Tabata Tesser: “A tradição católica nos permite afirmar que as mulheres têm autoridade moral para decidir sobre sua vida, sua sexualidade e sua reprodução sem deixar de serem católicas”

Jeferson Batista
Vozes Pela Diversidade
9 min readMay 5, 2020

Ativista da ong Católicas Pelo Direito de Decidir fala sobre as principais pautas da luta pelos direitos das mulheres dentro das igrejas

Jeferson Batista

Apesar do protagonismo das mulheres nos ambientes religiosos, sobretudo nas bases, a Igreja Católica Apostólica Romana, oficialmente, reserva lugares secundários às mulheres, que não podem ser sacerdotisas, nem diaconisas. De acordo com pesquisa do Datafolha, elas são 51% dos adeptos ao catolicismo.

Diante disso, a ong Católicas Pelo Direito de Decidir, fundada em oito de março de 1993, busca “contribuir com a construção do discurso ético-teológico feminista pelo direito de decidir que defenda a autonomia das mulheres, a diversidade sexual, a justiça social e o direito a uma vida sem violência” afirma a socióloga Tabata Tesser, 24 anos, ativista da organização.

Tesser, que atuou na Pastoral da Juventude em Garulhos (SP) até os 16 anos, é militante dos movimentos sociais, membro da equipe de Católicas pelo Direito de Decidir e ativista da Rede Ecumênica da Juventude (REJU). Feminista e católica, defende um diálogo com outros setores para “desmistificar o preconceito sobre as mulheres católicas e evangélicas”. Acompanhe a entrevista exclusiva para o Vozes Pela Diversidade.

“Católicas apoia-se na prática e teoria feministas para promover mudanças em nossa sociedade” Imagem: Reprodução Redes Sociais

Católica e feminista. Como conciliar essas duas identidades?Reconhecendo que a trajetória do cristianismo culminou em processos que invibilizaram mulheres e fortaleceram processos dominadores do poderio-masculino. Com isso, se somos imagem e semelhança, ignorar, escamotear, esnobar e apagar as mulheres, seria (e é) no mínimo, uma ofensa a própria constituição da igreja. Nos reconhecemos feministas&católicas porque recordamos que foram as mulheres as primeiras à testemunharem a ressurreição de Cristo. Foi no testemunho bíblico — fruto da oralidade popular — que tivemos o primeiro caso de impedimento de feminicídio, quando não deixaram uma mulher ser apedrejada até à morte. Além disso, somos católicas&feministas porque inauguramos uma hermenêutica-feminista sobre a bíblia, olhando para o livro sagrado à partir das perspectivas históricas e culturais de gênero e raça e por estudos feito por mulheres (teólogas, biblistas). Reconhecemos que as violências teológicas (muito mais que simbólicas) são projetos dominadores, genocidas, etnocidas e racistas pela qual à igreja foi e é responsável. Trabalhamos para mudar essa realidade dentro e fora do cristianismo brasileiro.

Fale um pouco do trabalho da ong Católicas Pelo Direito de Decidir. É uma das pioneiras no Brasil em abordar os direitos das mulheres dentro das igrejas, correto?

Imagem: Católicas Pelo Direito de Decidir

Católicas pelo Direito de Decidir foi fundada no Brasil no Dia Internacional da Mulher de 1993. Católicas apoia-se na prática e teoria feministas para promover mudanças em nossa sociedade, especialmente nos padrões culturais e religiosos. Consideramos que as religiões devem ajudar as pessoas a terem uma vida digna e saudável, e não dificultar sua autonomia e liberdade, especialmente em relação à sexualidade e reprodução. Por isso, lutamos pela laicidade do Estado que deve ser livre da interferência religiosa na criação e condução das políticas públicas. Nós não estamos sozinhas nesta luta, há outras Católicas pelo Direito de decidir pelo mundo. Estamos na América Latina, nos EUA e na Europa. Todas trabalhamos de forma articulada com os mesmos propósitos. O objetivo da nossa organização é contribuir com a construção do discurso ético-teológico feminista pelo direito de decidir que defenda a autonomia das mulheres, a diversidade sexual, a justiça social e o direito a uma vida sem violência. Conscientizar a sociedade de que a experiência humana da sexualidade e da reprodução de todos e todas deve ser reconhecida, respeitada e vivida de forma autônoma e livre. Promover o diálogo inter-religioso e uma cultura de respeito à livre expressão religiosa. Defender os princípios democráticos de laicidade do Estado, particularmente a sua autonomia frente a grupos religiosos. Trabalhar pela aprovação e efetiva implementação de leis, políticas públicas e serviços necessários à plena cidadania das mulheres, jovens, LGBTs, negras e negros. Entre nossas principais atividade está o advocacy, estamos presentes no Congresso Nacional, em interlocução com representantes dos setores Executivo e Judiciário, assim como de organismos internacionais (ONU e OEA), visando a implementação de políticas públicas que sejam pautadas pela garantia dos direitos humanos. Dialogamos e nos articulamos com movimentos sociais, entidades de classe, sindicatos, redes nacionais, regionais e internacionais. Promovemos oficinas, cursos, assessorias, debates, seminários e participamos de diversos eventos focados nos direitos das mulheres e demais públicos de nosso interesse. Além disso, temos à nossa Rede Nacional de Ativistas, onde realizamos oficinas em todo País, especialmente no Norte e Nordeste, com mulheres envolvidas com organizações religiosas e movimentos sociais, sobre os argumentos ético-religiosos favoráveis aos direitos das mulheres.

Alguns ativistas cristãos LGBT, por exemplo, afirmam que existe uma incompreensão de parte de movimentos progressistas quando o assunto é a luta por direitos dentro das igrejas. No movimento feminista, isso também ocorre? De que forma as religiosas se inserem nos movimentos de mulheres não religiosos?

Isso ocorre pelo fato do campo progressista da última década ter se desresponsabilizado de fazer uma aproximação honesta com o campo religiosos (sem fins eleitorais e etc). Sobretudo nos movimentos feministas, o que temos é uma aversão às religiões (o que até faria sentido pelo processos dominadores) mas o que existe — na verdade — é uma repulsa aos próprios religiosos/as. Se esquecem que as religiões são questões centrais para a vida das mulheres brasileiras e portanto, se querem dialogar com estas mulheres — à religião seria uma chave narrativa essencial. Atuamos dentro dos movimentos feministas para desmistificar o preconceito sobre as mulheres católicas e evangélicas. Contribuímos na construção política do 8 de Março, do 25 de Julho e do 28 de Setembro, datas essenciais para a luta das mulheres no Brasil.

“Atuamos dentro dos movimentos feministas para desmistificar o preconceito sobre as mulheres católicas e evangélicas”

O aborto legal é uma das principais pautas dos grupos religiosos feministas, correto? Com quais argumentos você defende essa pauta?

“Escutar nossa consciência não significa ignorar as normas de nossa igreja” Imagem: Reprodução Redes Sociais

A decisão de interromper uma gravidez é um sério dilema ético no qual se consideram todos os fatores a favor e em contra para trazer ao mundo uma criança, como as condições de vida da família, a situação do casal, a situação econômica, o plano de vida, entre outros fatores Em algumas situações moralmente difíceis o melhor é atuar de acordo com o que consideramos sensato, razoável e bom, ainda que não coincida com as normas e com as autoridades de nossa igreja, o que implica atuar em liberdade de consciência. Na tradição católica a liberdade de consciência tem um grande valor porque é a base da dignidade humana. Somos pessoas com autoridade moral, capazes de tomar decisões de acordo com o que consideramos melhor e assumindo em cada decisão nossa liberdade e nossa responsabilidade. As decisões tomadas em consciência são decisões moralmente válidas que devem ser respeitadas. Este respeito implica no reconhecimento da autonomia da consciência individual, da autoridade moral que têm todas as pessoas para decidir livremente a melhor opção de acordo com suas circunstâncias, incluídas as decisões relacionadas com a sexualidade, a reprodução e o aborto. Escutar nossa consciência não significa ignorar as normas de nossa igreja e ignorar as opiniões de outras pessoas. Sempre será muito valioso ter em conta as normas, escutar outras ideias, conhecer outras experiências e nos informarmos amplamente, pois assim teremos presente distintos caminhos, formaremos uma opinião, um critério e poderemos meditar desde o fundo de nosso coração sobre o que é bom e razoável para nós. A tradição católica nos permite afirmar que as mulheres têm autoridade moral para decidir sobre sua vida, sua sexualidade e sua reprodução sem deixar de serem católicas. Os ensinamentos morais não são infalíveis, ou seja não são um dogma. Isto significa que nenhum Papa até a atualidade realizou uma declaração ex cátedra para afirmar que os ensinamentos morais são verdades absolutas. Em outras palavras, a tradição aceita diversas formas de interpretar e considerar a conduta dos fiéis católicos, tomando em conta suas circunstâncias. Frente a um dilema moral, como a interrupção de uma gravidez, as católicas não só têm o direito mas também o dever de tomar suas decisões de acordo com o que diz sua consciência, inclusive quando suas escolhas contradizem os ensinamentos da Igreja Católica que não foram declarados dogmas.

Além da questão do aborto, quais outros temas são centrais no ativismo religioso feminista?

Estado laico, combate à LGBTfobia, diálogos inter-religiosos, justiça reprodutiva, combate aos racismos e direitos sexuais e direitos reprodutivos.

Como avalia o papel da mulher dentro da Igreja Católica?

Atualmente ainda sob à pena da desmoralização teológica mas com finos avanços na gestão Francisco. O momento sinodal amazônico contou com uma contribuição importantíssima das mulheres para pensarmos uma fé descolonizadora e colocar como centro do debate o papel das mulher dentro da igreja.

O papa Francisco instituiu uma nova comissão de estudos sobre o diaconato feminino esta semana. Pensando nesse movimento mais recente, qual sua avaliação do papado de Francisco? Houve avanços do ponto de vista dos direitos das mulheres?

O diaconato de mulheres (trans e cis) é uma demanda urgente da igreja, mas devemos refletir como seria a vida dessas mulheres dentro destes ambientes coloniais, hierárquicos, patriarcais e poderosos. Uma grande teóloga que contribui fielmente para novas narrativas e hermêneuticas feministas, Elisabeth Schussler Fiorenza, nos convida à refletir sobre uma “ekklesia de mulheres” rumo ao discipulado de iguais. Fiorenza nos convida a fortalecer a integração das mulheres na igreja na medida em que vamos repensando outras formas de estruturar a igreja. Isso passa por uma nova dimensão sobre poder e democracia. O discipulado de iguais é uma proposta de romper com a supremacia masculina eclesial e confiar as mulheres um espaço seguro, democrático e de sabedoria espiritual para que novas formas de encarnar e ser igreja floresçam. Obviamente o Papa Francisco não está comprometido com romper essa lógica. Sabemos que o rompimento dessa lógica custaria — para a igreja masculina — desmanchar toda expressão de dominação romana que levou os homens a pirâmide do poder. E isso, nem Papa Francisco e diversos padres progressistas ou não, estão afim de assumir.

“Acredito ser fundamental conversar sobre os direitos das mulheres dentro das religiões cristãs, até porque, não é possível falar sobre as mulheres brasileiras sem desassociar da religião que elas confessam” Imagem: Reprodução

Existem iniciativas ecumênicas entre as religiosas feministas? Iniciativas que unem pessoas de diferentes segmentos religiosos? Se sim, qual a importância disso?

Além das Católicas pelo Direito de Decidir, existe o movimento Cristãos/as pela Democracia (que une estes campos) e movimentos de mulheres cristãs como as Evangélicas pela Igualdade de Gênero (EIG), o coletivo FÉ_ministas, Vozes Maria, Feministas, O Reino em Pessoa (misto), Rede Ecumênica da Juventude (REJU) e etc. São grupos que se fortalecem na espiritualidade libertadora, trazendo uma nova perspectiva feminista para o cristianismo, para à vida e para o movimento de mulheres.

“Combater estes projetos usurpadores do cristianismo para propagar ódio, mentira e desprezo à vida das mulheres é tarefa de todos os cristãos e cristãs comprometido com a civilização do amor”

Por você considera importante falar de direitos das mulheres dentro das igrejas? De que modo esse debate pode contribuir com a sociedade?

Acredito ser fundamental conversar sobre os direitos das mulheres dentro das religiões cristãs, até porque, não é possível falar sobre as mulheres brasileiras sem desassociar da religião que elas confessam. É preciso reconhecer que o Brasil vive neste exato momento um processo de transição religiosa (de majoritariamente católico para confessionalmente protestante), e com isso, novas narrativas de dominação através do fundamentalismo religioso e do lunatismo são colocadas para as mulheres. Recordamos que a farsa da ​“ideologia de gênero”​, “​vida sim, aborto não” e o recente projeto da Ministra Damares de propor uma “abstinência sexual para jovens”, são pautas que são veementemente calcificadas ao fator religioso e com a dimensão moralista. Combater estes projetos usurpadores do cristianismo para propagar ódio, mentira e desprezo à vida das mulheres é tarefa de todos os cristãos e cristãs comprometido com a civilização do amor.

Para saber mais sobre o assunto: Católicas Pelo Direito de Decidir no Facebook e no Instagram |Livro Teologias Fora do Armário, organizado pela ong Católicas Pelo Direito de Decidir

Revisão de Conteúdo: Luis Rabello

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