O que deixaremos para depois da pandemia?

Pablo Pamplona
vulgar
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2 min readMar 21, 2020
Enterro de vítimas da peste em Tournai. Pierart dou Tielt, c. 1353.
Enterro de vítimas da peste em Tournai. Pierart dou Tielt, c. 1353.

No meio de todas as nossas incertezas, algo é certo: seja em questão política, econômica, cultural ou afetiva, o mundo nunca será o mesmo.

Ainda que o vírus seja controlado, deve ficar o fantasma de uma possível nova infecção, uma possível nova crise. Deve ficar o luto mal elaborado e o afeto do medo e do ódio contra o outro: o estrangeiro, aquele que trouxe a ameaça, que carrega a ameaça; o outro que se torna, em si mesmo, em seu corpo, uma ameaça.

A imagem terrível do “infectado” pode emergir como uma justificativa biológica para o ódio. Tal como o nazismo tratava os judeus como ratos, ou como a eugenia animalizava povos negros e indígenas (e o racismo ainda o faz), ou como o patriarcado trata as mulheres como “naturalmente” loucas-emotivas. Todos esses sistemas de sentido, por mais irracionais que pareçam, estão sempre (falsamente, ideologicamente) justificados pela ciência, pela técnica, pela razão.

De outro lado, o valor da solidariedade. Nesses dois ou três meses que temos pela frente essa será uma bandeira central na disputa de narrativas. Mais do que nunca, está escancarado o fracasso do capitalismo como projeto e a mentira que carregam todos os seus valores: o individualismo, a competição, o “cada um por si”, a “guerra de todos contra todos”. E, mais do que nunca, está escancarado o fator coletivo da organização humana. “United we stand, divided we fall”, unidos venceremos, divididos cairemos. A importância do apoio mútuo para a sobrevivência da própria espécie, como demonstrou Kropotkin.

Tudo depende do que for construído desde já. Por isso é importante que, sempre que tivermos a oportunidade, lembremos da importância da solidariedade para contornar crises como essa. Mas a luta deve ir além da disputa de narrativas.

É preciso aproveitar o tempo para revisar nossos objetivos e estratégias. Se não podemos nos encontrar, podemos criar documentos compartilhados e reuniões por videoconferência. Quando a pandemia passar o Brasil estará destruído. Algo novo sairá disso. Fascismo ou socialismo? Medo ou solidariedade? A ver, a construir.

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Pablo Pamplona
vulgar
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Mestre e doutorando em Psicologia Social pela USP. Pesquisa a memória de lutas sociais.