A análise da tecnologia na cultura popular japonesa

Hudson Araujo
vulgo H.A.S opina
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8 min readFeb 4, 2022
Neon Genesis Evangelion

Introdução

A partir da análise de produções culturais do Japão pós-guerra, a filosofia da tecnologia cristã surge como uma proposta de direcionamento para a tecnologia mesmo em meio a leituras pessimistas.

A influência da tecnologia

Não é novidade que a tecnologia tem tomado um protagonismo na contemporaneidade. Afinal, a cada dia temos que lidar com novidades tecnológicas que vão influenciar diretamente nosso dia a dia e nossa forma de ver o mundo. Diante disso, como a cultura popular absorve e reflete a tecnologia? Neste estudo de caso, vamos passar pela percepção do Japão popular pós segunda Guerra sobre tecnologia, e como essa visão foi mudando com o passar do tempo.

Animes, mangas e tecnologia

Nos mangás, histórias em quadrinhos com um traço tipicamente japonês, a tecnologia sempre foi um ponto central em suas histórias. Como, por exemplo: “a presença da representação de robôs nas histórias em quadrinhos e nas narrativas japonesas em geral se dá desde o período anterior à Segunda Guerra Mundial” (COSTA). Desde então, essas histórias tinham um tom otimista e até triunfalista sobre a tecnologia. Isso mudou na década de 70, com produções como de Mazinger Z (1972), onde a tecnologia é representada com mais contornos, mesmo em uma história para um público juvenil. Na trama: “o protagonista, Kabuto Kouji, recebe de seu avô pouco antes da morte deste um robô gigante feito de tecnologia de ponta e passa empregá-lo na proteção do planeta contra forças conquistadoras” (COSTA). Porém, a diferença das outras histórias sobre mecha (robôs gigantes) é que agora a tecnologia não é apenas uma arma benéfica, mas pode ser uma ferramenta tanto de destruição como de salvação:

“Em Mazinger Z, Nagai se apropria da tradição dos gigantes atômicos, que nascem como armas e são transformados pelo otimismo dos comandos de crianças inocentes em servos com potencial de promoverem a paz, e faz sua releitura definindo o mecha como uma ferramenta ou instrumento completamente despersonalizado” (COSTA).

Isso mostra uma certa desconfiança sobre o momento econômico do Japão. A tecnologia estava sendo observada de forma crítica pelos autores, mostrando uma habilidade geral de observar e identificar tanto os benefícios da tecnologia quanto os males:

“O Dr. Kabuto entrega seu instrumento de poder a Kouji simplesmente enfatizando que o neto poderia fazer qualquer coisa que desejasse com ele, mas não lhe passa nenhuma prerrogativa moral de como deve agir em relação a isto ou em como empregar o mecha, isentando-se de qualquer julgamento moral e legando o problema de realizar tal julgamento aos seus descendentes. Da mesma forma como fez a geração que governou o Japão, e boa parte do mundo, durante e no período imediatamente anterior à Segunda Guerra Mundial produzindo um progresso técnico que se confunde com progresso bélico e legando esta tecnologia com potencial destrutivo para as próximas gerações terem de lidar com suas consequências” (COSTA).

Apesar das críticas serem aplicáveis a todo o contexto econômico do japão, é impossível não refletir sobre a questão tecnológica, incorporada pela bomba atômica que atingiu o País durante a segunda guerra:

“As armas nucleares eram o componente do mundo real que mais se aproximava do Mazinger Z, um símbolo do desenvolvimento científico e de todo o potencial criador e ilimitado da tecnologia. Mas essa mesma tecnologia que poderia levar a humanidade à autossuperação é também a maior ameaça à existência humana” (COSTA).

Na década seguinte teve uma produção japonesa de extrema influência que lida com as mesmas questões de forma ainda mais negativa. Akira (mangá em 1982 e anime em 1988), representa a tecnologia com um agente apocalíptico.

“Akira apresenta ao espectador a inquietante realidade do abandono e da morte da família nuclear. Isso é mais claramente ilustrado pelas condições dos dois protagonistas principais, Tetsuo e Kaneda, que se conheceram e cresceram juntos em um orfanato” (THE ARTIFICE, 2018).

Enquanto na década anterior tínhamos exemplos de artefatos culturais que lidavam com a dualidade da tecnologia e seus potenciais, em apenas uma década a opinião de tecnologia já se transformou em algo mais agressivo, que molda e afeta diretamente como o mundo será. Novamente, o impacto da bomba atômica na década de 40 ainda tem resquícios na produção. Pois “como o único país do mundo a sofrer destruição atômica, não é surpreendente que os eventos daquele agosto de 1945 ainda permeiam a cultura popular do Japão” (THE ARTIFICE, 2018). Nesses moldes, temos mais uma leitura da tecnologia para uma nova geração: o potencial destrutivo é alarmantemente mais presente que seus benefícios. E, novamente, vemos as consequências da geração passada em lidar com tecnologia com efeitos tão catastróficos, comparáveis ao fim do mundo:

“Além do espetáculo inerente ao apocalipse em Akira, há também uma crítica implícita e explícita à sociedade, principalmente no que diz respeito ao uso indevido da tecnologia e à diminuição dos valores sociais mais tradicionais” (THE ARTIFICE, 2018).

Por fim, na década de 90 temos mais um desdobramento: como a tecnologia afeta o humano? Esse é um dos muitos temas no anime Neon Genesis Evangelion (1995).

Nele podemos enxergar um cenário agravado:

““Evangelion” se passa em uma terra pós-apocalíptica, que está sendo atacada por criaturas poderosas chamadas Anjos. Para derrotar os Anjos, os cientistas criaram ciborgues gigantes chamados Evangelions, ou EVAs, que só podem ser pilotados por crianças selecionadas, uma das quais é o protagonista, um adolescente solitário chamado Shinji” (THE NEW YORKER, 2019).

Não seria exagero dizer que ““Evangelion” revolucionou um gênero e sua representação da relação entre homem e máquina” (THE NEW YORKER, 2019). Afinal, ele solidificou a ideia de que a tecnologia não apenas muda nossos ambientes ao redor, mas muda nossos corpos e mentes diretamente. Alguns desses temas já estavam presentes nas produções anteriores, mas aqui isso é adotado como um dos temas centrais da narrativa. Voltamos, então, para o comparativo dos mechas pós Guerra, onde a tecnologia apresentava características de otimismo. Nesta produção, já podemos ver o extremo oposto, com o mesmo gênero de estilo narrativo a tecnologia é retratada como agente de mudança do humano, atingindo até o biológico e apontando para um transhumanismo: “a série apresenta um enigma brilhante do ovo e da galinha: os humanos definem as máquinas ou as máquinas nos definem?” (THE NEW YORKER, 2019). O diagnóstico aqui é claro, na cultura popular Japonesa a tecnologia é um definidor da realidade como ela é, no social, biológico e psicológico.

A importância de uma filosofia da tecnologia

É possível analisar nessa breve análise de alguns artefatos culturais populares do japão que a cultura popular é capaz de fazer uma análise e uma crítica sobre a tecnologia e seus efeitos. Porém, ela raramente vai apresentar uma solução. Para isso, é importante ter uma filosofia da tecnologia: “um tema no qual alguém reflete sobre o pensamento e a ação tecnológica em relação à própria tecnologia” (VERKERK, 2018, pg. 27). Para que a filosofia tenha esse fim dentro da tecnologia, ela precisa se ocupar de três funções: a analítica, crítica e direcional. Uma análise sobre a tecnologia que não tenha um desses pilares certamente será desfalcada e incompleta, na melhor das hipóteses. Na função analítica, o passo principal é o diagnóstico: “significa que há uma tentativa de se elaborar boas definições e conceitos para desse modo criar um quadro de referência conceitual” (VERKERK, 2018, pg. 27). Nesta etapa, está uma sistematização das tecnologias e seus impactos. Já na função crítica, com os recursos da análise é possível distinguir o que é benéfico ou não a partir de seus efeitos práticos e impactos sociais. Pois: “a função crítica é direcionada à elaboração de uma discussão sobre se o funcionamento da tecnologia é benéfico ou prejudicial” (VERKERK, 2018, pg. 27). Por fim, com esses dados coletados, é possível dar um direcionamento para a tecnologia, seguindo princípios éticos e, principalmente, pressupostos previamente definidos. Desta forma, “a função direcional tenta determinar o que seria um bom desenvolvimento da tecnologia” (VERKERK, 2018, pg. 27). Obviamente, não podemos levar produções culturais como definidoras filosóficas de um contexto ou geração. Porém, com elas é possível observar definições coletivas gerais, principalmente em obras de grande alcance. Desta forma, é possível ver a falta, em todas essas obras, de um direcionamento para a tecnologia. Podemos ver sim, na leitura dos autores, análises e cŕiticas bem sólidas. Afinal, “sem análise, nenhuma crítica satisfatória é possível” (VERKERK, 2018, pg. 30). Porém, sozinho esse exercício se torna incompleto, já que “estabelecer um bom quadro conceitual torna-se mais ou menos sem sentido se esse quadro nunca for utilizado para uma boa discussão crítica” (VERKERK, 2018, pg. 30). Claramente a arte, principalmente a popular, não tem a responsabilidade de resolver questões filosóficas complexas. Cabe à filosofia construir respostas mais satisfatórias para os dilemas da tecnologia e sugerir direcionamentos a partir da ética e dos pressupostos. Por esse motivo, algumas visões sobre tecnologia acabam sendo demasiadamente pessimistas ou fatalista: “em algumas visões críticas sobre tecnologia, um cenário de horror é às vezes esboçado no qual a tecnologia é apresentada como um fenômeno autônomo que ameaça a liberdade da humanidade ocidental” (VERKERK, 2018, pg. 30). Por outro lado, podemos cair em uma visão inocente da tecnologia se não tivermos um panorama filosófico completo, “como a visão muito positiva que enxerga apenas bênçãos na tecnologia” (VERKERK, 2018, pg. 30). Portanto, vemos um lugar singular da filosofia da tecnologia, oferecendo uma análise robusta, uma crítica apropriada de todos seus aspectos e uma proposta de solução a partir da ética. A partir disso, é possível ter um olhar mais sensível do que os animes e mangás tiveram ao longo dos anos, mas apresentando mais esperança e solidez para a tecnologia: “apenas desse modo será a ética da tecnologia capaz de se expressar normativamente sobre o desenvolvimento da tecnologia moderna” (VERKERK, 2018, pg. 30). Dentro disso, é importante destacar os limites da filosofia. Afinal, ela pode oferecer uma estrutura robusta, mas sozinha jamais vai conseguir trazer propósito. Dentro disso, a fé cristã oferece os pressupostos e direcionamentos que a filosofia não pode oferecer. Na visão Bíblica, qualquer tecnologia é uma dádiva de Deus para desenvolver e apontar a glória dele. Como afirma Schuurman: “o significado da tecnologia é encontrado no serviço a Deus” (SCHUURMAN). Portanto, para a cosmovisão cristã bíblica e trinitária, o único direcionamento bom para a tecnologia é a glória de Deus, seguindo as leis para a criação e a realidade. A filosofia da tecnologia, portanto, surge como ferramenta de identificação e desenvolvimento desse pressuposto para a área da tecnologia. Desta forma, o que em uma visão popular de determinado país pode ser visto como destrutivo, uma filosofia da tecnologia genuinamente cristã pode oferecer diretrizes claras para a tecnologia, gerando bem comum e esperança em meio ao caos.

Conclusão:

Podemos concluir que, apesar de leituras pessimistas da tecnologia decorrentes de consequências históricas e sociais, é possível fazer uma leitura mais completa da tecnologia. A filosofia da tecnologia cristã é capaz de analisar e criticar enquanto oferece direcionamentos éticos para o uso e desenvolvimento do recurso tecnológico.

Referências:

VERKERK, Maarten Johannes. Filosofia da tecnologia: uma introdução. tradução, Rodolfo Amorim Carlos de Souza. — Viçosa, MG : Ultimato, 2018.

COSTA, Rafael Machado. Tradição e estilo no manga shounen dos anos 1970: estética, política, robôs e monstros na produção de Ishinomori Shoutarou e Nagai Gou. Vamos falar sobre cultura pop, episódio 4 : o pop não poupa ninguém, 2020. Disponível em: https://cultdecultura.files.wordpress.com/2020/11/af-livro-cultura-pop-4.pdf. Acesso em: 18 de dezembro. 2021.

SCHUURMAN, Derek C.. O significado da tecnologia por Derek Schuurman. Traduzido por Breno Perdigão e revisado por Jonathan Silveira. Associação Brasileira Cristãos na Ciência, 2017. Disponível em: https://www.cristaosnaciencia.org.br/o-significado-da-tecnologia-por-derek-schuurman/ Acesso em: 18 de dezembro. 2021.

PHILLIPS, Maya. How “Neon Genesis Evangelion” Reimagined Our Relationship to Machines. The New Yorker, 2019. Disponível em: https://www.newyorker.com/culture/culture-desk/how-neon-genesis-evangelion-reimagined-our-relationship-to-machines Acesso em: 18 de dezembro. 2021.

Autor anônimo. Akira: An Analysis of the A-Bomb and Japanese Animation. The Artifice, 2018. Disponível em: https://the-artifice.com/akira-analysis/. Acesso em: 18 de dezembro. 2021.

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Hudson Araujo
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Estudante de Letras, (inglês português), Redator, Escritor e outras coisas mais.