Esporte

Várzea alegre

Entre vilas e chão batido, conheça o futebol alternativo à dupla Grenal

Matheus Rodrigues
Vozes em Travessia

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Banner exposto no campo do Marinha / Foto: Matheus Rodrigues

Esqueça a dupla Grenal e seus pujantes estádios, salários estratosféricos e a extensa cobertura midiática. Aqui, no campo do Marinha, há poucas regras. Você pode até virar gandula — o que de fato aconteceu com um homem que levava um menino em suas costas e que acabou tendo que largá-lo às pressas para que o jogo prosseguisse.

E segue o jogo

Marcado para às 16h30min do dia 2 de novembro, a partida entre São Borja e União das Vilas, válida pelo Campeonato Municipal de Várzea — Categoria Veterano (para atletas acima dos 40 anos), começa com atraso. As equipes do jogo anterior mal haviam saído. A demora parecia até compreensível, já que o Flamengo do Morro, equipe que goleou em 6 a 1 o São Lourenço, queria aproveitar ao máximo cada segundo da vitória expressiva em cima do adversário.

“E aí, secador?”, grita um dos jogadores do União das Vilas, que aos poucos entra no gramado junto de seus colegas, a um dos atletas do Flamengo do Morro. O gesto mostra que, mesmo com suas animosidades, a várzea é um espaço de divertimento. Luciano Dorneles, um dos espectadores dessa partida, corrobora com esta ideia. “O futebol de várzea não pode terminar. Aqui eu encontro amigos. Tu chega aqui, tu vê todo mundo e cumprimenta”, diz ele. Dorneles participou de diversos campeonatos, como o Municipal e a Copa Paquetá, e se considera um aficionado pelo esporte. Jeferson, filho de Luciano que acompanhava a partida com o pai, foi uma das razões para que ele decidisse abandonar os torneios. Comerciante, ele revela que o dinheiro recebido nas competições não era suficiente para sustentar a família. “Se eu pudesse jogar, eu o faria. Agora é a vez dele (Jeferson)”. O menino de 13 anos, por sua vez, conta que até curte futebol, mas não se vê necessariamente trilhando os caminhos do pai. “Na escola eu jogo no gol. É mais como divertimento, mas vi que não era isso”, completa.

A definição

Mesmo com diferenças no formato de cada partida ou campeonato, o futebol de várzea consiste em ser uma modalidade amadora, com pouca organização, praticada em campos de chão batido ou de baixa qualidade. O termo “futebol de várzea” surgiu em São Paulo, quando jogadores disputavam jogos em várzeas, ou seja, campos às margens do rio Tietê, antes mesmo da profissionalização do esporte no Brasil.

Desde então, a “várzea” é a morada de jogadores que, em sua maioria, jogam apenas por diversão, durante os finais de semana, sem pretensões de profissionalização. Uma das exceções é Leandro Damião, ex-jogador de várzea em times da cidade de São Paulo, que se tornou conhecido nacionalmente ao jogar pelo Internacional, vencendo uma Libertadores, uma Recopa Sul-Americana e três Gauchões com o clube.

O porta-voz

Alexandre Marques na capa do jornal Diário Gaúcho em 2012 / Foto: Arquivo Pessoal

Com a baixa cobertura feita pelos veículos tradicionais de jornalismo esportivo, o futebol de várzea em algum momento tornaria necessária a criação de espaços que falem sobre a modalidade. Na Capital, o portal de maior popularidade é o blog Expresso da Várzea, editado por Alexandre Marques, ex-árbitro, de 55 anos, que mantém o site desde 2011 e conta com mais de 2 milhões de acessos desde sua criação. Inicialmente, o blog costumava publicar notícias relacionadas ao futebol em geral, mas hoje veicula apenas tabelas e resultados de campeonatos amadores.

Com 1589 jogos apitados, Alexandre começou a fazer o curso de arbitragem por conta de um convite de um amigo e não largou mais a tarefa. Ele lembra com carinho da ocasião em que foi selecionado para trabalhar na final de um campeonato infantil do São José — e isso, logo em seu primeiro ano. “Eu estava em uma boa fase. Voando, como se diz, né? Bem magrinho (risos). A minha esposa estava lá, com a minha menina que estava por nascer. Tenho uma foto dela na arquibancada, junto com meu irmão e uma conhecida. Foi o que mais me marcou”, lembra. Ele também cita a reportagem feita para o jornal Diário Gaúcho em 2011, já aposentado, como um ponto alto da sua carreira (foto).

A várzea, relatada por Alexandre em seu blog como “faroeste do futebol”, fez jus à alcunha durante toda a carreira dele. Como a arbitragem era seu sustento durante uma época, Marques chegava a apitar 10 jogos em um final de semana. “Eu não posso nem ver mais banana. Comia sanduíche dentro do ônibus, fumava muito.” Como as partidas não contam com o aparato e a preparação dos jogos profissionais, a segurança também era um problema. “Já saí escoltado pela Brigada e (por) carros particulares. O centroavante leva um gol, o goleiro leva um frango e eles têm que culpar alguém. Eu sempre tentei fazer o melhor possível”, revela. Alexandre também conta que chegou a ser agredido em uma partida realizada em Guaíba, Região Metropolitana de Porto Alegre, após uma invasão ao vestiário. Alexandre, então árbitro da partida, “levou 3 pontos” e chegou a realizar corpo de delito junto à polícia. “Já fui queimado com cigarro, já tomei pedrada na cabeça, agredido por mulher na saída de jogo em Cachoeirinha”, completa.

Com aproximadamente 11 anos de profissão, Alexandre precisou dar um adeus prematuro para a profissão quando, após um jogo feito em 2009, sofreu um infarto. Em 2017, um novo infarto. “Eu custei a acreditar quando o médico falou, pois eu gostava de assoprar”, lamenta. O distanciamento do campo e uma denúncia falsa de ter voltado a apitar jogos, o que minou a sua aposentadoria por um tempo, acabaram levando o ex-árbitro para a depressão. O seu maior refúgio é o Expresso da Várzea, que, mesmo sem a presença de Alexandre nas partidas que cobre, é abastecido por informações enviadas a ele em grupos de Whatsapp. Contudo, ele alerta: “O blog é feito mais para liberar o estresse. Uma terapia. Mas muitas vezes eu penso em largar de mão, pois sempre que o ‘cara’ pede um apoio, uma ajuda de custo, os caras nunca têm”, pondera.

Várzea é comunidade

O futebol de várzea, por conta de suas especificidades, propicia que os clubes tenham forte identidade com os moradores do bairro onde jogam. Esse é o caso do Flamenguinho da Tuca, equipe que tem sede na vila do campo da Tuca, bairro Partenon em Porto Alegre. Fundado em 1975, o clube é um dos mais tradicionais da cidade e participa de diversos torneios amadores. “Se tu andar pelas comunidades, tu vai ver alguém com a camisa do Flamenguinho”, afirma Rafa Santos, segundo secretário do clube. Segundo ele, é comum ver o clube levar ao menos 30 pessoas para jogos normais, sendo que o público aumenta enormemente em clássicos de bairro, como o contra o Guarani, podendo colocar uma lotação de 350 a 400 espectadores.

O Campo da Tuca teve uma história marcada pela luta por direitos básicos, como água canalizada, luz e saneamento, e promoção de ações sociais para a comunidade. E o Flamenguinho fez parte disso. “Minha relação (com o clube) é familiar, muito antes mesmo de eu nascer, o Flamenguinho já estava instituído na minha história. A minha família é de comunidade. De negros, pobres, trabalhadores, e posso até dizer, honestos, já que nunca fizemos nada para ninguém”, explica Rafa. O Flamenguinho, em sua gênese, promovia oficinas, festas para crianças, entre outras atividades. Mesmo que a intensidade desses projetos não seja a mesma de antigamente, o secretário do clube revela que tem diversos projetos para a equipe dentro e fora do futebol. Em relação ao esporte, ele almeja retomar a categoria livre para os jogadores e tenta colocar o clube para jogar em estádios, como o Sadi Schmidt, em Campo Bom. Quando o assunto é a comunidade, Rafa conta que o Flamenguinho promove grandes festas em datas comemorativas, com arrecadação de alimentos, e analisará implantar uma espécie da apadrinhamento de crianças, ideia que surgiu de um jogador da equipe.

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O Campeonato Municipal de Várzea — Categoria Veterano segue acontecendo, assim como outros torneios que devem contar com a participação de todos os clubes citados na reportagem. A várzea segue seu caminho, entre paus e pedras, buscando alegria nos locais onde há povo e futebol.

Reportagem entregue em novembro/2019.

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Matheus Rodrigues
Vozes em Travessia

Estudo jornalismo, uma das 780 profissões que eu queria ter. Amo música internacional, futebol, Pepsi e xis.