A IDENTIDADE NEGRA A PARTIR DO PERSPECTIVISMO

Hudson Araujo
vulgo H.A.S opina
Published in
8 min readOct 20, 2021
Unsplash

Introdução:

Diante da popularidade da pauta identidade negra, é necessário pensar e questionar alguns pressupostos sobre o termo. Com a ajuda do Teólogo John Frame, é proposto uma abordagem de identidade negra que não totalize a realidade e respeite as perspectivas normativas, existenciais e situacionais da questão levantada.

Identidade negra:

Um dos temas mais comentados e debatidos na atualidade tem sido o racismo e a desigualdade racial. O tema tem ganhado repercussão na discussão internacional, mas é de particular interesse para os brasileiros. Já que, como aponta Reis:

“Ao longo da história vivida no Brasil, a pessoa negra foi, e ainda há quem a considere, sinônimo de escravizada, subordinada, marginalizada, entre tantas outras expressões e situações que são apresentadas diante da sociedade numa condição de inferiorizadas.” (REIS)

A realidade da desigualdade racial e do racismo tem sido cada vez mais denunciada, principalmente por movimentos tidos como de esquerda, mesmo que o discurso não seja monopolizado pelo movimento político. Em termos de evidências, Douglas aponta que:

“Qualquer pessoa que tiver dúvidas sobre a existência do problema pode, simplesmente, reparar na quase absoluta ausência de negros nas melhores escolas, faculdades, restaurantes, cargos e posições da sociedade (…) Este País, que já teve leis que proibiam os negros de estudarem, nunca deu boa solução para a inserção social após a abolição da escravatura.” (DOUGLAS)

Diante disso, qual seria um o movimento de resposta para essa realidade? Uma possível solução, defendida por diversas políticas contemporâneas, é o movimento de valorização da identidade negra. Como isso pode ser resumido? Como diversos momentos importantes da história, existem várias vertentes. Porém, de forma geral, Reis aponta que o movimento de identidade consiste em reforçar “as várias expressões de valorização, orgulho e presença deste povo, que busca a auto-afirmação, começam a fazer parte do dia-a-dia das pessoas com mais frequência.” (REIS) O tema é um dos mais contemporâneos na discução política, mas devemos prestar a devida atenção pois o conceito “oferece particular interesse no cenário da sociedade brasileira, marcada pelo tratamento histórico desigual ao negro.” (ASSIS e CANEN)

As problemáticas do termo e seus pressupostos:

Diante da importância do tema, é necessário começar uma rápida análise do termo em si por partes: como podemos resumir a identidade em si? Ainda mais contextualizado em um contexto político? Para alguns estudiosos do tema, “esta identidade social é vista como algo que está relacionada àquilo que o indivíduo atribui, de forma positiva, a um grupo de referência, com o qual partilha satisfatoriamente valores e tradições.” (REIS) Portanto, nesta perspectiva, o motivador e identificador da identidade seria algo externo e cultural. “Os tipos de identidade são produtos socialmente determinados.” (REIS) Porém, dentro do próprio movimento de identidade, essa definição tem sido questionada, trazendo novas perspectivas. Assis e Canen apontam três dessas posições:

“Uma primeira, em que a discriminação sofrida foi o motor básico da construção identitária; uma segunda, em que a identidade negra é percebida em termos raciais, fenotípicos, ainda que em uma perspectiva nem sempre essencializada (Guimarães, 1999); e uma terceira, em que a dimensão cultural, presente particularmente na categoria etnia (D’Adesky, 2001), parece ser o centro dessa construção identitária negra, geralmente imbuída de uma perspectiva de identidade de projeto (Castells, 1999) mais acentuada nesta do que nas duas primeiras tendências.” (ASSIS e CANEN)

Desta forma, fica claro que existem confrontos dentro do movimento, seria a identidade negra formada pela experiência (inerente e existencial) ou socialmente (determinada pelas vivências e situações)?. Dentro destas questões, temos mais algumas problemáticas para colocar antes de dar respostas honestas para essa questão.

Além de questionar as questões da “identidade”, é necessário questionar os pressupostos do que queremos dizer com “negro”. Afinal, estamos falando de uma questão de raça ou etnia? Reforçar estereótipos raciais não seriam propensos a fortalecer o racismo e a segregação? Essa é a posição de alguns estudiosos, como apontam Assis e Canen: “Buscando ir além da determinante raça para a compreensão da construção da identidade negra, alguns autores, como D’Adesky, propõem a categoria etnia como mais fértil para se pensar em sua configuração.” (ASSIS e CANEN) Portanto, percebemos que o olhar para as identidades devem ser ainda mais cuidadosas, já que abraçar alguns pressupostos pode criar mais problemas que soluções, como aponta Guilherme de Carvalho: “para alguns sofistas somos simplesmente negros, com um etos negro, um patos negro, uma identidade negra, e um destino negro. Ou somos isso, ou não somos nada. Ou negamos quem somos.” (CARVALHO). Desta forma, a posição não é que não exista nenhum traço de uma personalidade negra, mas que desassociar o negro de uma singularidade para um coletivo puro e uniforme pode ser um vestígio dos movimentos de discriminação citados ao início. Douglas reforça o argumento com o seguinte desenvolvimento: “O navio negreiro de hoje é desprezar a autonomia da vontade e do pensamento, da liberdade de escolha e de expressão do negro que pensa diferente.” (DOUGLAS) Desta forma, a ideia de uma identidade negra tem sido usada para monopolizar discursos e ações como um discurso político. Sendo ainda mais claro no exemplo, Douglas continua. “Basta, por exemplo, um preto se declarar de direita e é imediatamente acusado de ser “capitão do mato”, fenômeno já visto várias vezes em nosso País.” (DOUGLAS) A posição defendida aqui é que o problema não é uma posição à esquerda no aspecto político em si, mas o monopólio. É limitador dizer que uma identidade negra pressuponha uma posição à esquerda. Como aponta Carvalho:

“Raça’ como base para distinções culturais e autoconstituição identitária, isso para mim é que é um nada; quanto a isso, sigo um ateu. E ainda mais ateu desses ideólogos que querem me usar nessa horrenda balcanização identitária, a serviço do puro agonismo político. Para quê criar tribos de negros? Para legitimar as tribos de brancos? Para oportunizar supremacistas malucos?” (CARVALHO)

Portanto, o mau uso de uma identidade negra pode terminar em totalitarismo. Por outro lado, não podemos ignorar a existência de culturas e vivências particulares de pessoas negras, gerando vivências e contextos muito particulares. Precisamos de uma definição de identidade que respeite as particularidades e universalidades, para que as perspectivas existenciais e situacionais possam ser respeitadas de igual modo, sem sobreposições ou totalidades. Afinal: “as dúvidas e dilemas que cercam o multiculturalismo e o processo de construção da identidade negra não devem ser interpretados como obstáculos ou inconsistências com relação a projetos transformadores.” (ASSIS e CANEN)

Uma abordagem perspectivista para a identidade negra:

Uma boa ferramenta para essas questões é a proposta do teólogo norte americano John Frame, o perspectivismo. Segundo ele, a realidade teria três perspectivas: normativa, situacional e existencial, todas elas coexistentes. Enquanto a maioria das abordagens de identidade negra sugerem que o autoconhecimento surge a partir do coletivo ou da própria experiência, para Frame o conhecimento pessoal vem do Conhecimento do Deus Cristão: trinitário, pessoal e revelado nas Escrituras. Para ele: “Calvino observa que o conhecimento de Deus e o conhecimento do ser pessoal humano são interrelacionados.” (FRAME, 2010, pg. 81) Porém, para o teólogo, esse conhecimento não vem sozinho. Conhecer a Deus é conhecer tanto a sua lei nas Escrituras (normativo) quanto sua criação (situacional). Portanto, se conhecemos a Deus através de sua lei e suas obras, e se conhecemos a nós mesmos conhecendo a Deus, por consequência “nós nos conhecemos conhecendo o mundo.” (FRAME, 2010, pg. 86) Nesta perspectiva, conhecer a si mesmo só é possível a partir do conhecimento de Deus e sua criação, sempre a partir da revelação nas Escrituras. Assim não ficamos reféns do nosso meio, existência, fenótipos, cultura ou até das discriminações que sofremos pela nossa cor de pele para saber quem somos. A identidade do Negro está em Deus generoso e plural que criou diversas culturas e etnias. Além disso, a perspectiva de Frame nos permite assumir os aspectos encarnados (a existência pessoal e situações específicas) com os normativos (criacional) sem nunca ignorar ou sobrepor uma perspectiva à outra. Pois:

“O conhecimento de Deus envolve (e está envolvido no) conhecimento de sua lei, mundo e de nós mesmos. Também é importante ver que as três últimas formas de conhecimento estão envolvidas umas às outras, por causa da sua mútua coordenação no plano de Deus.” (FRAME, 2010, pg. 82)

Essa distinção é importante para não cairmos em extremos. Pois, da mesma forma que existem visões sobre o negro que ignoram afirmações normativas, também é posível encontrar posições que levam em conta apenas o normativo, sem considerar as circustâncias específicas que o homem e a mulher negra vivenciam. O que é um erro, já que “toda decisão ética envolve a aplicação de uma lei (norma, princípio) a situação por uma pessoa (eu).” (FRAME, 2010, pg. 90) É importante dizer, por outro lado, que as posições em busca de uma identidade negra não são errôneas ou em vão, já que trazem luz a questões existenciais e situacionais de todo um grupo. E isso é digno e bom. Porém, sem a perspectiva normativa (as afirmações das Escrituras), uma busca por identidade negra sempre será, na melhor das hipóteses, incompleta. “Não tendo fé no Deus bíblico, os filósofos não cristãos sistematicamente procuram encontrar alguma outra base para a certeza, frequentemente por meio de “fatos” ou de alguma “lei”.” (FRAME, 2010, pg. 85) Diante de todas essas posições, ainda é possível pensar em uma identidade negra? A partir da posição de John Frame, é impossível pensar em uma identidade negra pura, já que existem outras perspectivas, sendo elas tanto pessoais quanto gerais na realidade de todo ser humano. Porém, dentro do próprio perspectivismo de Frame há espaço para uma experiência ou, (por que não?) Uma vivência negra. Ela não funciona como parte do todo, mas como um aspecto da realidade em conjunto com todos os demais aspectos. Desde que essa não sobreponha ou ignore as demais perspectivas. Portanto, afirmar uma possível vivência ou experiência negra é possível se usarmos uma ética integrada a todas as perspectivas. Pois, como aponta Frame: “A ética cristã deve apresentar a lei, a situação e o sujeito ético numa unidade orgânica.” (FRAME, 2010, pg. 91).

Conclusão:

Desta forma, conseguimos traçar e identificar uma vivência negra. Ou seja, valorizar os aspectos existenciais e situacionais sem ignorar as afirmações normativas das Escrituras sobre a realidade. Assim, podemos ter uma definição da realidade que seja mais abrangente e completa, sem cair em reducionismos.

Referências bibliográficas:

FRAME, John M. A doutrina do conhecimento de Deus. tradução Odayr Olivetti. São Paulo: Editora Cristã, 2010.

REIS, Maria da Conceição dos. O PROCESSO CIVILIZADOR NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NEGRA. Disponível em:https://www.uel.br/grupo-estudo/processoscivilizadores/portugues/sitesanais/anais12/artigos/pdfs/comunicacoes/C_Reis2.pdf. Acesso em: 30 de junho. 2021.

ASSIS, Marta Diniz Paulo de; CANEN, Ana. Identidade negra e espaço educacional: vozes, histórias e contribuições do multiculturalismo.

Disponível em: https://www.scielo.br/j/cp/a/Ytn5dMVDnvBrygDv58sPYsz/?lang=pt Acesso em: 30 de junho. 2021.

DOUGLAS, William. Consciência Negra e captura ideológica da questão racial. Disponível em: https://www.editorajc.com.br/consciencia-negra-e-captura-ideologica-da-questao-racial/ Acesso em: 30 de junho. 2021.

CARVALHO, Guilherme De. Não seja o negro do branco. Disponível em: https://guilhermedecarvalho.com.br/2017/08/18/nao-seja-o-negro-do-branco/ Acesso em: 30 de junho. 2021.

--

--

Hudson Araujo
vulgo H.A.S opina

Estudante de Letras, (inglês português), Redator, Escritor e outras coisas mais.