SISTEMA PRISIONAL

O primeiro ano de APAC em Porto Alegre

Pedro Alt
Vozes em Travessia
Published in
18 min readDec 18, 2019

--

Completando seu primeiro aniversário, centro de detenção com metodologia alternativa transforma a vida de apenados, com quem conversamos

Uma das paredes do CRS da APAC Partenon / Foto: Ana Júlia Odorize

Dia após dia, um ponto sem numeração da Rua Capitão André Lago Páris é local de apresentação de apenados do regime semiaberto. Na mesma rua que dá acesso às visitas à Cadeia Pública de Porto Alegre, como atualmente é denominado o Presídio Central, os presos aguardam a conferência de sua documentação por parte de servidores da Superintendência de Serviços Penitenciários (Susepe). O discreto prédio da Susepe está posicionado em frente ao Instituto Penal Pio Buck, que abrigava os mesmos condenados do semiaberto até sua desativação em 2017. Hoje, após reforma em um dos dois prédios que compõem o Pio Buck, uma edificação azul celeste passou a abrigar o Centro de Reintegração Social (CRS) da Associação de Proteção e Assistência ao Condenado (APAC) Partenon, a primeira na capital gaúcha.

CRS da APAC Partenon. Foto: APAC Partenon.
CRS da APAC Partenon / Foto: site da APAC Partenon

O método APAC

Amparadas por um método composto de 12 elementos, as APACs surgiram no início dos anos 1970 em São Paulo a partir da liderança do advogado Mário Ottoboni. Atualmente, há cerca de 150 unidades espalhadas pelo Brasil, de acordo com a Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados (FBAC). Além disso, a metodologia já foi aplicada em 18 países, tendo sua eficácia reconhecida pelas Nações Unidas. O sucesso das APACs se traduz no índice nacional de reincidência de egressos, que é de 8%, segundo o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, estado em que a APAC é difundida há anos, ao passo que a reincidência de egressos do sistema comum é de 71% no Rio Grande do Sul, de acordo com Gilmar Bortolotto, procurador de justiça e um dos principais mentores do método em terras gaúchas.

A APAC Partenon, por sua vez, foi criada juridicamente em 2017, mas só abriu suas portas para os recuperandos, como os apenados são denominados dentro do CRS, em dezembro de 2018. Hoje, ela conta com 29 recuperandos do regime fechado e tem capacidade para 40. Segundo Isabel Oliveira, presidente da APAC Partenon, a reforma no segundo prédio do Pio Buck aguarda recursos e a expansão na capacidade poderia significar a presença de um total de cem recuperandos em suas instalações. Para entrar em uma unidade APAC, o preso não pode pertencer a facções e deve escrever uma carta de intenções. Após checagem preliminar de sua situação, são feitas entrevistas, tanto com o preso quanto com sua família, conversas essas que buscam confirmar as reais vontade e capacidade que o apenado tem de se adaptar ao método.

Sendo uma entidade que depende de acordos com a União, de doações e de trabalho voluntário, a participação da comunidade, primeiro elemento do método APAC, é fundamental tanto para o funcionamento do método, quanto para o próprio conhecimento de sua existência pela sociedade. Quanto ao governo federal, foi apenas em março de 2019 que a APAC foi classificada como política pública pelo governo federal, o que facilitou as coisas no aspecto financeiro. Mas são os voluntários que prestam atendimento jurídico, psicológico, administrativo e de valorização humana aos recuperandos, além de fazer a própria divulgação da metodologia para um maior público. Nesse sentido, todas as sextas-feiras são organizadas visitas guiadas pelo CRS e, duas vezes ao ano, é ministrado um curso de formação de voluntários — elemento retomado adiante.

Outro ponto que se destaca nas APACs é o da autogestão do CRS por parte dos recuperandos. Para o bom andamento desse ponto, o segundo elemento do método, “recuperando ajudando recuperando”, conta com o Conselho de Sinceridade e Solidariedade (CSS), composto por nove recuperandos, escolhidos pelos seus próprios companheiros. É o CSS que dialoga com a direção da APAC, controla as pontuações negativas de cada recuperando, divididas entre amarela, vermelha e preta, podendo a última trazer consequências duras, como a própria reintegração ao sistema comum. Os recuperandos cumprem tarefas, como limpeza e cozinha, e é dever de cada um ajudar os mais idosos e doentes com as lidas cotidianas. Para Célia Amaral, vice-presidente da APAC Partenon, tudo na APAC é muito dialogado: “O problema de um é o problema de todos”. Quando entra no CRS, cabe ressaltar, o recuperando tem aulas sobre o método durante três meses para facilitar sua adaptação.

O trabalho, terceiro elemento da metodologia, é dividido em dois níveis: a laborterapia, composta normalmente por trabalhos artesanais e que tem por objetivo a reflexão pessoal e coletiva, além de ter caráter compulsório; e oficinas profissionalizantes, disponíveis para apenados do regime semiaberto, respeitando a aptidão de cada recuperando. Segundo Oliveira, a metodologia não pode abarcar o trabalho remunerado, apesar de “haver ansiedade e pressão para que seja introduzido”, mas as APACs cooperam com o recuperando que é liberto na busca por empregos. Exemplo disso é Ricardo Bignotti, primeiro recuperando da APAC Partenon a ganhar liberdade, que trabalha em uma oficina. Bignotti veio da APAC Barracão, no Paraná, para ajudar na adaptação dos primeiros recuperandos de Porto Alegre e brinca: “Se alguém falar mal da APAC, a gente volta pra cadeia, mas para mostrar a diferença”.

A crença em Deus, nas mais variadas religiões, é uma constante no sistema prisional. Porém, a espiritualidade, quarto dos elementos do método APAC, é um tema de constantes críticas, sobretudo no meio acadêmico. “A espiritualidade é transmitir valores a quem é mais ignorante. Isso é pra quem resolve tudo na coronhada”, afirma Bortolotto. A metodologia, apesar de criada pelo católico Ottoboni, frisa que todas as religiões são bem-vindas — de fato, a assessoria espiritual, protegida pela Lei de Execuções Penais brasileira, abarca qualquer religião na APAC. Contudo, o último dos doze elementos do método, a Jornada de Libertação com Cristo (JLC), apesar de convocar todos recuperandos, não importando o credo, lida diretamente com o Cristianismo e é centrada em dois pilares: a história de Jesus e uma reflexão sobre as próprias histórias de vida dos recuperandos, chamada “teoria da realidade”. A JLC ocorre anualmente e dura quatro dias, de modo que ainda não ocorreu na APAC Partenon, que completa um ano de abertura no próximo mês de dezembro.

Já a assistência jurídica, quinto elemento do método, é feita gratuitamente por um corpo de advogados e busca solucionar possíveis demandas de recuperandos, bem como lidar com processos criminais que alguns ainda sofrem. Os voluntários também ministram palestras semanais sobre algum tema jurídico que seja do interesse de recuperandos. Ana Júlia Odorize, coordenadora do Grupo de Assistência Jurídica, sublinha que o atendimento deve ser requerido institucionalmente para o grupo: “Não se pode prometer algo para um condenado individualmente”. Odorize também reforça o fato de que o grupo que coordena faz reuniões preparatórias, que têm por objetivo conhecer os recuperandos, organizar grupos de estudo sobre execução penal e separar os voluntários em duplas e trios para tornar o trabalho mais eficiente.

A assistência à saúde, sexto elemento do método, traz consigo uma das diferenças mais gritantes em comparação ao sistema comum, onde a busca por atendimento demora a ponto de provocar conflitos entre presos e, eventualmente, mortes. De acordo com Patrícia Couto, do grupo de voluntários responsável pela Valorização Humana, são muitos os problemas de saúde dos recuperandos: “O preso é um cara integralmente adoecido”. Entre os 29 recuperandos da APAC Partenon, 26 são dependentes químicos, cinco têm hepatite C, três são sifilíticos e dois são soropositivos, por exemplo. O recuperando tem uma pasta-prontuário e a medicação utilizada é manipulada por um recuperando pertencente ao CSS, Geovane César, que tem formação em Enfermagem. Acompanhamento psicológico também é oferecido, não apenas aos recuperandos, mas também para as suas famílias.

A valorização humana, sétimo elemento, busca garantir um espaço de livre manifestação e reflexão, cujas bases se assentam em três pilares: educação, capacitação profissional e terapia da realidade. Nesse sentido, os contatos com voluntários e entre os próprios recuperandos se fazem fundamentais para proporcionar oportunidades de troca e aprendizado. Assim, são oferecidas oficinas de redação, literatura, cursos e atividades lúdicas em geral. Na APAC Partenon, cinco recuperandos chegaram analfabetos e hoje já são capazes de ler e escrever graças ao trabalho de voluntários. Também foram ministrados cursos de oratória e uma peça sobre Dom Casmurro já foi encenada. A leitura de livros e a participação em cursos oferece a possibilidade de remição da pena do recuperando, encurtando seu encarceramento através da remição de pena. Segundo a Lei de Execuções Penais, a remição por leitura encurta quatro dias de pena para cada obra lida, com o limite de doze obras por ano. Já a remição por estudo garante um dia a menos de pena a cada 12 horas de frequência escolar. Além disso, os recuperandos participam de atividades físicas, como yoga, ginástica e lazer, que englobam práticas como futebol, corrida e caminhada, todas supervisionadas por voluntários.

A família é o oitavo elemento do método APAC. Se inicia já nas entrevistas para os candidatos a ingressar no CRS, quando os familiares próximos também participam das conversas que averiguam a real intenção do apenado em se adequar à metodologia. Para Bianca Fernandes, responsável pelo Grupo de Assistência à Família, o suporte familiar é fundamental para a integração do recuperando ao CRS — e à sociedade: “Não existe prisão perpétua no Brasil, em algum momento ele vai sair de lá e voltar à família”. Em muitos casos, os recuperandos não recebem visitas de familiares há muitos anos ou nem possuem qualquer contato de algum parente. Em muitos casos, são os voluntários que encontram familiares que não entram em contato há anos, como é o caso do recuperando Charles, que será visto a seguir. Em caso de dificuldade financeira, sanitária ou psicológica, os voluntários também buscam amparar as famílias. “Quando veem que a família é tratada bem, o recuperando muda”, complementa Fernandes. Aos domingos, as tardes são reservadas para as visitas familiares e há um debate com as famílias sobre o método a cada 15 dias. No caso de recuperandos em que não foi encontrado familiar algum, é criado um “casal padrinho”, que visita o recuperando em questão aos domingos para que o mesmo não se sinta só.

O voluntário e o curso para sua formação constituem o nono elemento do método APAC. “É justamente a questão voluntária que desperta nos recuperandos o interesse pela mudança e o respeito pelas pessoas”, diz Odorize, que acrescenta: “Agora, eles têm pessoas que doam seu tempo livre, sem receber nada, para dar atenção a eles. Eles valorizam muito isso”. A busca pelo voluntariado também é uma questão de certa forma individual, como defende Bortolotto: “O risco de fazer o bem é esquecer de que você está lá em primeiro lugar por si”. Maria Lúcia Badejo, voluntária responsável por oficinas literárias e de redação, concorda com o procurador: “A gente tem que parar de esconder que a primeira pessoa que nós queremos ajudar somos nós mesmos. Há dias que não são tão bons, e eu vou para a APAC justamente por saber que saio de lá muito melhor”. Odorize, por sua vez, diz que se tornou uma pessoa mais compreensiva com os outros e consigo mesma desde que começou a trabalhar na APAC. O curso de formação de voluntários, que ocorreu em sua segunda edição de 2019 durante três dias do mês de outubro, busca apresentar cada um dos elementos da metodologia aos candidatos ao voluntariado. Seus participantes apresentam uma característica que é flagrante no próprio corpo de voluntários: a majoritária presença feminina. “Parece ser um reflexo de uma cultura que apresenta a mulher como cuidadora”, afirma Flávia de Quadros, professora da Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e participante de um projeto que entrevistou recuperandos.

O CRS, décimo elemento do método, corresponde à estrutura física na qual os recuperandos passam os dias. Em todas as unidades APAC, elas apresentam características comuns, como a ausência de agentes penitenciários, a falta de armas e uma rigorosa rotina de horários. Nos primeiros momentos da manhã, os recuperandos passam por um momento de socialização e, às 17h30, passa a ser vedada a participação de voluntários dentro do CRS. Além dos já citados dias de visita guiada e visita familiar, os recuperandos contam com horários específicos para suas oficinas e atividades, mantendo seu tempo praticamente ocupado. O CRS da APAC Partenon divide os recuperandos em três celas, equipados com beliches e meticulosamente organizados. Ademais, conta com cozinha bem equipada, com um altar religioso, uma oficina, uma sala-de-aula com biblioteca, um escritório para o CSS e pátio. Em breve, serão instalados computadores que facilitarão o aprendizado através em cursos e oficinas. O CRS da APAC Partenon também conta com uma suíte para visita íntima, uma característica da APAC muito valorizada pelos recuperandos, em que a cônjuge ou namorada do recuperando pode passar a noite com o mesmo em uma rotina de casal e com a privacidade devida. A escala das visitas é organizada pelos próprios recuperandos, que conquistam o direito após 60 dias de confinamento na APAC — caso o recuperando troque de companheira, terá de esperar 90 dias para usufruir a visita íntima.

O mérito, décimo primeiro elemento do método, visa à valorização dos esforços cotidianos feitos pelos recuperandos. São premiados, por exemplo, o melhor dormitório do mês (assim como o dormitório pior organizado ganha de “presente” um porquinho, que exibe em suas prateleiras) e o recuperando do mês, que recebe um troféu. Por outro lado, numa tentativa de aproximar ainda mais o voluntário do recuperando, também é premiado o voluntário do mês. Os trabalhos feitos na laborterapia, por exemplo, são expostos em visitas feitas ao CRS e em feiras fora da APAC, inclusive sendo postos à venda, reconhecendo os esforços dos recuperandos também nesse sentido.

O helicóptero de Douglas

O s elementos do método acabam dialogando, de alguma forma, com a atual história dos próprios recuperandos. Além disso, facilitam a adaptação e a abertura dos apenados a seus companheiros e voluntários. “Quando cheguei aqui, foi tão bom o recebimento. A primeira coisa que o inspetor de segurança fez foi me tirar as algemas, perguntar se eu tava bem. Os agentes da Susepe já olharam com cara estranha, os irmãos já deram um abraço, algo que no sistema comum a gente nunca veria”, diz Douglas dos Santos e Silva, 24 anos de vida comemorados com festa dentro do CRS em meados de outubro. Pela primeira vez desde os 15 anos, Douglas comemorou aniversário. “Vi minha irmã depois de três anos, ela já tava uma moça. Ela tá com 17 anos, meu irmão antes tinha oito ou nove. Meu filho também, cinco anos, primeira festa que consegui comemorar com ele. Sempre quis ajudar meu filho, dar uma festa de aniversário pra ele, mas com a vida que eu levava, não conseguia colocar em prática aquilo que eu pensava.” A festa foi organizada pelos próprios recuperandos e contou com a participação dos voluntários.

Douglas nasceu em Esteio e confessa não ter muitas lembranças de parte de sua infância. “Com 14 pra 15 anos eu comecei a usar droga. Comecei a usar tíner [droga similar à cola de sapateiro e que tem efeitos alucinógenos] e já comecei a pular o muro do colégio para usar droga. Na verdade, como usei muita droga quando era mais novo, dos 10 aos 15 eu não lembro muito da minha infância.” Para o recuperando, esse comportamento mudou a partir de um momento crítico que passou na Penitenciária Estadual do Jacuí (PEJ): “Um dia, eu tomei uns remédios e fui três vezes pro hospital. Nesse vem-e-vai, eu fiz um propósito com Deus. Eu ia aos cultos, mas não praticava, não vivia a palavra de Deus. Eu acabei tendo tipo um AVC, fiquei todo torto, fizeram baterias de exames, mas não foi diagnosticado nada. Quando voltei, decidi seguir o Senhor Jesus, porque ele salvou a minha vida. E consegui”.

Como estava cumprindo suas tarefas culinárias no CRS, Douglas pede desculpas em meio à conversa por seu suposto cheiro de gordura. Na verdade, o cheiro de comida nos dois andares do CRS é delicioso. O esteiense nutre uma grande paixão pela gastronomia, que lhe rendeu um trabalho na PEJ e vários sonhos para a liberdade. “Quando eu sair daqui, queria muito trabalhar com vendas de marmita. É uma coisa que eu sei que vai lucrar bastante, que vou ter uma renda boa. Eu vou poder sair com meu carrinho e começar a fazer tele-entrega, ir em obras, porque as pessoas não saem da obra pra comer, né? E também fazer comida para moradores de rua, quero ajudar outras pessoas através do meu trabalho.”

Douglas lembra, entre sorrisos, que tinha muitos sonhos quando era mais jovem. “Eu queria ser fuzileiro naval, ser atirador de elite no quartel, mas isso foi por água abaixo.” O recuperando também gosta muito de música e costuma desaguar seu talento artístico em voz e violão, embora agora só com louvores. Há um sonho, contudo, que segue vivo na cabeça do recuperando, e ele tem raízes musicais: levar um helicóptero de comida para a África. “Quando eu era mais jovem, gostava muito de assistir Michael Jackson e um dos vídeos que mais me emocionou foi o We Are The World, aquilo mexeu muito comigo. Eu disse pra mim: ‘quando eu crescer, quero ser atirador de elite no quartel e levar muita comida praquelas crianças, ver o sorriso delas’. E eu ainda tenho esse último sonho, mas é muita grana, né? Nem que seja uns caminhões de comida…”

Douglas e seu inseparável violão dentro do espaço ecumênico do CRS / Foto: Pedro Alt

As oportunidades de Charles

Apesar da limpeza impecável do CRS, das regras estritas sobre higiene pessoal e da organização da cozinha, chama a atenção a presença constante de moscas na APAC Partenon. Insistentes, elas sobrevoam as cabeças dos presentes, sobretudo nas áreas ao ar livre. Suas existências são facilmente justificadas ao passar-se pela Cadeia Pública de Porto Alegre — ela cheira muito mal, o cotidiano é o pior possível e os relatos de quem esteve lá corroboram o fato. “A pior parte do sistema [comum] é a represália. Como se criou uma cultura muito forte de que ‘bandido bom é bandido morto’, isso se reflete lá dentro. Se a sociedade cultua isso, quem tem o poder direto sobre o preso vai pensar que ninguém pode vir contra se tratarem a gente mal. Não é desse jeito que se vai recuperar alguém”, diz Charles Henrique Vidal de Andrade, 37 anos e com passagens por Penitenciária Estadual de Canoas (PECAN), PEJ e Central. As moscas parecem ser o símbolo das piores lembranças de quem já esteve no sistema prisional comum, pairando por sobre suas cabeças.

Assim como Douglas, Charles nasceu em Esteio, mas seus primeiros anos atravessaram as fronteiras de Canoas, Gravataí e Cachoeirinha. Apesar dos braços cruzados durante os longos minutos em que falou sobre sua juventude, o recuperando afirma ter tido uma infância feliz: “Não posso reclamar da minha infância. Eu tive toda chance que uma criança poderia ter para estudar… casa, comida, roupa. Foi bem pelo contrário, eu tive foi oportunidade demais. Muita liberdade. Minha avó era uma senhora de idade, eu fazia o que queria, na hora que queria, com quem queria. Comecei a usar droga porque quis. Na curiosidade, fumei um cigarro, passei pra maconha, depois pra cola, dali pra cocaína e da cocaína fui parar no crack”. Criado pela avó, de quem lembra com olhos umedecidos, Charles não teve muito contato com sua mãe durante sua juventude e, em um espaço de dois meses, perdeu aos 15 anos de idade tanto sua criadora quanto seu irmão mais velho: “Ali eu fiquei desamparado, sem chão”. Em um sábado ensolarado, em frente ao altar religioso do CRS, Charles, conhecido como o mais emotivo do CRS, fez um testemunho de seu reencontro com sua mãe, que não via há dez anos. Entre lágrimas, agradeceu o trabalho pessoal de Bianca Fernandes, responsável pelo grupo de Assistência à Família, que encontrou sua genitora, que inclusive fez as pazes com o pai de Charles no começo de outubro no pátio do CRS, o que provocou sentimentos fortes no recuperando. “Por um lado, eu senti uma felicidade muito grande, mas também um arrependimento de ter me colocado nessa situação, de não poder ter dado até agora a melhor assistência aos meus filhos”, diz Charles, que é pai de dois meninos, de 13 e 17 anos.

Charles, em frente à parede pintada no escritório do CSS da APAC Partenon / Foto: Pedro Alt

É consenso entre os voluntários que Charles é um dos recuperandos mais falantes e prestativos do CRS. O recuperando, por sua vez, não cansa de elogiar os voluntários. “O voluntário, que é o coração da APAC, é preparado psicologicamente para lidar com a necessidade do recuperando. Os voluntários são fundamentais dentro do método da APAC, são eles que fazem o elo entre recuperando e sociedade, recuperando e família. É uma ponte.” Na formatura de voluntários, os recuperandos organizam por si próprios um tour pelo CRS, apresentando cada um dos cômodos e a cada um, incluindo uma parte artística, cantando um louvor de Aline Barros, cantora gospel. Na entrega dos certificados aos novos voluntários, feita pelos recuperandos, alguns se emocionaram — incluindo o próprio Charles — e discursos foram feitos.

Quando foi preso pela última vez, Charles trabalhava como líder de uma equipe de oito soldadores em uma empresa de Gravataí. Ele quer voltar a exercer a profissão. “Eu consegui fazer um curso de soldador no Senai. Eu tenho uma paixão, para mim é como se fosse uma terapia, um artesanato. De tanto que eu me sentia feliz, cheguei a ser líder de uma equipe de soldadores e ajudantes. Um cara que só tinha sétima série, um curso básico, conseguir liderar oito soldadores. Eu sou capaz.” O recuperando acha graça de quem pensa que essa tarefa é muito simples para o tamanho de sua liberdade: “Eu falo com alguns irmãos, até alguns voluntários, e eles não compreendem. Eu não coloco como meta, mas como pilar essencial, porque é dali que vai partir tudo que eu desejo pra minha vida — cuidar dos meus filhos, ser chefe de família, trabalhador, ter um acompanhamento psicológico. Por que ninguém vai me atender de graça, né?”

Charles reforça o desejo do acompanhamento psicológico pelo medo de voltar ao crime. “Eu já fiz de tudo, eu só nunca judiei de criança. De resto, eu tava tão perturbado psicologicamente e perdido espiritualmente que pouco me importava se era homem ou mulher. Eu mudei como pessoa. Nós não podemos mudar o passado, mas podemos mudar o futuro, começando pelo presente.” O recuperando aponta que, por mais que seja a terceira, quarta ou décima passagem de um apenado, a APAC é a real segunda oportunidade de um preso. “O coração e o pulmão da APAC são os voluntários, são eles que vão acabar com essa cultura de achar que as pessoas não vão se recuperar se receberem uma segunda chance. No sistema comum, tão nem aí se conseguiu o emprego, se superou algum trauma. É uma falha, né?”

O caderno de Bento

“A APAC oferece muita coisa que a gente não tinha”, reflete Bento*, 58 anos. “É mais aconchegante, a gente conversa, troca uma ideia, no sistema antigo a gente não tinha isso.” A escuta, o olhar nos olhos e o aperto de mão têm uma influência monumental sobre a abertura dos recuperandos. “A sociedade quando vir aqui dentro, pra conversar, abraçar e ver que não tem desigualdade entre a gente…Eu sou uma pessoa normal, tô conversando contigo, e eu sei que tu é uma pessoa normal”, reflete Bento. O recuperando, que tem depressão, crises de ansiedade e oito AVCs na bagagem, lamenta ter que abrir mão de boa parte das atividades físicas e só poder participar de caminhadas na APAC Partenon, mas agradece por ter consultado uma cardiologista na semana anterior, algo que não teve nos últimos anos. “Além disso, aqui eu consigo tomar remédio para ansiedade e pressão”, acrescenta.

Bento, que tem passagens por Central, Penitenciária Modulada Estadual de Charqueadas, PECAN e Presídio Estadual de Arroio dos Ratos, tem orgulho do seu passado trabalhador: “Trabalhei até os 30 anos, trabalhei em empresas boas. Na Pirelli, na Volta do Guerino, em fábricas de borracha. E nenhum na minha família foi por esse caminho, meus filhos estudam, estão bem”. Assim como Charles e Douglas, Bento lamenta que as drogas tenham o colocado fora do caminho que planejava, embora o vício em jogos de azar, que tinha desde os 14 anos, também tenham tido influência no seu caso. “Claro, o cara é um criminoso, e tem vários que realmente fazem várias atrocidades… A mídia também bate muito nisso, de que ‘preso bom é preso morto’. E não é assim, todos nós temos família. O cara faz as cagadas, mas muitas vezes é por causa da favela, porque o cara se envolve com droga, com a noite… Aí o cara cai em desgraça pra sustentar o vício”, reflete.

Em meio às três celas dos recuperandos, uma sala de aula reserva uma pequena biblioteca que é a fonte das mais longínquas viagens feitas pelos apenados, não apenas pela busca por remição de pena, mas por um gosto por leitura incentivado e adquirido com o passar dos meses. No caso de Bento, essa é a primeira vez em que há a chance de se debruçar sobre livros desde a condenação. “No sistema, são duas horas de pátio e 22 horas trancado. Se eu não trabalhasse ou estudasse, ficava 22h trancado. Aí eu comecei a ler a Bíblia, né? Ali no Central não tem como, é galeria, 24h por dia aberto, só zoeira, não tem concentração, 35 ou 40 pessoas no mesmo ambiente. Em outros lugares é mais tranquilo, na PECAN eram quatro pessoas por cela, Arroio dos Ratos, oito. Mas tempo e livros pra ler foi aqui que eu tive.” E Bento exibe, orgulhoso, seu caderno em que anota os livros lidos desde que chegou ao CRS. Ansioso pela liberdade, seu livro favorito é justamente um diário de viagens: Em Busca do Sonho, que conta relatos das aventuras náuticas da Família Schürmann.

O caderno com as leituras feitas por Bento desde a chegada na APAC / Foto: Pedro Alt

Bento diz não saber exatamente o que fazer quando ganhar a liberdade, o que deve acontecer em dois ou três anos, segundo suas previsões. Quer, antes de tudo, terminar o Ensino Médio dentro do CRS. Porém, o recuperando afirma que tinha o sonho de escrever um livro que contasse sua vida, suas histórias e até mesmo suas relações com o crime. Hoje, pensa que talvez o tempo e suas próprias atitudes tenham colocado suas pretensões em xeque. “Eu queria escrever um livro, mas perdi muito tempo… Escrever sobre minha vida, minha vida no crime. Mas aí já é outra coisa, de repente o cara vai contar algo que não vai ser bem aceito pelas pessoas. Pode sair uma coisa meio ‘quente’, que não vai ter aceitação, né?”. Por que não, Bento?

*Bento é um nome fictício

--

--

Pedro Alt
Vozes em Travessia

Graduado em Relações Internacionais, estudante de Jornalismo. Pedestre.