Arte

O feminismo armado de agulha e linha

As gerações de mulheres que ressignificam, politicamente, o bordado

Valentina Bressan
Vozes em Travessia

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Bordado de Bruna Antunes, em bastidor de madeira, com os dizeres “Juntas Somos Fortes”. \\ Foto: Bruna Antunes
Bordado de Bruna Antunes, em bastidor de madeira, com os dizeres “Juntas Somos Fortes” \ Foto: Bruna Antunes

Da arte antiga às tapeçarias medievais à arte contemporânea, o bordado tomou várias formas ao longo do tempo. No imaginário popular, no entanto, é sempre a mesma figura que carrega o tecido e a agulha: a mulher. No Brasil, o bordado esteve entre as habilidades manuais essenciais às moças para serem consideradas “prendadas”, uma exigência para o casamento, sendo ensinado pelas mães e avós e até nas escolas. As gerações de mulheres atuais, contudo, partindo de questionamentos já levantados desde o século XX, vêm tramando novas significações, políticas e feministas, para a arte milenar do bordado.

Entre heranças e rupturas

A bordadeira e jornalista Bruna Antunes, de 35 anos, conta que aprendeu a bordar na infância, mas por pura curiosidade em vez de obrigação. Cresceu em uma família de mulheres, todas artesãs, que costumavam passar as férias na casa da avó de Bruna, em São Borja. Rodeada de artesanatos, afeiçoou-se mais ao bordado, especialidade da avó, que havia aprendido quando criança, em um colégio de freiras. Bruna seguiu bordando durante toda a adolescência, no entanto, na época pré-vestibular, acabou se distanciando dos bastidores.

Bruna Antunes bordando \ Foto: Daniele Müller

Ela se reaproximou do artesanato quando, em 2015, uma amiga pediu que lhe ensinasse a bordar e mostrou-lhe no instagram contas de mulheres que bordavam mensagens feministas e políticas. Vinha a conhecer o que hoje chama-se bordado subversivo. “Me deu um clique muito grande, de ‘eu quero fazer isso’. Nunca foi no mérito de ‘quero transformar isso no meu trabalho’, mas de quero que isso exista no mundo e quero que minhas mãos sejam capazes de fazer isso.” Depois dessa amiga, vieram outras e apareceram cada vez mais interessadas. Surgiu a ideia de uma oficina de bordado feminista, e assim nascia o Bordado Empoderado. Desde então, ocorrem cursos todo mês em Porto Alegre, mas já houve edições em Pelotas e Santa Maria.

Para Bruna, ver cada vez mais mulheres apoderando-se das técnicas artesanais para se expressar é uma ruptura maravilhosa. “Se abriu essa janela de que é possível usar essas coisas como expressão, passar uma mensagem de indignação e fugir desse lugar comum de ‘é feito com amor’ que é colocado em cima de qualquer coisa que é manual ou feita por mulher. Pode ser feito com ódio e não tem problema.”

Aprender a bordar também já não foi exigência para a artista Mitti Mendonça, de 29 anos. Sua família, natural de Jaguarão, cidade da fronteira do Rio Grande do Sul, costumava bordar fantasias e adereços para o Carnaval e, assim, Mitti conheceu o artesanato que, para ela, logo tornaria-se meio de criação. Hoje ela é a única da família que borda e, em 2017, criou o projeto Mão Negra Resiste. “Tinha um propósito com esse projeto, que era protagonizar essas questões raciais através do bordado, daí eu associei arte à política, de combate ao racismo, de conscientização”, conta ela.

Além de ser espaço para “desaguar” sentimentos, indignações e questionamentos, pensar a negritude e destacar figuras negras, seu trabalho aborda questões de memória e afeto. Em sua exposição “Memória Verte entre Fios de Alinhavo”, Mitti deixou de lado o tecido para fazer intervenções bordadas em fotografias antigas de família, entrelaçando sua arte e sua vida às histórias de seus antepassados. A ideia para esse trabalho surgiu a partir de sua inquietação ao não encontrar figuras negras nas revistas que usava para colagem e da curiosidade sobre a própria história de sua família. “Junto [ao bordado] essa questão da memória, como parte da minha história, de trazer essas pessoas que não conheci.” Colocar essas personagens familiares em sua arte, expondo suas composições e trabalhando o afeto em suas oficinas de bordado em retratos é também trazê-las para circular em lugares que nunca tiveram a oportunidade de circular, relata Mitti.

“Memória verte em fios de alinhavo”, exposição de intervenção bordado em fotografia por Mitti Mendonça, realizada na Pinacoteca Bar, em Porto Alegre, em julho de 2019 \ Foto: Antonio Mainieri da Cunha Pinto.

Já Iara Maurente, de 62 anos, conta que até guardava alguns pontos de bordado na memória, por observar a mãe na infância, mas foi há sete anos que participou, despretensiosamente, de sua primeira oficina. Nela, acabou fazendo amigas e, juntas, elas criaram o grupo Bordadeiras da Redenção. Todas as terças-feiras, desde então, elas encontram-se em um restaurante próximo do parque de Porto Alegre para bordar, conversar e compartilhar suas vidas.

O coletivo não é feminista por definição, porém a rede de apoio criada ali é sua essência, e Iara diz que a aproximação das mulheres é o que há de mais valioso no grupo. “[O] grupo tem grande parte de mulheres aposentadas, que já tiveram uma vida inteira subjugada ao marido, ao patrão, aos horários, aos filhos, às obrigações domésticas, aos ensinamentos do pai e mãe, à moral e aos bons costumes. Costumamos dizer que as bordadeiras da Redenção é um exercício de liberdade”, revela Iara.

Não há nenhuma exigência para unir-se a elas — nem mesmo saber bordar: há sempre material extra e disposição para ensinar. Não há restrições, também, de temática. Desde os tradicionais florais até frases feministas, o que importa é que a bordadeira faça o que ela deseja.

No entanto, algumas delas, inclusive Iara, aproximam-se mais da política em sua arte. Em 2017, um grupo de pessoas filiadas ao Partido dos Trabalhadores (PT) de Porto Alegre, com o intuito de constituir um espaço de resistência e uma ferramenta de luta, criou o Bordar e Resistir. Bordaram material de campanha política e uma enorme bandeira do PT, mas teve destaque sua participação em uma confecção coletiva nacional, o “Tapete Infinito Lula Livre”. Coletivos políticos de bordadeiras de todo o Brasil enviaram tecidos para compor um tapete sobre o qual queriam que o ex-presidente Lula passasse ao sair da prisão, conta Iara. No dia 09 de novembro, em São Paulo, Lula de fato caminhou sobre o gigantesco tapete vermelho que foi estendido.

Bandeira do Partidos dos Trabalhadores confeccionada com retalhos bordados pelo coletivo Bordar e Resistir \ Foto: Iara Maurente

(Arte)sanato

A discussão sobre onde traça-se o limite entre arte e artesanato é complexa e já desenvolve-se desde o século passado. É fato que, por muito tempo, por serem tipicamente atribuídas ao gênero feminino, essas manualidades não foram sequer consideradas arte.

Para o grande público, a mudança é mais lenta, mas esse deslocamento de status do bordado já vem acontecendo, diz Bruna, e uma grande prova disso é a realização da I Bienal de Arte Têxtil Contemporânea (Fibra). As bordadeiras, ao romper com a arte tradicional de lençóis, enxovais e pano de prato, por exemplo, guiam o artesanato cada vez mais para o lado da arte, mostrando que seus bordados não precisam mais ser úteis, mas sim, belos, expressivos, capazes de fazer o público sentir coisas, completa ela.

Avesso, bordado sobre tecido de Clara Nogueira, parte da série GRAVIDAde \ Foto: Clara Nogueira

Se arte é fazer sentir, a pesquisadora e artista visual Clara Nogueira viu seu bordado tornar-se arte feminista durante a maternidade, quando bordou a série GRAVIDAde e percebeu que “tocou o íntimo” de outras mulheres. Aos 34 anos, a criadora do projeto Linhas de Fuga também pesquisa o artesanato têxtil em seu estado, com a iniciativa Mulheres que Tecem Pernambuco. “A forma de fazer é artesanal”, segundo ela. É preciso, porém, também pensar como a mulher se identifica. Clara se intitula artesã e artista têxtil e diz ver retornos diferentes ao ser considerada artista: as artesãs são “mulheres sem rosto” que, quando não estão expondo em galerias, não têm o reconhecimento da autoria de suas obras.

Novas técnicas e aplicações do bordado também surgem do questionamento de suas antigas regras. Mitti denomina-se artista multimídia, ao trabalhar com colagem, fotografia e bordado em suas obras. O Bordado Empoderado também oferece cursos que aplicam aquarela ao bordado em bastidor tradicional. O Wà Coletivo, criado no Cariri cearense, realiza intervenções de rua a partir do maxi-bordado, técnica em que substituem o tecido por muros, grades e bancos como base para compor suas obras com linha. A intervenção não só traz o diálogo com o público mas possibilita a união entre as mulheres. “Concretizar as intervenções nas ruas foi uma grande aventura coletiva”, cita Cléo do Vale, participante do grupo.

“Rua Marielle Franco”, intervenção bordada do Wà Coletivo \ Foto: Wà Coletivo [facebook]

“Ato revolucionário e criativo”

O que há de mais incrível em ensinar bordado às mulheres, em meio a um mundo repleto de opressões e cobranças, é a possibilidade de lhes revelar toda sua capacidade, relata Bruna. “[O bordado] permite que pessoas que não se sentem dotadas de dons artísticos, conhecimento artístico, possam fazer coisas que elas se sintam orgulhosas. Gera esse sentimento de ‘sou capaz de colocar no mundo coisas que eu gosto. Para mulheres, só isso já é enorme.” Iara, ao refletir sobre as Bordadeiras da Redenção, também destaca que as bordadeiras começam a se perceber, não como artistas, mas como pessoas capazes de criar.

Como define Mitti, o bordado é esse “fio de alinhavo” que entrelaça as pessoas e permite debates e conversas que vão desde o feminino até a negritude. Em uma época em que as mulheres mostram, cada vez mais, que não mais aceitarão exigências e ideais de um tempo que já passou, os “alinhavos” diários são resistências vitais ao seu fortalecimento. Assim, como diz Cléo, é inegável que o bordado, atualmente, é mais do que artesanato ou herança de séculos passados, mas sim, um “ato revolucionário e criativo”.

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