicídio não são raras.

Marta* tem 29 anos, olhar expressivo e um senso de humor sarcástico e doce. É capaz de fazer piada sobre quase tudo, com referências rebuscadas ou toscas, valendo-se de infinitas metonímias. Enxerga a si mesma como essa pessoa divertida e é bem quista por isso, mas também não é só isso. Essa é uma faceta de Marta, a que mais se dedica ao trato social. Como qualquer um, ela se adequa, faz concessões, mas também explode de raiva, é humana. Marta convive há quatro anos com o diagnóstico de transtorno de humor bipolar. Entretanto, dos 18 aos 25 anos, Marta foi diagnosticada com o transtorno de personalidade borderline e, acreditando tê-lo, funcionou como tal. Marta não tinha propriamente o transtorno, algo que, anos depois, descobriu tratar-se de um quadro de organização borderline, uma forma mais branda da doença, mas que preserva muitas de suas características.

A psiquiatra Adriana Denise Dal Pizol, especialista em psicoterapia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e com atuação no Programa de Abordagem Interdisciplinar do Hospital Psiquiátrico São Pedro, explica: “Existe o transtorno de personalidade borderline, que tem as características fenomenológicas do DSM-V ou da CID-10, que precisa preencher cinco das nove características que existem (ver quadro) e existe a organização borderline, que é uma forma mais leve de apresentação, uma forma de funcionamento, algumas características que ficam mais misturadas na personalidade”. Segundo ela, a organização borderline seria mais um jeito de ser, um estado que por vezes provoca vazio existencial, mecanismos de defesa “projetivos” e senso de difusão da identidade. “A pessoa não sabe bem quem ela é ou varia também muito o jeito de ser… E também há uma indefinição muito grande da autoimagem. São características mais psicológicas, que cursam menos com as tentativas de suicídios e mutilações, seriam pessoas com um jeito mais complicado e indefinido de ser”, complementa Adriana.

Como se define um borderline

De acordo com o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação Americana de Psiquiatria (DSM-V), o Transtorno de Personalidade Borderline é assim chamado por apresentar sintomas que se situam no limite entre as neuroses e as psicoses. Podem ser classificadas como borderline pessoas que apresentarem pelo menos cinco das seguintes características:

1. Esforços desesperados para evitar abandono real ou imaginado;

2. Um padrão de relacionamentos interpessoais instáveis e intensos caracterizado pela alternância entre extremos de idealização e desvalorização;

3. Perturbação da identidade: instabilidade acentuada e persistente da autoimagem ou da percepção de si mesmo;

4. Impulsividade em pelo menos duas áreas potencialmente autodestrutivas;

5. Recorrência de comportamento, gestos ou ameaças suicidas ou de comportamento auto mutilante;

6. Instabilidade afetiva devida a uma acentuada reatividade de humor;

7. Sentimentos crônicos de vazio;

8. Raiva intensa e inapropriada ou dificuldade em controlá-la;

9. Ideação paranoide transitória associada a estresse ou sintomas dissociativos intensos.

Fonte: DSM-V (Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação Americana de Psiquiatria), 2013.

Diagnóstico e tratamento

No entanto, o diagnóstico não é tão simples. “É longitudinal, quando a pessoa apresenta as características, é preciso suspeitar dos dois (transtorno ou organização)”, diz Adriana. Além disso, é preciso atenção para que os sintomas não estejam associados a outras patologias. “Quando é só um transtorno de humor bipolar ou depressão, a resposta é muito boa. Mesmo só com a medicação, a resposta é visível, gritante. Quando é um transtorno de personalidade, algumas características mudam com a medicação, mas muito pouco”, explica Adriana. Segundo ela, alguns sintomas como a ansiedade e a impulsividade são aliviados, mas a mudança comportamental não acontece com medicação. Permanece o vazio existencial, a oscilação de humor, a instabilidade, a sensibilidade interpessoal, a sensibilidade ao abandono e às mudanças. Assim, as medicações vão acompanhando a sintomatologia, amenizando os efeitos colaterais.

A confusão entre os transtornos borderline e bipolar é muito comum, o que pode prejudicar a disseminação de informações. Embora compartilhem algumas características, são distúrbios mentais diferentes. Enquanto borderline refere-se à personalidade, o transtorno bipolar refere-se a um transtorno de humor da pessoa, seu estado de espírito oscila entre períodos de depressão e períodos de mania e excitação. No caso borderline, essas oscilações podem ocorrer no mesmo dia. Outra diferença é a capacidade cognitiva. Embora os dois transtornos envolvam certos estados de humor, na bipolaridade os efeitos são reduzidos com medicação. Além disso, a capacidade que os pacientes geralmente possuem de autocompreensão sobre seus atos é maior, enquanto o borderline tende a agir irracionalmente em suas alternâncias. Pela maior dificuldade de pesar suas atitudes, a sua melhora passa, necessariamente, por um prolongado processo psicoterápico.

No caso de Marta, a sua bipolaridade estava, segundo ela “enterrada nesse espectro borderline. Apesar de tomar remédios, como antidepressivos, antipsicóticos e estabilizadores de humor, utilizados no tratamento das comorbidades do transtorno, ela ressalta que na questão borderline a terapia é bem mais importante, onde se aprende a criar mecanismos pra lidar com os impulsos. Em relação aos remédios, existe a complexidade de se achar o tratamento adequado, tornando difícil a fidelidade do paciente, pois a dosagem flutua de acordo com a situação do transtorno. “É muito mais uma tentativa e erro, então por isso talvez muitas pessoas não se adaptem ao tratamento porque é difícil tu segurar e querer continuar com algo que também traz sofrimento”, esclarece Marta.

Segundo a psiquiatra Adriana, o objetivo de um tratamento psicoterápico, que é longo e leva vários anos, é desenvolver uma melhor condição de vida ao paciente. Busca-se uma maior tolerância à frustração e um autorreconhecimento das próprias limitações, afim de lidar com “defesas muito primitivas”, como dissociação, cisão, agressividade, comportamentos hetero e autodestrutivos. “A pessoa evolui para uma condição melhor, então eu já acompanhei algumas situações em que, se fizesse novamente uma testagem, não apareceria o transtorno borderline, talvez aparecesse uma personalidade atualmente mais histriônica, narcisista, ou até uma organização borderline, mas não o transtorno.” O tratamento torna a pessoa mais funcional, com traços dessa condição, mas uma pessoa mais acessível, mais fácil de conviver, criando laços, tendo uma vida mais estável. “Conseguindo sobreviver sem tentar ou cometer suicídio é uma evolução excelente, mas são tratamentos prolongados”, salienta Adriana.

Quando de ultrapassa a borda

Além de fatores genéticos, ligados ao histórico de pessoas com o transtorno na família, o ambiente em que um borderline é criado, bem como abusos, traumas e lacunas de afeto eventualmente sofridos durante a infância — fase em que a personalidade se molda — , são determinantes para o desenvolvimento da doença. Na adolescência e início da vida adulta, por desconhecer as origens de seu comportamento, o bordeline, com os impulsos permeados por uma personalidade recém-formada e disfuncional, externaliza em suas relações os mecanismos primitivos de socialização que desenvolveu.

Marta relata que, no período em que acreditou ser borderline, houve de sua parte uma “autoindulgência na própria sabotagem”, e foi preciso uma grande cisão para que isso mudasse. “Algo como uma morte de uma parte de mim.” Marta criava, com a sua impulsividade, possiblidades para viver os momentos de autossabotagem por certo tempo até entrar numa depressão profunda. “Eu entrava em mania, em que tu acha que é deus na terra, em que tu bebe, gasta, transa com um monte de gente, se expõe de forma nociva e, nos picos de depressão, tu afunda, se arrepende, tem vergonha. Então, eu acho que o comportamento borderline, nesse sentido, vinha junto com meus períodos de mania da bipolaridade. E nessa questão dos impulsos foi quando realmente houve uma quebra, minha psiquiatra dizia que foi quase como se a minha personalidade tivesse entrado em conflito, tivesse se fragmentado totalmente. E isso foi na primeira vez que eu tentei suicídio, com uns 25 anos. Acho que nesse momento cheguei no fundo do poço e consegui ir me reintegrando aos poucos, mas até hoje eu não sei quem eu sou exatamente”, diz Marta.

Compreensão

Hoje em dia, Marta toma estabilizadores de humor para a sua bipolaridade e mantém um rivotril de “emergência” para as crises de ansiedade que já não são tão frequentes. Segundo ela, ainda dissocia — quando corpo e realidade se distorcem-, todos os dias. “Parece que eu não existo, ou se eu existo eu em um filme ou debaixo d’água, meu corpo não pesa, minhas pernas se mexem sem o meu controle. Não chegam a ser ataques de pânico, mas aprender a lidar com isso que faz não ser um. Minha tática é falar pra mim mesma: se eu não morri até hoje por causa disso, não vai ser agora.” O aprendizado de lidar consigo, além da psicoterapia, passa com a maturidade. Ainda que a organização borderline tenha feito com que Marta, segundo ela, validasse as suas autossabotagens durante muito tempo, as frustrações e rupturas tidas com elas foram aos poucos formando uma consciência de sua condição. Sofreu com o abandono de seus melhores amigos, obrigando-a a transitar entre grupos e reestabelecer novas amizades que, com o tempo, também se perdiam e se desgastavam. Durante muito tempo se culpou, até o momento em que foi “reconstruindo” o seu ego.

“O tratamento precoce é muito importante, também o suporte e apoio familiar. Ter ideia do que se passa com a pessoa, entender que isso é um quadro psiquiátrico, que não é uma escolha de ninguém esse funcionamento. Muitas vezes a família se sente agredida, malquista tem reações muito fortes em relação a isso. Por isso a compreensão de que se trata de um quadro clínico, que não é jeito dela, é uma disfunção que se cornificou, que faz parte da personalidade, mas como um transtorno e não um padrão normal”, diz a psiquiatra Adriana.

Com o tempo, Marta foi capaz de reavaliar a sua trajetória. Reaproximou-se da mãe. Conseguiu, apenas aos 26 anos, relatar para ela episódios de abuso sexual sofridos na infância e que não foram conhecidos, pois, segundo ela, seus pais “terceirizaram para babás” a criação dos filhos. Tiveram uma relação turbulenta na adolescência, para além do convencional. Porém, anos tratando-se e conquistando acolhimento na reaproximação de laços com a família fizeram de Marta uma pessoa emocionalmente mais saudável. Conta que seu atual parceiro foi à terapia com ela no início do namoro e que, apesar de ele ter entrado em um espaço “muito íntimo”, compreender a situação fortaleceu o vínculo e os deu coragem para seguir em frente. Estudaram, juntos, cartilhas de como lidar com a doença e mantêm um diálogo franco e aberto, suporte fundamental para alguém que, mesmo em um estágio muito mais saudável hoje em dia, ainda convive com a bipolaridade e eventuais períodos de crise.

*O nome foi trocado para preservar a identidade da fonte entrevistada.

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