Agricultura urbana

O verde do concreto

As hortas comunitárias estão transformando os espaços urbanos enquanto reconectam a comunidade com o alimento e a natureza

Nicole Goulart
Vozes em Travessia

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Foto: Horta da Formiga, por Nicole Goulart

Elas estão longe de se parecerem com a imagem tradicional de uma horta, linear e interiorana. A agricultura urbana, no formato de hortas comunitárias, é o cultivo de produtos alimentares e não alimentares nos centros e nas periferias das cidades, em lugares que não estavam sendo aproveitados — em quintais, pátios e terrenos abandonados. São espaços coletivos em que as plantas são destinadas ao consumo próprio ou à venda.

As verduras, os legumes e as ervas medicinais brotando no meio da cidade têm o propósito de reconectar os voluntários da hortas com a natureza e com a origem do que consomem. Produzir o alimento localmente, segundo a cartilha da Associação de Hortas Coletivas do Centro Histórico de Porto Alegre (AHCCH), evita o transporte por grandes distâncias e minimiza a emissão de gás carbônico. Além de promover uma produção diversificada que respeita os ciclos naturais, também usa racionalmente os recursos naturais — como a água da chuva. Dessa forma, o indivíduo assume a responsabilidade de não emitir resíduos químicos que poluem o ar, o solo e as águas.

Carmen Fonseca, presidente da AHCCH, divide as vantagens em individuais, coletivas e ambientais. Na primeira categoria, ela lista os alimentos frescos e livres de agrotóxicos, os benefícios que o manejo com a terra traz para o corpo e a mente, junto com o desenvolvimento de habilidades ligadas à jardinagem.

Em relação aos benefícios coletivos, uma horta aproxima os vizinhos, promove uma educação ambiental com as oficinas de reciclagem e compostagem, valoriza o bairro e se torna um ponto de convivência. As vantagens se estendem ao ambiente: as áreas verdes diminuem as ilhas de calor, resgatam a importância da preservação e servem de refúgio para a biodiversidade local.

Em Porto Alegre, existem diversos espaços com essas propostas. A Horta Comunitária Lomba do Pinheiro, uma das mais antigas, começou em 2004, com a implantação do Comitê Regional do Fome Zero na região. O foco de trabalho era famílias com crianças de zero a seis anos em risco nutricional. Entretanto o Comitê Regional foi desativado em 2005 com a transição do governo municipal, e a horta parou de funcionar, sendo reativada em 2013. Com o plantio de hortaliças, chás e temperos e com o oferecimento de oficinas para a produção de produtos, essa nova etapa tem o apoio da Prefeitura Municipal de Porto Alegre (PMPA), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre (SMED).

Foto: Escadaria da Rua General João Manoel, por Nicole Goulart

Na Escadaria da Rua General João Manoel, está a Horta da Formiga. Conhecida assim por estar no Morro da Formiga, no Centro Histórico de Porto Alegre, a horta se instalou em um terreno privado cedido à AHCCH em regime de comodato pelos proprietários. Em atividade desde 2017, o espaço conta com ações coletivas de plantio, limpeza, compostagem e oficinas. O local que antes era ocupado por pessoas em situação de rua e usuários de drogas, hoje é um lugar cultural que integra todos seus frequentadores.

Comodato: tipo de empréstimo gratuito de coisas que não podem ser substituídas por outras iguais.

Para Ana Clara Souza, doutora em Administração na UFRGS, pesquisadora e voluntária da Horta da Formiga, o espaço é muito mais que plantar e colher. “Quando eu fui participar, fui com aquela perspectiva de horta bem padrão. Eu vou chegar lá, vai ter uma terra. Eu não sei plantar nada, mas vou aprender, muito nessa perspectiva de plantar e colher. Pra mim, a fundamental importância foi descobrir que a agricultura urbana, o movimento urbano é muito mais complexo que isso”, diz ela.

Outro espaço semelhante na capital é a Horta hidropônica do Assentamento Urbano Utopia e Luta, na Avenida Borges de Medeiros, no Centro Histórico. Ela começou a ser desenvolvida em 2010 e inaugurada em 2011. Em seus 64 metros quadrados, a área produz hortaliças, frutas, ervas medicinais e temperos. Por ser hidropônica e ser localizada no terraço de um prédio urbano, é considerada a primeira no Brasil e no mundo nesse modelo. A iniciativa faz parte do projeto Plantando Alternativas: Gerando Sustentabilidade, patrocinado pelo programa Petrobras Desenvolvimento & Cidadania.

Hidroponia: técnica de cultivo de plantas sem uso de terra (solo). As raízes ficam dentro da água. Soluções fertilizantes são adicionadas a água para alimentar as plantas.

Mas nem tudo são flores em uma horta. A presidente da AHCCH afirma que não é fácil lidar com os diferentes desejos e anseios das pessoas, com a ausência de engajamento da comunidade e com a dificuldade de manter a disciplina. “Mais especificamente, um dos principais desafios consiste no alcance de uma sistematização mínima de trabalho, que inclui divisão de tarefas e turnos. Outro obstáculo é incluir de maneira efetiva o trabalho voluntário com a horta na rotina do grupo”, complementa.

A complexidade desse cenário incomum no imaginário das pessoas traz impactos que vão além da relação indivíduo-alimento. As hortas comunitárias se aprofundam e se confundem com as raízes de problemas estruturais, como a ocupação dos espaços urbanos, a fome e a moradia. A agricultura urbana não só abriu caminho para o plantio de alimentos nos grandes centros, mas também provocou discussões com isso.

Dinheiro não dá em árvore

Mesmo a horta urbana sendo uma mobilização que traz benefícios, nem todo mundo enxerga dessa forma. “Têm pessoas que não reconhecem essa possibilidade [horta urbana] e que vão ser contra a ocupação dos espaços. Tem gente que vai achar barulhento e tem gente que preferia que o espaço fosse um estacionamento”, afirma Ana Clara. A especulação imobiliária também é tema recorrente no debate sobre a ocupação de espaços ociosos por hortas urbanas, principalmente quando se pensa no retorno financeiro.

Em novembro de 2015, havia o projeto de construção de uma via que ligaria às avenidas São Pedro e São Paulo, passando pela Horta Comunitária Lomba do Pinheiro. Com isso, o terreno de 7 mil metros quadrados seria descontinuado mais uma vez. Entretanto, em junho de 2016, a Câmara Municipal de Porto Alegre a transformou em Área de Proteção Ambiental Natural, após pressão da comunidade para manter o espaço, proibindo abertura de vias para trânsito.

Foto: Associação de Hortas Coletivas do Centro Histórico de Porto Alegre, por Nicole Goulart

Nesse movimento de luta por espaços verdes, a AHCCH tenta convencer a prefeitura, desde 2016, a ceder um terreno na Rua José do Patrocínio, na Cidade Baixa, para a implantação de uma horta. O terreno, que sem uso há mais de uma década, acumula lixo, ratos e insetos de acordo com a Associação. Para Carmen Fonseca, uma horta naquele terreno poderia abastecer cinco bairros vizinhos, além de fomentar o comércio local e diminuir a emissão de carbono. “Se em 2016, quando pedimos o terreno, a prefeitura tivesse nos cedido, já teríamos produzido mais de duas toneladas no local. Mas eles têm outros interesses para o terreno”, completa.

Regando as sementes

No final de 2017, foi criado o Fórum Gaúcho de Agricultura Urbana e Periurbana Sustentável. Com o intuito de debater sobre a agricultura urbana e periurbana no estado gaúcho, o Fórum conta com a participação de grupos e instituições ligados ao assunto, como Horta Comunitária da Lomba do Pinheiro, AHCCH, Secretaria Estadual de Desenvolvimento Rural (SDR), Fundação Gaúcha do Trabalho e Ação Social (FGTAS), UFRGS e Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Periurbanização: referentes a periferia. Concentração da população e das atividades econômicos em áreas situadas nos limites da cidades.

Nas discussões, identificou-se a necessidade de criar uma política estadual sobre o tema. Aprovada com unanimidade, a Lei 15.222/18, de 28 de agosto de 2018 — regulamentada no decreto 54.459/18 — institui a Política Estadual de Agricultura Urbana e Periurbana no Estado do Rio Grande do Sul, que conta com dez artigos.

“Estamos muito otimistas que essa nova legislação vai ser uma grande aliada no aumento significativo de iniciativas não só comunitárias, mas também de gente que quer investir”, afirma Vilmar Gomes, coordenador executivo do Fórum Gaúcho de Agricultura Urbana e Periurbana Sustentável. Ele acredita que o marco legal e a divulgação ajudarão aqueles que queiram começar uma horta urbana a receber financiamento para compra de mudas e adubos e aqueles que já são agricultores urbanos a vender seus produtos usando um talão de produtor.

As hortas comunitárias transformam a cidade de concreto, mas muito ainda precisa ser feito para se tornar parte da cultura urbana. Para Carmen, é necessário o conhecimento da legislação, além do engajamento para ocupar com jardins comestíveis os espaços ociosos.

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