A loucura e o cinema contra o fascismo

Nada melhor que uma narrativa caótica para compreender uma realidade caótica.

Pablo Pamplona
vulgar
4 min readMay 20, 2020

--

Still do filme “O Livro de Heydrich” (2020). Engrenagens enferrujadas de uma máquina do pesadelo que fracassou, que não cumpriu seu objetivo.

Cinema e loucura, mestres da fantasia, são parceiros de possibilidades. Jogam, brincam — às vezes, um brincar violento — de criar analogias e (des)conexões bizarras e improváveis entre a fantasia e a realidade.

E mundo é realidade e mundo é fantasia. Não de forma equilibrada, sim de forma caótica. Como a loucura. Talvez seja por isso mesmo, por saber reconhecer seu jogo desequilibrado, que ela ofereça uma possibilidade de melhor compreensão do mundo: talvez porque a loucura compreende o caos.

Anteontem, dia 18/05, foi o Dia da Luta Antimanicomial. Em homenagem, foi disponibilizado o filme “O Livro de Heydrich”, disponível em: https://youtu.be/9y2YfVnXOV0

Esse filme, um misto de documentário com ficção — realidade, fantasia — , conta a história de Marcelo Reis, um usuário do Centro de Atenção Psicossocial, um esquizofrênico nascido e criado no Capão Redondo, periferia de São Paulo. Nos seus depoimentos, Marcelo traça uma dura crítica social que nos ajuda a identificar que o fascismo estava muito presente na sociedade brasileira já em 2009, quando o filme foi filmado.

Still do filme “Hitler Terceiro Mundo” (1968).

Palavras de Clêmie Blaud, diretora do filme:

“De todas as experiências que tive, desde que me formei em 1993, nenhuma foi mais perturbadora do que o cinema de luta antimanicomial que me levou a realizar o filme ‘O livro de Heydrich’. O patrono deste cinema é José Agrippino de Paula (1937–2007), cujo filme ‘Hitler 3o. mundo’ (1968) provoca reflexões sobre o fascismo em sua versão importada que se espalha pela decadente sociedade brasileira no período do governo militar. No filme, Hitler mora em São Paulo, no bairro da Liberdade, é amante do Capitão América que está em guerra com um samurai, pois ambos vivem de extorquir mendigos anões. Trata-se de um filme experimental e maldito, nada fácil de entender, que lança um olhar sobre as relações entre nazismo e Brasil. Tido como louco e gênio maldito, Agrippino marca a história do cinema brasileiro com um filme de crítica e resistência à ditadura militar evocado como precursor do cinema de luta antimanicomial que aos poucos se consolida em diversos gêneros e em arteterapia. ‘O livro de Heydrich’, longa-metragem que realizei junto com os coletivos de luta antimanicomial, Caixa Preta e Dasdoida, se filia ao projeto agrippiniano de investigação do tema do nazismo pela perspectiva do cinema que mistura os gêneros de ficção, documentário e cineterapia. A partir dos relatos de Marcelo Reis, usuário do serviço de atenção psicossocial, sobre seu encontro com Heydrich, oficial de Hitler, busca-se construir uma linguagem audiovisual coletiva para as experiências da loucura no Brasil.”

Obras como Hitler Terceiro Mundo são um patrimônio cultural da sociedade brasileira, patrimônio agora ameaçado. Dia após dia, um novo anúncio da barbárie. A cada dia, uma notícia nova anunciando o desmonte, o desastre, o genocídio, a morte. Anúncios de morte.

Em O Livro de Heydrich, Marcelo narra e profetiza sobre a chegada da Besta:

“A Besta é o seguinte: a Besta é como se fosse um piloto de série. Entrou no túnel, pro abismo. Só que aí acontecer aos centenas de milhares. Né, ia começar uma coisa mais macabra ainda, mais… tipo Auschwitz Birkenau. Ia começar assim, em massa. Pegar as criancinhas tudo pra lavagem cerebral. Pra sugar o quê? Sugar a luz e a imagem. Esse povo da Besta tá justamente abrindo caminho pra ele. Pra trazer ele aqui pra cima pra ele poder respirar um pouco de ar fresco.”

Foi aberto o caminho pra Besta? Vejamos.

Dessa fala, compreende-se: 1) seu método e 2) seu objetivo.

  • Seu método é a lavagem cerebral.
    Colonização das mentes.

    Mas não é “uma” lavagem cerebral, operada de maneira isolada. Ela é operada “como se fosse um piloto de série”; são “centenas de milhares” de pilotos, um seguido do outro, em direção ao abismo.
    Esses “pilotos de série” não são pessoas; são parte da engrenagem que serve à Besta: os aviões, máquinas de guerra. Um “exército perfeito de autômatos invisíveis”, em outra analogia do Marcelo.

E a que “abismo” esses pilotos se direcionam?

  • O abismo é o objetivo.
    Um mundo sem luz, sem imagem. “Sugar a luz e a imagem” das crianças, destruir o que há de bom, de inocente, destruir cada “átomo” (em ainda outra analogia de Marcelo) que poderíamos ver “brilhar, brilhar…”
Charge de Nando Motta, em memória de João Pedro e Ágatha Félix.

Como a luz de João Pedro, 14 anos, assassinado ontem (19), e tantas outras crianças assassinadas pela Polícia Militar ou diariamente impedidas de viverem suas vidas com dignidade.

Profetas, vale lembrar, não são profetas pelo conteúdo de sua mensagem, mas também pela sua presença e espírito. Perceba a dor no olhar e no gesto de Marcelo a cada vez que ele descreve essa operação. Marcelo profetiza, na sua dor, uma dor social que estava latente na sua época.

A loucura, o cinema, a arte, “são lentes de aumento para o mundo”.
Ajudam-nos a compreendê-lo na sua complexidade e no seu horror.
É preciso preservar e cuidar dessas dimensões da humanidade.

--

--

Pablo Pamplona
vulgar
Editor for

Mestre e doutorando em Psicologia Social pela USP. Pesquisa a memória de lutas sociais.