A Tragédia de Paraisópolis à luz da filosofia de Dooyeweerd

Hudson Araujo
vulgo H.A.S opina
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8 min readOct 6, 2021
Foto: Nilton Fukuda

Introdução:

Neste artigo, analisamos a tragédia de paraisópolis ocorrida em 2019 a partir da filosofia de Dooyeweerd, buscando um olhar geral e justo do caso sem cair em reducionismos.

Filosofia pra que?

Afinal, para que serve a filosofia? Essa questão tem sido cada vez mais recorrente, resultado de um pragmatismo presente em diversas vivências. Por outro lado, vemos, principalmente nos meios universitários mais preocupados com a transformação social, um crescente interesse por uma filosofia, em sua maioria, materialista e historicista.

Dentro da tradição Cristã, mais especificamente da tradição Neo Calvinista, vemos uma abordagem que se diferencia e tem algo a dizer. Segundo o filósofo e jurista holandes, Herman Dooyeweerd, a filosofia tem um lugar único no pensamento. Para ele, a função da filosofia é discutir, analisar e identificar as bases do pensamento. Afirmando que “somente a filosofia pode fazer dessa pressuposição um problema teórico.” (DOOYEWEERD, 2018, p. 51).

Com isso, o filósofo afirmava que todo pensamento tem pressupostos básicos, além da razão, mas de natureza antecedente à razão. E, para ele, cabe à filosofia começar, em algum grau, a apontar esses pressupostos: “é impossível conceber o sentido especial e a estrutura interna de um aspecto modal sem ter um insight filosófico da coerência temporal total de todos os diferentes aspectos modais.” (DOOYEWEERD, 2018, p. 51). Porém, qual seria a aplicabilidade dessa filosofia transcendental? Com um estudo de caso, podemos mostrar como tal filosofia é proveitosa e atual em sua abordagem.

O Caso do Massacre de Paraisópolis:

Alguns anos atrás, tivemos um caso paradigmático para discutir ações policiais em periferias. Na madrugada de 1 de dezembro de 2019, “nove pessoas foram mortas e 12 ficaram feridas em Paraisópolis, na Zona Sul de São Paulo, após ação da Polícia Militar (PM) em um baile funk.” (TOMAZ; STOCHERO). Como aponta o portal Brasil de Fato:

“A polícia alega que estaria perseguindo dois homens em uma moto que teriam efetuado disparos. A versão é contestada pela comunidade, que afirma que os agentes bloquearam as ruas com o objetivo de reprimir o baile. O cerco resultou em pânico e fuga desordenada de uma multidão de jovens, entre vielas estreitas e sem saída.” (SUDRÉ)

Segundo a análise de especialistas diante dos regulamentos, a intervenção “não teria seguido os itens detalhados no protocolo utilizado pela corporação paulista em casos de “controle de distúrbios civis”” (TREVISAN). Desde o ocorrido, a polícia está sendo investigada pelo ato. “Ao todo 31 PMs estão afastados das ruas porque estão sendo investigados se provocaram ou não as mortes.” (TOMAZ; STOCHERO) Porém, nenhuma ação concreta foi tomada pelo caso, nenhum indivíduo foi responsabilizado pela ação policial que resultou em feridos e mortes. Para o irmão mais velho de uma das vítimas, Danylo, se “a ação policial não tivesse ocorrido, não teriam ocorrido as nove mortes”. (TOMAZ; STOCHERO) Segundo o portal Valor, o Governador de SP, João Dória, se pronunciou sobre o caso da seguinte forma:

“As ações da comunidade de Paraisópolis e em outras comunidades, seja por obediência à lei do silêncio, seja por busca e apreensão de drogas ou fruto de roubos, vão continuar. A existência de um fato não inibirá as ações de segurança. Não inibe a ação, mas exige apuração, para que, se possa ter havido erros e falhas, possa ser corrigido.”

Ou seja, se pronunciando em favor da ação policial, o Governador defendeu que havia liberdade e necessidade da ação, mesmo havendo a possibilidade para erros (o que aqui ele se refere como sendo a morte dos 9 jovens). Além disso, apontou a questão das drogas como um dos motivos da ação. De fato, o Laudo respalda a fala do Governador, onde foi identificado que “todas as vítimas tinham substâncias tóxicas no sangue. Entre elas, álcool, cocaína, lança-perfume, anfetamina e crack. Apesar disso, não há confirmação de que esses produtos contribuíram para as mortes.” (TOMAZ; STOCHERO) Porém, boa parte dos moradores e pais das vítimas são contra o posicionamento do Governador. Segundo um dos parentes das vítimas, Vagner Oliveira:

“Todos nós batemos na mesma tecla que a culpa foi da polícia. Os vídeos mostram isso. O problema é que o governador não aceita, ele bate no peito e diz que tem a melhor polícia do país. Se ele assumir que a polícia dele falhou, ele vai assumir que errou e dá brecha para indenização e jurisprudência para outros casos.” (SUDRÉ)

Outros moradores e representantes da liderança cultural e política de paraisópolis também se colocam contra Dória: para Gilson Rodrigues, principal liderança de Paraisópolis: “Se o baile é uma realidade, que os governantes encontrem alternativas de segurança para que as pessoas possam vir aqui e voltar para casa sem problemas.” (QUINTELLA). Especialistas em segurança também consideraram a ação precipitada. O tenente-coronel aposentado Diógenes Lucca, afirma que: “A polícia deve ser orientada primeiro para proteger o cidadão e depois para pegar criminosos.” (QUINTELLA). Como diz Bruno Langeani, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz: “nesse sentido é bastante factível a gente dizer que, no mínimo, a polícia concorreu para as mortes que aconteceram.” (TREVISAN)

Com isso, podemos ver como a tragédia possui pontos de vista, filosofias e posições conflitantes entre si. Porém, a filosofia de Herman Dooyeweerd pode nos ajudar a encontrar algo ainda mais profundo nessas perspectivas.

As modalidades como identificadoras de injustiças:

Algo muito importante para entender a filosofia de Dooyeweerd são as chamadas modalidades. Nelas, o filósofo explica que possuímos uma experiência comum, pelo qual percebemos as coisas no tempo e no espaço, e a partir dela recebemos as esferas, ou modalidades, da existência. “Essa experiência apresenta grande diversidade de aspectos fundamentais, ou modalidades.” (DOOYEWEERD, 2018, p. 47). Sendo elas partes da realidade que se comunicam entre si enquanto dialogam em uma unidade. “Todos eles existem no tempo. Temporalidade é o fator que “amarra” (se podemos colocar assim) os modos básicos de existência.” (FREIRE)

A partir disso, podemos perceber que todas as modalidades se comunicam entre si, e que todo objeto e ser vivo, sensitivo ou não, possui atributos dessas modalidades. “até mesmo coisas inanimadas e acontecimentos naturais, como uma trovoada, funcionam em todos os aspectos modais de nossa experiência ordinária.” (DOOYEWEERD, 2018, p. 57).

Porém, dentro da Filosofia de Dooyeweerd, o ser humano possui um atributo único. “Como entidades, nós seres humanos também funcionamos em todos os aspectos modais.” (FREIRE) Apesar de todos os objetos comunicarem com alguns aspectos, apenas o ser humano possui capacidade de agir conscientemente em todas as modalidades.

Voltando para o caso Paraisópolis, diante desta filosofia, fica ainda mais evidente a violação do ser humano em seus aspectos mais básicos até os mais complexos, tornando o ocorrido ainda mais aterrorizante e chocante para nós. Dooyeweerd aponta que, ao reduzirmos casos como esses a apenas uns de seus aspectos, como Dória reduz apenas ao caso legal, ou do descuidado e violência dos policiais ao ver a população de forma apenas sensitiva, ignorando seus direitos jurídicos, ocorre o que o filósofo chama de reducionismo, o que pode “ter o efeito prático extremamente nocivo de moldar uma cultura em torno de um ou de alguns poucos aspectos a partir de uma visão distorcida das leis aspectuais que moldam a realidade.” (FREIRE)

Outro tipo de violência ocasionado por toda equipe policial, não foi apenas no aspecto físico (numérico, sensitivo), mas em níveis complexos, como no aspecto social e até histórico. Como aponta Azevedo sobre o ocorrido: “[A violência] É (também) a falta de certeza de que isso vai ser esclarecido. A falta de certeza que a memória de seus filhos será tratada com dignidade e que isso não vai voltar a se repetir.” (SUDRÉ)

Algo importante de apontar é que uma parte da comunidade, ao comentar o caso, ignora alguns aspectos legais, por exemplo, comentados por Dória, como a comercialização de drogas ou até a ilegalidade dos Bile Funks em si. Isso não justifica a ação policial, muito menos coloca a polícia e Dória em uma posição “menos errada” aos reducionismo da comunidade, mas apenas aponta como somos carentes de categorias que não reduzem a realidade em nenhum nível. Portanto, quando o reducionismo é em nível coletivo, ela “retrata a realidade como menos diversa do que realmente é. Retrata as possibilidades e leis que regulam a existência como mais limitadas do que são. O resultado pode ser desastroso para o bem-estar.” (FREIRE)

Outro ponto de extrema importância: nossas visões de modalidade e reducionismos não são de origem racional, mas suprateórica: “a absolutização como tal não pode, portanto, originar-se do próprio pensamento teórico. Ela testifica de forma ainda mais clara a influência de motivos suprateóricos.” (DOOYEWEERD, 2018, p. 63).

Portanto, a luta por uma visão completa do ser humano, que respeite todas suas áreas, vai além da filosofia. Porém, ela é um ponto de partida para identificar pressupostos reducionistas e buscar, enfim, uma filosofia não reducionista, para Dooyeweerd, encontrada somente em Deus, Cristo e na eternidade como pressupostos e fundamentos básicos:

“O não-reducionismo, pelo contrário, consegue abordar teoricamente a natureza básica da realidade temporal e é capaz de moldar de forma mais positiva a cultura e a vida em comunidade, de modo a desdobrar toda a diversidade de aspectos da vida. Tudo isso, é claro, partindo do pressuposto de que a Origem se encontra na eternidade” (FREIRE)

Conclusão:

Portanto, quando vemos casos como o de Paraisópolis, percebemos a falta que categorias não reducionistas nos fazem, gerando resultados catastróficos e trágicos. Que casos como esses nos impulsionem a buscar visões e filosofias que respeitem o ser humano, de qualquer cultura, em todos os seus aspectos:

“Quando essas vítimas são mortas e não lamentamos, estamos dizendo que elas já não pertenciam à comunidade quando estavam vivas. Resgatar a memória e falar sobre essas mortes é ter um compromisso com a manutenção da vida, para que os jovens tenham vida, tenham sonhos. Foram roubadas possibilidades de futuro” (SUDRÉ)

Referências bibliográficas:

DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental ocidental: estudo sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. tradução Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim de Souza — Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018.

FREIRE, Por L.G. Entidades e Aspectos Modais. ABC2 — H. Disponível em:

https://www.cristaosnaciencia.org.br/content/uploads/Entidades-modais.pdf. Acesso em: 02 Maio. 2021.

BOUÇAS, Cibelle. Após mortes, Doria vai manter atuação sobre bailes funk. Valor. Disponível em:

https://valor.globo.com/politica/noticia/2019/12/02/doria-lamenta-mortes-em-paraisopolis-mas-diz-que-programa-de-seguranca-nao-vai-mudar.ghtml. Acesso em: 02 Maio. 2021.

TOMAZ, Kleber; STOCHERO, Tahiane. Ação da PM que deixou 9 mortos e 12 feridos em Paraisópolis completa um mês; 31 policiais são investigados. G1. Disponível em:

https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/01/01/acao-da-pm-que-deixou-9-mortos-e-12-feridos-em-paraisopolis-completa-um-mes-31-policiais-sao-investigados.ghtml. Acesso em: 02 Maio. 2021.

SUDRÉ, Lu. Massacre de Paraisópolis: familiares lutam por justiça em meio a dor e saudade. Brasil de Fato. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/12/01/massacre-de-paraisopolis-familiares-lutam-por-justica-em-meio-a-dor-e-saudade. Acesso em: 02 Maio. 2021.

TREVISAN, Maria Carolina. Paraisópolis: policiais descumpriram protocolo em ação que gerou 9 mortes. UOL. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/12/27/paraisopolis-policiais-descumpriram-protocolo-em-acao-que-gerou-9-mortes.htm. Acesso em: 02 Maio. 2021.

QUINTELLA, Sérgio. “Fluxo” de Paraisópolis: abuso policial e festa sem regra. Veja. Disponível em: https://vejasp.abril.com.br/cidades/moradores-paraisopolis-baile-funk/. Acesso em: 02 Maio. 2021.

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Hudson Araujo
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Estudante de Letras, (inglês português), Redator, Escritor e outras coisas mais.