A violência urbana brasileira e a Trindade

Hudson Araujo
vulgo H.A.S opina
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7 min readOct 14, 2021
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Introdução:

Diante da violência como ato contínuo e frequente da realidade brasileira, buscamos neste artigo uma abordagem reformacional para o problema da violência urbana, apresentando bases de Dooyeweerd, Van Til, e da Trindade como ponto de partida para responder de forma bíblica um dos principais e mais presentes males do contexto brasileiro.

Violência no cotidiano brasileiro:

Não é nenhuma novidade que a questão da violência urbana seja um problema não apenas recorrente, mas presente na vida de muitos, senão todos, brasileiros. Uma pesquisa em 2018 revela que “o número de pessoas mortas de forma violenta no Brasil é semelhante ao de países em guerra.” (FARIA), sendo números maiores do que o da Síria, por exemplo. Porém, a violência no Brasil não é nada recente, fazendo parte da própria história do país e seus principais eventos, como aponta Oliven:

“Vemos ocorrer, ao lado dos grandes e incruentos acontecimentos oficiais (como a Proclamação da Independência e a da República), a violenta repressão a movimentos populares como o Quilombo dos Palmares, a Cabanada, a Balaiada, Canudos, Contestado, os Muckers e a revolta da Chibata.” (OLIVEN, 2010, pg.6)

Deixando o problema ainda mais complexo, colocamos por meio de construções históricas, culturais e políticas, uma única figura como mal supremo e principal causador dessas violências: “este é o “marginal”, figura que é utilizada para exorcizar os fantasmas de nossa classe média.” (OLIVEN, 2010, pg. 12) Porém, a realidade é mais complexa que isso. Os crimes e violências cometidos por pessoas de alta renda e todos que sofrem com esses feitos são excluídos dessa narrativa reducionista. Desta forma, importantes causadores da violência são ignorados, criando um vácuo tanto na visualização do problema, quanto na solução dele. Portanto, podemos afirmar que:

“Neste esquema de utilização político-ideológica da violência nunca se questiona o controle sobre o aparelho de repressão, os crimes de colarinho branco, as grandes negociatas, os acidentes provocados por falta de segurança no trabalho e a morte pela miséria.” (OLIVEN, 2010, pg. 12)

Podemos ver que a violência é um problema cotidiano, corriqueiro, histórico e de difícil solução política e sociológica, já que envolve uma complexa rede de envolvidos em todas as camadas sociais. Porém, quantas vezes ouvimos pregações e exposições bíblicas refletindo sobre a questão da violência urbana? Como nossos irmãos que sofreram diretamente por essa realidade são aconselhados e consolados no gabinete pastoral? Diante dessas perguntas, fica claro que é necessário um pensamento cristão sobre o caso.

A fé cristã como resposta para a violência:

Poderíamos seguir diversos caminhos para essa posição da fé cristã sobre a violência. Aqui, usaremos tanto uma filosofia quanto a apologética (defesa da fé) reformacional, aplicado à uma perspectiva trinitária. Desta forma, teremos uma visão completa e profunda de como a fé cristã responde a questão da violência.

A perspectiva de Dooyeweerd:

Para Dooyeweerd, importante filósofo cristão, uma das principais questões para se identificar a realidade é a partir de uma análise supra teórica, ou seja, para as questões não racionais relacionadas ao coração e motivos religiosos. Através de uma estrutura bíblica, ele desenvolveu uma filosofia que pode identificar o direcionamento do coração, sempre respeitando a ordem criacional das coisas, por assim dizer, as modalidades, onde cada aspecto da existência tem seu devido lugar.

“Dooyeweerd não se refere explicitamente à sagrada Escritura por não ser teológico, estando relacionada de modo principal com a ordem da criação por meio de uma cuidadosa investigação de dados estruturais encontrados na revelação da criação.” (BRAUN, 2019, pg. 41)

Dentro da visão Dooyeweerdiana, podemos afirmar que a violência ocorre, portanto, por questões suprateóricas, antes de teóricas. Obviamente, as modalidades, e a quebra dessa ordem criacional, interfere na violência. Porém, seu principal motivador seria o coração. Por exemplo: por mais que a violência seja causada por uma estrutura que tira os direitos dos menos favorecidos, impulsionando atos de violência, o problema não é apenas essa estrutura, mas sim os corações. Da mesma forma que os crimes dos poderosos e de colarinho branco, que muitas vezes envolve violência direta também, não se refere apenas a uma sobreposição das esferas (econômico e moral), mas principalmente de corações idólatras. A perspectiva de Dooyeweerd se diferencia de seu contemporâneo, Van Til, que segundo Dooyeweerd não possuía uma filosofia genuinamente cristã, apontando que “a distinção entre crítica teórica e suprateórica está ausente nas exposições de Van Til.” (BRAUN, 2019, pg.37) Porém, como Van Til também pode nos ajudar na investigação desse problema?

A perspectiva de Van Til:

Van Til foi um importante apologista que contribui muito no assunto da defesa da fé.

Para ele, a questão estava na confessionalidade: “o apologista reformacional tem a tarefa de reivindicar as verdades da Palavra-Revelação de Deus, não podendo, pois, falar apenas sobre “um Deus”” (BRAUN, 2019, pg.47) Ou seja, dentro de uma perspectiva Vantiliana, podemos chegar ainda mais próximos da questão principal da violência: o problema é a falta do reconhecimento do Deus trino, da negação da aliança com Deus, de corações que não aceitaram o evangelho. Aprofundando ainda mais a afirmação de Dooyeweerd, o problema não é apenas o coração, mas corações que não reconhecem o Deus das escrituras. Dentro dessa perspectiva, a violência urbana é resultado desses corações, e só será solucionado não com uma filosofia que aponte esse coração e suas motivações, mas com a pregação do Evangelho. Para Van Til, nada importa uma construção filosófica que identifique um Deus, se essa filosofia não aponta diretamente para o Deus das Escrituras. “Van Til acusa Dooyeweerd de falta de sinceridade metodológica no sentido de não estar disposto a revelar suas crenças básicas logo no primeiro passo da crítica transcendental.” (BRAUN, 2019, pg.53) Temos aqui duas perspectivas, que se comunicam entre si, mas com suas diferenças. Como podemos conciliar essas duas visões para uma solução ainda mais sólida sobre a violência?

Uma perspectiva Trinitária:

Para uma visão mais abrangente do tema, devemos trazer uma perspectiva trinitária. Mesmo as abordagens de Dooyeweerd e Van Til parecerem conflitantes, elas se relacionam na Trindade revelada. Ou seja, usando a Trindade como o motivo da filosofia de Dooyeweerd e usando sua filosofia para aprofundar a confessionalidade de Van Til. Desta forma, a Trindade é “a raiz transcendente da filosofia reformacional e da teologia do pacto.” (BRAUN, 2019, pg. 89) Mas não só isso: Trindade é o conciliador de Van Til e Dooyeweerd e um explicador eficiente sobre a violência. No aspecto da violência, a Trindade nos ajuda, antes de tudo, a enxergar a realidade com todas as suas simultaneidades, sem exclusões ou reducionismos. Isso pode ser aplicado resolvendo uma das questões já levantadas: a violência urbana é resultado da escolha de indivíduos à margem da sociedade, ou de uma estrutura de pessoas da alta sociedade que incentivam, organizam e causam os crimes através de escassez e falta de distribuição de renda? A partir da Trindade e das bases apologéticas e filosóficas apresentadas, podemos dizer que são ambos: o motivo da violência, ou de qualquer mal, é resultado de um meio que incentiva a violência e de indivíduos que decidem viver essa realidade.

Desta forma, a “Trindade é a única base para entender a unidade e a pluralidade do mundo.” (BRAUN, 2019, pg.89) , pois do mesmo modo que Deus se apresenta através das escrituras como um único Deus em três pessoas distintas, Pai, Filho e Espírito Santo, nessa perspectiva a criação também apresenta contornos trinitários, apresentando unidade e diversidade ao mesmo tempo. Como a violência sendo resultado tanto de uma responsabilidade individual como comunitária. A contribuição da Trindade não termina aqui. Através dela, fica ainda mais evidente que essas escolhas de pessoas que se voltam para o crime, em qualquer extremo de envolvimento, são resultados de corações não regenerados pelo Espírito Santo. Esse é o real motivo da violência. Por mais que sejam importantes ações sociais que zelem por parte do problema, que resolvam a parte coletiva de falta de perspectiva de muitos jovens em situação de risco, a real solução para uma vida urbana cheia de violências é o próprio evangelho. Pois, como aponta Dooyeweerd: “não há verdadeira obediência à vontade divina que não resulte do coração como centro religioso de nossa existência no sentido bíblico, devendo ser regenerado e aberto pelo poder da ação divina do Espírito Santo.” (BRAUN, 2019, pg.43) Portanto, temos não só um identificador desse mal, mas um parâmetro definitivo para a solução: a Trindade é nosso parâmetro como humanidade pois não existe violência dentro da Trindade.

Porém, ainda assim, a solução da violência não é definitiva, é impossível imaginar que todas as pessoas vão aceitar essa nova aliança proposta em Cristo, ou que os santos não vão cair em um ato de violência, mesmo que pontualmente. Por isso, a esperança final é escatológica, com a revelação da Trindade, temos a esperança da promessa feita por Cristo, de que há de existir um reinado sem dor, sem violência. E assim, todos aqueles que praticam a violência, todos aqueles que quebraram o pacto com a Trindade, terão seu devido castigo, todos os feridos serão justiçados no reinado definitivo de Cristo:

“Ele virá como o Deus-homem, certamente, mas virá em especial como o vitorioso Filho de Davi, Rei e Senhor, que está agora terminando a obra que o Pai decretou, desde a eternidade passada, para ele fazer. Jesus levará seus seguidores ao seu novo lar, com ele, os tornará semelhante a si mesmo para sempre e destruirá os rebeldes com a espada de sua boca.” (WARE)

Portanto, a Trindade é essencial para respondermos à violência, com ela, direcionamos os problemas, as soluções e as esperanças de um mundo sem violência.

Conclusão:

Ou conhecemos alguém que sofreu com a questão da violência ou nós mesmos já passamos por esse infortúnio. Portanto, é fundamental ter uma perspectiva cristã sobre o assunto, através da filosofia, apologética reformacional trinitária, temos algumas ferramentas para olhar a violência em nosso cotidiano sem reducionismos, olhando para suas raízes, possíveis soluções e esperança no plano redentor revelado nas escrituras para todo e qualquer mal, incluindo a violência.

Referências bibliográficas:

BRAUN JUNIOR, Guilherme. Um método trinitário neocalvinista de apologética: Reconciliando a apologética de Van Til com a filosofia reformacional. Brasília, DF: Academia Monergista, 2019.

WARE, Bruce. Retornando Em Glória. Tradução de Francisco Wellington Ferreira. Voltemos ao evangelho. Disponível em: https://voltemosaoevangelho.com/blog/2013/06/retornando-em-gloria-bruce-ware/. Acesso em: 05 Mai. 2021.

FARIA, Neli. Total de mortes violentas no Brasil é maior do que o da guerra na Síria. Folha de São Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/06/total-de-mortes-violentas-no-brasil-e-maior-do-que-o-da-guerra-na-siria.shtml. Acesso em: 05 Mai. 2021.

OLIVEN, RG. Violência e cultura no Brasil [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisa Social, 2010. Disponível em: https://static.scielo.org/scielobooks/b8n7j/pdf/oliven-9788579820069.pdf. Acesso em: 05 Mai. 2021.

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Hudson Araujo
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Estudante de Letras, (inglês português), Redator, Escritor e outras coisas mais.