Leituras para escrever para fala

VUI.BR
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11 min readNov 25, 2021

Como bibliotecário e profissional com funções que envolvem escrita e fala de interfaces conversacionais, decidi fazer uma lista sucinta de alguns livros que me ajudaram a entender como funciona a comunicação oral do brasileiro e refletir esse conhecimento no tipo de trabalho que exerço: escrever para fala.

Se você também escreve para bots, sobretudo para os que atuam através de voz (seja por TTS ou prompts pré-gravados em estúdio), elaborei esse texto pensando em alguns títulos que acredito ser relevantes para ajudar na naturalidade das conversações humanos-máquina.

Uma vez fui a uma palestra de um fotógrafo que foi apresentar o seu trabalho. No final da palestra, em meio a um tanto de perguntas sobre seu ofício, alguém decidiu pedir dicas para aprender a tirar boas fotos. Para minha surpresa, naquele momento, a resposta do fotografo foi: “Esqueça a técnica da câmera e vá ler Guimarães Rosa”.

Apesar do choque, entendi que era simbólica a resposta dele. E hoje, com esse texto, a vontade que tive foi de fazer a mesma coisa, ainda mais por ele sugerir entendimento sobre algo inerente do ser humano: a fala. Como ousar dizer como deve ser escrito as palavras para serem faladas, ainda mais para nativos do mesmo idioma. No entanto, acredito que, como designers de jornadas conversacionais ou UX Writers de interfaces produzidas no Brasil, devemos nos pautar por alguns estudiosos essenciais sobre o tema da oralidade. Para Bagno, o mais interessante entre eles, na minha opinião, nossa expressão oral do dia-a-dia é classificada como “fala conversacional urbana espontânea popular do cotidiano”. Então…

Acredito que, para essa questão específica do português falado, debruçar-se sobre a língua demanda não só ter o desprendimento de normas tradicionais, mas também praticar o exercício da consciência sobre as diferenças sociais, econômicas e culturais, além de outros fatores que influenciam e caracterizam a riqueza e a fluidez do nosso idioma e a forma como ele é utilizado em nosso país.

Há outros conceitos e teorias encontrados em estudos como os de Jessé de Souza, em seus livros “Subcidadania brasileira” ou “A ralé do atraso”, e também através da obra de Sérgio Buarque de Holanda “Raízes do Brasil”, que apesar de haver mais de 80 anos desde sua primeira edição, ainda hoje diz muito sobre nosso país. No entanto, as dicas serão apenas no campo da linguística.

Sem mais delongas, vamos à lista de livros que teoricamente contribuirão, e muito, para uma fluidez e naturalidade na fala dos robôs:

O divisor de águas — Preconceito linguístico

Autoria: Marcos Bagno

Lançado em: 1999

Resumo: O livro aborda questões sobre uma educação linguística voltada para a inclusão social. Ele se tornou uma arma de combate ao preconceito contra a forma como se fala ou se escreve dentro ou fora da escola, pelos brasileiros.

O livro traz o estudo afiado do autor, como por exemplo, exemplificar sobre a posição dos elementos em determinados enunciados, e os distintos significados que essa dinâmica traz. Além disso, traz também reflexões sobre a utilização da norma culta.

O livro possui quatro capítulos, no entanto, só o primeiro capítulo já vale a leitura (mas, de verdade, recomendo o livro todo. Eu, inclusive, já o li duas vezes).

Nesse primeiro capítulo encontram-se oito mitos:

Mito nº 1 “A língua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente”;

Mito nº 2 “Brasileiro não sabe português / Só em Portugal se fala bem português”;

Mito nº 3 “Português é muito difícil”;

Mito nº 4 “As pessoas sem instrução falam tudo errado”;

Mito nº 5 “O lugar onde melhor se fala português no Brasil é o Maranhão”;

Mito nº 6 “O certo é falar assim porque se escreve assim”

Mito nº 7 “É preciso saber gramática para falar e escrever bem”

Mito nº 8 “O domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social”.

Um trecho: “A gramática tradicional tenta nos mostrar a língua como um pacote fechado, um embrulho pronto e acabado. Mas não é assim. A língua é viva, dinâmica, está em constante movimento — toda língua viva é uma língua em decomposição e em composição, em permanente transformação. É uma fênix que de tempos em tempos renasce das próprias cinzas. ”

No geral, recorro as teses de Bagno para defender as escritas das falas das interfaces conversacionais. Grande parte dos clientes contratantes não entendem do porque estamos escrevendo de forma “errada”, ou até sugerem distinção de tratamento a depender da classe social dos usuários que irão interagir com o robô. Ou seja, refletem um preconceito linguístico que o livro aponta e luta para combater.

Quantidade de páginas: 186

O esclarecedor — Nada na língua é por acaso

Autoria: Marcos Bagno

Lançado em: 2007

Resumo: O livro apresenta fundamentos necessários para que educadores possam lidar com a questão do letramento informacional, variação da linguagem, prestígio e estigma dentro e fora da sala de aula. Desmistifica supostos “erros” cometidos pelos falantes, além de trazer à tona a raiz desses supostos erros.

Trecho do livro: “As gramáticas normativas, em geral, fazem uma apresentação anacrônica da língua, isto é, desvinculada dos usos reais contemporâneos, até mesmo da escrita literária atual. No entanto, justamente por ser o vernáculo o terreno onde brota a mudança linguística, é que devemos nos dedicar a conhecê-lo melhor e a descrevê-lo com mais precisão.”

Por sorte, algumas empresas reconhecem que precisam adquirir uma linguagem mais moderna e aceitam que independente do contexto abordado, a forma como será dito, precisa se encaixar no que pareça mais natural, como duas pessoas conversando num café.

Capítulos que valem a pena conferir:

Cap. nº 1 “Por uma reeducação sociolinguística — A variação linguística e suas consequências sociais”;

Cap. nº 7 “Certo ou errado? Tanto faz! O vernáculo brasileiro em grande síntese”;

Quantidade de páginas: 238

O que fica (ou deveria ficar) na mesinha do escritório — A frase na boca do povo

Autoria: Hudinilson Urbano

Lançado em: 2011

Resumo: O livro descreve o uso da linguagem representada por frases orais espontâneas e populares. Afinal, é a oralidade a unidade básica da comunicação: Primeiro veio a fala, e só muito tempo depois a escrita.

Baseando-se no nosso dia a dia, Hudinilson Urbano traz bastantes exemplos, no intuito de ilustrar como as frases na oralidade (ao invés de regras gramaticais), são cheias de praticidade e caráter afetivo.

Trecho do livro: “A ausência de planejamento textual prévio, decorrente e determinado pela condição de simultaneidade do pensamento e sua formulação textual. Enfatizamos o grau de imprevisibilidade, somada à espontaneidade e automatismo nos procedimentos, que tais condições acarretam à produção das frases orais, explicando e justificando frases e expressões aparentemente extravagantes e despropositais que com frequência ouvimos”.

Tudo isso pra dizer que, diferentemente da linguagem escrita, que podemos florear com palavras rebuscadas ou evitar a repetição utilizando sinônimos, ao falar, nosso cérebro não consegue tamanha agilidade nem administração prévia ao construir os discursos, forçando-nos a repetir as palavras.

Serve também de insumo para coleta de insights, como por exemplo, marcadores de discurso.

Além disso, vamos convencionar que dizer “pra” ao invés de “para” ou “esse” ao invés de “este”, não torna um diálogo algo sem credibilidade.

Quantidade de páginas: 169

O provocativo — Português ou brasileiro?

Autoria: Marcos Bagno

Lançado em: 2001

Resumo: O livro nos leva a refletir sobre a língua que falamos e usamos para nos comunicar. Além disso, tende a servir de apoio a quem se dispõe a repassar conhecimento. Já no primeiro capítulo fica claro que há duas posições ao educador: Ensinar o português e todas as sua regras (que desconsideram uma série de fatores), ou ensinar o brasileiro, ou seja, a comunicação contemporânea e popular dos indivíduos do nosso país. Para o autor, que tem como público alvo os profissionais que disseminam o conhecimento, a gramática tradicional foi uma contribuição importante, mas é preciso ir além dela.

Trecho do livro: “Dizer que a língua falada no Brasil é somente ‘português’ implica um esquecimento sério e perigoso: o esquecimento de que há muita coisa nesta língua que é caracteristicamente nossa, de que esta língua é parte integrante da nossa identidade nacional, construída a duras penas, com o extermínio de centenas de nações indígenas, com o monstruoso massacre físico e espiritual de milhões de negros africanos trazidos para cá como escravos, e com todas as lutas que o povo brasileiro enfrentou e continua enfrentando para se construir como nação”.

Precisamos reconhecer que o país é amplo e repleto de variações, e que além dos sotaques há também formas distintas de falar sobre a mesma coisa. Ter conhecimento disso evita não só um ruído na comunicação como na compreensão da inteligência utilizada para reconhecer as respostas dos usuários nos diálogos.

Capítulos interessantes:

Cap. 4º “Eu consolo ele, ele me consola: as estratégias de pronominalização”

4.2 “A morte dos pronomes oblíquos de 3ª pessoa”

4.3 “O caso do ele como objeto direto”

Cap. 7º “Quando chegar em Americana, não sei o que vai ser: regências dos verbos ir e chegar com sentido de direção”.

7.1 “Desde o latim clássico”

7.5 “Onde ou aonde? Tanto faz!”

7.6 “Onde não é só lugar”

Cap. 8º “Que sacuda e arrebente o cordão de isolamento: concluindo… mas só para começar”

8.4 “Português do Brasil e português de Portugal: duas línguas”.

Quantidade de páginas: 182

O que problematiza — Nós cheguemu na escola, e agora?

Autoria: Stella Maris Bortoni-Ricardo

Lançado em: 2005

Esse eu ainda não tive tempo de ler =/

Mas não vou deixar de compartilhar, até porque tenho uma hipótese de que ele pode agregar conhecimento, assim como os anteriores, pois se trata de um livro fruto de uma pesquisa sociolinguística realizada aqui no Brasil.

Trecho do livro: “Em comunidades unilíngues, podemos conceituar o campo da língua do falante como seu conhecimento das regras formais da variedade (ou variedades) da língua e dos padrões de comunicação a elas associadas. Seu campo de fala, por outro lado, é o conjunto dos modos de falar — contextos sociais e institucionais, eventos, estilos etc. — em que ele pode atuar com eficiência, desempenhando os papéis sociais que lhe couberem. Sua rede é o conjunto articulado de pessoas com quem o indivíduo interage”.

Acredito que, conceitos retirados de seu conteúdo, possam servir de alicerce para escrita de um bot de determinada marca ou empresa e que se comunica por texto. Para se criar um robô que dialoga com determinado público, você não só precisa conhecer o público, mas também saber qual o discurso que a marca deseja utilizar. Esses dois universos precisam estar alinhados. Ou seja, saber o “lugar de fala” da persona desse robô para que a humanização dele esteja discretamente conectada aos valores e princípios da própria marca.

Quantidade de página: 263

O que é bem familiar — A língua de Eulália

Autoria: Marcos Bagno

Lançado em: 1997

Resumo: Marcos Bagno, para ilustrar alguns fenômenos linguísticos, nos conta a história de uma viagem de férias de três amigas na casa de Irene, linguista e tia de uma das três. Na novela se desenrolam cenas de preconceito linguístico ao longo dos capítulos que buscam explicar as variações da língua portuguesa.

Por exemplo, além de apontar a naturalidade da utilização de artigo antes de pronome possessivo, o livro apresenta também fenômenos da língua portuguesa como, por exemplo, o chamado “egocentrismo”. Durante a fala, utilizamos o pronome-sujeito “eu” no decorrer das orações. Portanto, se alguém lhe pedir para utilizar na fala do seu robô a frase “nós estamos aqui para te ajudar”, saiba que estará contrariando um fenômeno bastante utilizado e que poderá soar forçoso.

Trecho do livro:

- É engraçado você dizer isso — comenta Sílvia –, porque uns dias atrás eu tive uma discussão com meu pai exatamente sobre essa questão. O Fábio, meu irmão adolescente, usa o boné com a aba virada para trás, e meu pai vive implicando com ele: ‘Por que você insiste em usar o boné do jeito errado?’ Até que um dia eu falei: ‘Pai, ele não usa o boné do jeito errado, ele só usa de um jeito diferente!’

- E você está certa — confirma Irene. — O que é errado para seu pai pode ser perfeitamente certo para o Fábio. Seu irmão deve estar obedecendo a algum tipo de regra diferente das regras que seu pai obedece. Pode ser a regra da moda, a regra de uma faixa etária, a regra de uma determinada atitude dos adolescentes de uma determinada classe social, a regra da contestação do tradicional… Ver o que é diferente como algo ‘errado’, aliás, é um fenômeno muitíssimo antigo”.

Quantidade de páginas: 251

O que acabou de sair do forno — Objeto Língua

Autoria: Marcos Bagno

Lançado em: 2019

Sobre o livro: Esse acabou de ser lançado, e o meu ainda não chegou. Recomendo, só por não ter dúvida quanto a credibilidade do autor.

Sinopse da Editora Parábola: “Marcos Bagno no campo dos estudos da linguagem, na luta por uma educação linguística democrática e formadora de cidadãs e cidadãos, e na arena política da defesa do direito à fala dos amplos setores da população brasileira secularmente discriminados e excluídos por suas práticas de linguagem. Os gêneros são os mais diversos, indo da crônica ao ensaio, do depoimento pessoal à discussão de conceitos fundamentais para o entendimento do fenômeno da linguagem humana, tratado sempre desde uma perspectiva social, cultural e política. Etimologia, tradução, ensino, letramento, contato de línguas, variação e mudança, políticas linguísticas são, entre outros, os temas que participam da construção deste objeto, tão familiar mas ao mesmo tempo tão esquivo, que é a língua”.

Quantidade de páginas: 264

-Espero que tenham gostado-

Outros títulos relacionados:

- Não é errado falar assim! Em defesa do português brasileiro (Marcos Bagno, 2009);

-Mapeamento Sociolinguístico do Português Brasileiro (Jussara Abraçado, Marco Antonio Martins, 2015);

- Linguística e Comunicação (Roman Jakobson, 1976);

- Linguagem, língua e fala (Ernani Terra, 2018);

- Aquisição da Linguagem. Estudos Recentes no Brasil (Regina Ritter Lamprecht, 2011).

Por enquanto são esses. Caso alguém tenha sugestões de outros títulos, comente com a referência. Vou agradecer o compartilhamento.

Boa leitura!

Publicado originalmente em 6 de setembro de 2019, por Sueliton Ribeiro

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