Doutrinação do bem para o cidadão de bens (I)

A doutrinação ideológica é má e prejudicial quando ela confronta o capitalismo. Se ela favorece os interesses dos ricos, tá tudo bem.

Pablo Pamplona
vulgar
4 min readJun 18, 2020

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(seleção de textos escritos entre novembro de 2018 e novembro de 2019.)

1) Política é assunto para políticos.

Doutrinação aristocrática. Em primeiro lugar, deve-se evitar definir o que é política, porque essa armadilha não tem outra saída: o reconhecimento de que a política está em todas as coisas e diz respeito a todas as pessoas.

Não: deve-se ir contra a verdade, deve-se mentir sem pudor. Deve-se afirmar, ainda que sem razão, que só faz sentido discutir política pública se você for político (ou empresário, é claro), que política é uma coisa distante e estranha ao resto da população, pois complexa demais, quase alienígena. Quem trabalha com arte, com educação ou com ciência, em particular, por estas serem áreas influentes (e, em geral, subversivas), deve guardar suas questões políticas para si nem que seja na base da porrada.

Essa doutrinação visa acima de tudo deixar as classes populares alienadas da sua capacidade de ação. Para espantar o povo da política ao máximo, deve-se associar a política unicamente à pilha de sujeira mais vil e repugnante de um país: os gestores do Estado.

Doutrina do bem é doutrina que não só favorece os interesses dos ricos, mas também mantém os perigos bem longe. Use sempre que necessário.

2) Uma vez militante, sempre um militante.

Ou, como já disse o grande cidadão de bens Paulo Guedes: “Tem filiação partidária? Não é servidor público. Não vou dar estabilidade para militante.”

Doutrinação anti- o partido adversário.

Estreitamento prático da lógica “política é assunto para políticos”. Se política e Estado são a mesma coisa, por consequência lógica, só pode ser de partido se for político de carreirinha. (#snif #func)

Se participa de um partido e não é político de carreira, é “militante”. Se é militante, é por puro oportunismo. Se fala demais em direitos humanos e sociais básicos, é porque quer mamar nas tetas do Estado. Se está na luta, digamos, por uma saúde pública de qualidade, é porque quer mamar nas tetas do Estado.

E tá pensando o quê! Que mamata é pra qualquer um?

Deixem a mamata com a gente grande.
Quem não concordar é doutrinador do mau.

3) O objetivo do socialismo é construir um Estado forte.

Doutrinação anti-esquerdista burra, estúpida e particularmente útil já que grande parte da autoproclamada esquerda a reproduz.

Essa doutrinação distorce o objetivo socialista. Deixa de ser o poder popular, passa a ser o poder do Estado. Deixa de ser a socialização dos meios de produção, passa a ser a estatização. Ignora as diversas estratégias traçadas pelas diversas organizações socialistas ao longo de sua história. Considera-se apenas uma estratégia: a estatista. Parecendo haver uma única estratégia, ela é convertida em objetivo.

De uma forma simplória, essa mentira realça o que o socialismo fez de pior e apaga, da sua diversidade, o que fez de melhor. Realça o centralismo autoritário e oculta experiências como o movimento zapatista, a revolução curda, a Greve Geral de 1917 em São Paulo. Também realça as eleições, os políticos de carteirinha, e reduz a importância do trabalho de base.

Assim, essa doutrinação torna o socialismo mais frágil e passível de ser eliminado.

Na prática, qualquer pessoa ou organização que pretenda (ou pareça pretender) qualquer tipo de diálogo com qualquer braço do Estado poderá ser chamado de socialista. Convenhamos, afinal, que há mais semelhanças entre Lula e Alckmin do que entre Lula e Subcomandante Marcos. Se o Lula pode ser chamado de socialista, o Alckmin também pode. E quem é Subcomandante Marcos? Não importa. Ele não tem interesse no Estado.

As experiências históricas mais terríveis serão socialistas, para que o socialismo pareça mau. O nazismo é socialista? Risos! Não. Mas chamavam-se “nacional-socialistas” e tinham um Estado forte e autoritário. Tem alguma outra semelhança, digamos, com a URSS? Não importa. Esses traços bastam para que os nazistas sejam chamados de socialistas.

E as pessoas mais indesejadas serão socialistas, para que sejam deslegitimadas. Mira que beleza: até o Bolsonaro, quando convir, poderá ser chamado de socialista. Quem se importa, afinal? Coerência histórica e teórica é coisa de doutrinador do mal. Deixemos que a verdadeira utopia socialista seja sufocada pelas boas mentiras do cidadão de bens.

Excelente fórmula para o medo da transformação política. Favorece os interesses dos ricos.

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Pablo Pamplona
vulgar
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Mestre e doutorando em Psicologia Social pela USP. Pesquisa a memória de lutas sociais.