A busca pelo transcendente pós-COVID-19 e a teologia natural

Hudson Araujo
vulgo H.A.S opina
Published in
9 min readJan 25, 2022
The Leftovers (HBO)

Introdução

O objetivo deste artigo é investigar a busca pela espiritualidade e a religião no mundo pós-COVID, usando para análise produções audiovisuais dos últimos anos. Apontamos também a relevância dos estudos do teólogo Alister McGrath sobre a teologia natural para as angústias contemporâneas.

O estado espiritual da sociedade pós-COVID-19

A busca pelo transcendente é algo recorrente ao ser humano. Em diversas épocas e partes do globo há essa preocupação entre correlacionar espiritualidade ou divindade com as coisas naturais. Como Mcgrath afirma: “há uma preocupação generalizada de se envolver com o mundo empírico da experiência cotidiana de forma que ele aponte para a existência do transcendente, revele seu caráter ou, eventualmente, conduza à sua presença” (MCGRATH, 2019, pg. 23). Porém, em nosso mundo contemporâneo parece haver um aumento significativo no assunto, com característicasmuito próprias. Por exemplo: é possível encontrar uma busca coletiva por um misticismo não religioso em um mundo pós-pandemia. Estudos recentes apontam que “a crise do COVID-19 aumentou as pesquisas no Google pela palavra “oração” para “o nível mais alto já registrado” (HARVARD). Porém, outro dado importante e aparentemente contraditório é que as novas gerações estão cada vez menos religiosas no sentido tradicional da palavra. Segundo a pesquisadora Twenge: “a geração Millennial é menos religiosa do que os Boomers e os membros da GenX quando eram adolescentes. A geração Millennial é a geração menos religiosa em 6 décadas e, possivelmente, na história americana” (TWENGE). Portanto, ao mesmo tempo que há uma preocupação generalizada com algum tipo de experiência espiritual, há também um desinteresse na religião institucionalizada e tradicional. Isso também é verdade para o cenário pós-COVID-19, onde em cidades mais desenvolvidas as pessoas geralmente “não viram muitas mudanças em sua própria fé religiosa como resultado da pandemia. No Reino Unido e na Coreia, 10% disseram que sua fé cresceu, enquanto na Dinamarca, apenas 2% disseram que sua fé ficou mais forte” (HARVARD). Então, qual seria o diagnóstico? Há ou não um aumento na busca por espiritualidade em nossa realidade? Esse é um cenário decorrente do nosso contexto pandêmico ou não? Para perguntas como essas, talvez as produções recentes do audiovisual possam nos ajudar a traçar um quadro ainda mais assertivo sobre o assunto.

Uma breve análise do transcendente no audiovisual pós-pandemia

Curiosamente, podemos ver os mesmos traços de comportamento nos recentes lançamentos pós-COVID-19. Em 2021, foram lançadas produções com forte teor místico e espiritual, mas que rejeitam os moldes tradicionais de crença, revelando uma forma contemporânea de entender o transcendente. Um desses exemplos é o longa Os Eternos (Chloé Zhao, 2021), uma das maiores produções do ano. A narrativa conta sobre seres celestiais que vieram para proteger a Terra de ameaças incompreensíveis para os seres humanos. Além de ter um elenco diverso, seguindo os moldes das principais políticas de hoje, Os Eternos usa da linguagem bíblica para criar uma própria mitologia, enquanto usa essa espiritualidade visual para valorizar o cotidiano e ordinário. “As panorâmicas, os ângulos baixos de câmera e os efeitos de contraluz carregam o mundano de uma espiritualidade solene (…) na procura de epifania espiritual em toda e qualquer circunstância mundana” (HESSEL. 2021). Em 2021 também houve uma adaptação do importante livro de Frank Herbert. O livro da década de 60 é carregado de misticismo ocidental e figuras religiosas, mas esta nova versão de Duna (Villeneuve, 2021) tem suas próprias percepções sobre espiritualidade, misticismo e até sobre questões messiânicas, apresentando uma ideia mais problemática e politicamente perigosa de um “salvador”:

O filme de Villeneuve é fiel à apresentação da espiritualidade de Herbert em todos os pontos certos, mas luta com a crescente suspeita de Paul sobre seu papel adequado, que ele está hesitante em assumir. Sua natureza divina é objeto de fervorosas especulações de outros, desde os habitantes do deserto de seu planeta, Arrakis, até a própria mãe de Paul (CHENEY, 2021).

Ambas as produções foram distribuídas em larga escala e estão entre as maiores bilheterias do ano. Além disso, se preocupam com as mesmas questões e evidenciam os mesmos traços estéticos, remetendo a uma espiritualidade mística contemplativa do que em uma religiosidade institucionalizada. Porém, essa preocupação com o transcendente não fica apenas com os grandes estúdios. Ainda em 2021, ocorreu o lançamento do pequeno filme Nine Days (Edson Oda, 2021). Nele, acompanhamos um conceito ficcional de espiritualidade, onde há um processo seletivo no além para saber qual alma terá o direito de encarnar e viver. O filme é cheio de momentos reflexivos e espirituosos. Porém, o próprio diretor e roteirista não vê o filme como religioso, mas como transcendente no sentido mais literal da palavra: “Não vejo “Nine Days” como um filme religioso, mas eu sempre fico tentado a questionar as informações que vêm de cima. Então, eu acho que há mais questionamentos. Perguntas sem respostas” (TALLERICO, 2021). Novamente, encontramos a distinção entre espiritual e religioso na produção. Portanto, nos grandes ou pequenos filmes de 2021 é possível encontrar um traço de transcendência que se aproxima da contemplação natural enquanto se afasta das instituições e dos dogmas. Porém, esse seria um momento único no audiovisual? Certamente não. Nos anos 70, o aclamado diretor e roteirista Paul Schrader desenvolveu a teoria do “Estilo Transcendental”. Sua teoria consistia que alguns diretores tinham um estilo estético que remetia a algo além do mostrado na tela. O repetitivo e cotidiano apontava para algo metafísico. Alguns dos diretores citados em sua tese eram Yasujirō Ozu, Robert Bresson e Carl Theodor Dreyer. Não se tratava de um movimento consciente, um coletivo, mas um estilo que representava efeitos semelhantes em autores de diferentes contextos geográficos atuando em diferentes épocas. Resumindo:

“O todo da hipótese do Estilo Transcendental é de que se você reduzir sua ciência sensual rigorosamente e por um bom tempo, a vontade interior irá explodir e irá ser pura porque não será desviada por identificações fáceis ou exploratórias; será refinada e comprimida em direção a sua verdadeira identidade, o que Calvino chama de sensos divitatus, o senso divino” (TYBJERG).

Já na década de 70, Paul Schrader identificou em produções da década de 20 e 50 alguns dos aspectos que apontamos nas produções pós-COVID, como a espiritualidade no cotidiano e a não necessidade da vinculação com uma religião formal. Posterior a isso, é possível ver produções que tiveram algum impacto sensorial e transcendente no público, apontando para algo divino. Um caso onde isso aparentemente foi proposital é A Árvore da Vida (Malick, 2011). O filme acompanha uma família, um casal e três filhos meninos, no subúrbio dos EUA nos anos 50. No percurso, lida com questões sobre o pós-vida, natureza, criação do mundo, fim dos tempos, luto e a graça. O jornalista Zeca Camargo fez um artigo íntimo e pessoal sobre o filme onde confessa: “o filme mexeu tanto comigo que me fez reconsiderar até mesmo minha posição com relação à fé” (CAMARGO, 2011). No caso de Árvore da Vida, ele se posiciona mais próximo confessionalmente para uma espiritualidade ortodoxa cristã, o que já mostra ter um impacto diferente no público, seja para rejeição ou para a contemplação. Uma produção anos depois que lidou com questões semelhantes de forma praticamente oposta foi a série The Leftovers (HBO, 2014–2017). A série de televisão apropria a ideia do arrebatamento bíblico pré-tribulacionista para contar uma narrativa sobre o luto coletivo, o vazio e a necessidade intrínseca do ser humano de crer em algo. Na série, tudo é tão nebuloso, incerto e místico que “talvez tenhamos motivos para acreditar em poderes superiores. Pode haver algo cósmico, mágica organizando destruição com uma visão que não podemos perceber” (COLBERT). Também é perceptível a ascensão de seitas e cultos no ambiente ficcional da série após uma tragédia coletiva. Pois, “no mundo de “The Leftovers”, o fato espiritual mais importante é o declínio das igrejas tradicionais e o surgimento de uma variedade de cultos” (KIRSCH, 2014). Não por acaso, o mundo pós-pandemia mostra um cenário semelhante. Pois “a “demanda” por ritual religioso, conforto e apoio é presumivelmente aumentada pela pandemia, enquanto simultaneamente a “oferta disponível” de religião (na forma esperada) é drasticamente diminuída” (HARVARD). Podemos perceber, então, que a experiência empírica sempre levou a uma contemplação para o transcendente, se intensificando ainda mais em contextos de desastre ou desalento como a pandemia. Porém, podemos identificar também que “a busca pelo transcendente não implica necessariamente a crença em um deus ou em uma pluralidade de deuses” (MCGRATH, 2019, pg. 23). Em um mundo que busca o místico, mas não o normativo, a fé cristã pode oferecer boas respostas para esse cenário?

A teologia natural genuinamente cristã como resposta para as questões de nosso tempo

O teólogo Alister McGrath não diria apenas que há um espaço para a fé cristã neste contexto, mas que ela é a única que oferece uma boa resposta para nossa necessidade de transcendência. Para isso, o autor apresenta uma nova abordagem para a teologia natural em uma perspectiva genuinamente cristã. Por teologia natural, podemos entender formas gerais como “a investigação sistemática de uma relação proposta entre o mundo cotidiano de nossa experiência e uma realidade transcendente afirmada” (MCGRATH, 2019, pg. 14). Ao longo da história do cristianismo, o termo teologia natural foi vinculado a uma ideia “debaixo para cima”. Ou seja, que Deus é percebido a partir da natureza por nossas próprias percepções. Já a abordagem do autor vai para outra direção: “A teologia natural renovada representa uma forma caracteristicamente cristã de contemplar, conceber e, acima de tudo, apreciar a ordem natural” (MCGRATH, 2019, pg. 29). Para o autor, a natureza só é entendida a partir da revelação de Deus. A natureza e o desejo pelo transcendente não é o responsável pelo encontro de um Deus qualquer, mas a realidade da natureza é devidamente explicada pela narrativa bíblica, apontando para o Deus canônico e trino das Escrituras. Em outras palavras: “A natureza é aqui interpretada como um “segredo revelado” — uma entidade de acesso público, cujo verdadeiro significado é conhecido apenas com base na perspectiva da fé cristã” (MCGRATH, 2019, pg. 27). Diante disso, é natural observarmos tantos artefatos culturais produzidos no último ano ou ao longo da história que apontam para o transcendente, talvez até para a ideia de um Deus, mas não para o Deus trino. O resultado é uma experiência espiritual vazia e sem respostas, diferente de A Árvore da Vida, que, com uma direção mais normativa, consegue explicar tantas questões da natureza. Como aponta o teólogo Guilherme de Carvalho:

“Para mim, “A Árvore da Vida” é uma peça de teologia natural, que aponta o sentido divino do mundo para o homem moderno (…), mas o faz transformando a experiência visual-temporal em algo quase sacramental. Deus é incessantemente revelado diante do espectador, de forma consistentemente indireta e sutil” (CARVALHO).

Portanto, podemos perceber que o movimento da cultura é a busca por uma transcendência enquanto rejeita o dogma. Porém, a teologia natural pode nos ajudar a apontar uma ressonância da narrativa das Escrituras com a realidade, sendo mais coerente e eficiente que qualquer outra narrativa. Como cristãos, podemos usar o interesse atual no transcendente para apontar a revelação de Deus para a realidade através do normativo.

Conclusão

Por fim, podemos perceber que no mundo pós-COVID-19 a espiritualidade está cada vez mais em voga enquanto a religião tradicional sai de cena. Entretanto, isso não tira o poder e eficiência da visão bíblica para explicar a realidade. Concluímos que a busca por transcendência moderna só pode ser respondida a partir da revelação das Escrituras do Deus trino, seja em tempos de pandemia ou não.

Referências:

MCGRATH, Alister. Teologia natural: uma nova abordagem. Tradução de Marissa K.A. de Siqueira Lopes — São Paulo: Vida Nova, 2019

CHENEY, Jillian. New ‘Dune’ movie gives us a messiah for uncertain times. Disponível em: https://religionnews.com/2021/10/27/new-dune-movie-gives-us-a-messiah-for-uncertain-times/. Acesso em: 18 de novembro. 2021.

TWENGE, Jean M. Millennial Religiosity. SDSU. Disponível em: https://academicminute.org/2015/07/jean-m-twenge-sdsu-millennial-religiosity/. Acesso em: 18 de novembro. 2021.

TALLERICO, Brian. Connection is the Answer: Edson Oda on Nine Days. Disponível em: https://www.rogerebert.com/interviews/connection-is-the-answer-edson-oda-on-nine-days. Acesso em: 18 de novembro. 2021.

TYBJERG, Casper. Formas do intangível: Carl Th. Dreyer e o conceito de “estilo transcendental”. Tradução por Yves. Disponível em: https://www.revistasisifo.com/2020/07/formas-do-intangivel-carl-th-dreyer-e-o.html. Acesso em: 18 de novembro. 2021.

CAMARGO, Zeca. O cômico e o cósmico. Disponível em: https://g1.globo.com/platb/zecacamargo/2011/08/22/o-comico-e-o-cosmico/. Acesso em: 18 de novembro. 2021.

CARVALHO, Guilherme de. Como assistir “A Árvore da Vida” de Terrence Malick. Disponível em: https://ultimato.com.br/sites/guilhermedecarvalho/2012/03/30/como-assistir-a-arvore-da-vida-de-terrence-malick-3/. Acesso em: 18 de novembro. 2021.

HESSEL, Marcelo. Eternos não é só lacração e faz da representatividade sua razão de ser. Disponível em: https://www.omelete.com.br/filmes/criticas/os-eternos-eternals-marvel-critica. Acesso em: 18 de novembro. 2021.

Podcast: Religion in the Time of Pandemic. HARVARD DIVINITY SCHOOL. Disponível em: https://hds.harvard.edu/news/2021/03/12/podcast-religion-time-pandemic. Acesso em: 18 de novembro. 2021.

KIRSCH, Adam. Finally, a TV Show That Truly Takes Religion Seriously. Disponível em: https://newrepublic.com/article/118977/leftovers-turns-religion-entertainment. Acesso em: 18 de novembro. 2021.

COLBERT, Michael. “The Leftovers” Is Teaching Me Who I Want to Be After Covid. Disponível em: https://electricliterature.com/the-leftovers-is-teaching-me-who-i-want-to-be-after-covid/. Acesso em: 18 de novembro. 2021.

--

--

Hudson Araujo
vulgo H.A.S opina

Estudante de Letras, (inglês português), Redator, Escritor e outras coisas mais.