Não desenvolver seu senso estético é pecado:

Marvel, Scorsese, Rookmaaker e a lógica do mercado sobre a estética

Hudson Araujo
vulgo H.A.S opina
8 min readDec 18, 2021

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Marvel Studios, 2021.

Introdução

A partir da filosofia de Hans Rookmaaker e dos depoimentos de Martin Scorsese e Paul Schrader sobre os filmes de super-heróis da Marvel, podemos fazer uma análise sobre a autonomia do aspecto estético sobre o mercadológico, assim como traçar uma possível resposta cristã a respeito.

A desvalorização da estética e a lógica do mercado

Em nosso mundo contemporâneo, o entretenimento ocupa um grande lugar em nossa rotina. Muito além dos grandes centros, qualquer espaço urbano que tenha algum acesso à internet é atingido por grandes produções hollywoodianas ou canções produzidas em escala nacional. Com a cultura de massa e entretenimento tão entrelaçados em nossas vidas, em diversas mídias, é necessário perguntar e refletir sobre o quanto a questão econômica deixa refém os aspectos artísticos. Esta certamente não é uma questão nova, mas em um contexto onde “as métricas são tão acessíveis, os analytics estão disponíveis” (ALEXANDRE, 2021), é importante refletir acerca do lugar de cada esfera de soberania.

Para isso, vamos analisar um caso de grande escala: os comentários do cineasta Martin Scorsese sobre os filmes da produtora Marvel Estúdios.

Marvel é cinema? Um estudo de caso

Atualmente, os filmes da Marvel Estúdios estão entre as maiores bilheterias da história do cinema. Baseados em quadrinhos dos super-heróis, o estúdio tem alavancado seu sucesso e lançado diversas produções no cinema e no streaming. Porém, o aclamado diretor e estudioso do cinema Martin Scorsese fez uma declaração polêmica durante uma entrevista em 2019, no ápice do sucesso do estúdio. Ele mesmo explica:

Eu disse que tentei assistir a alguns deles (os filmes) e que eles não são para mim, que eles me parecem mais próximos dos parques temáticos do que dos filmes como eu tenho conhecido e amado ao longo da minha vida, e que no final das contas, não acho que sejam cinema (SCORSESE, 2019).

A declaração foi vista com maus olhos por defensores do estúdio, estudiosos e críticos do meio, já que passa uma visão limitadora sobre a própria mídia, o cinema. Porém, o que nos é interessante aqui é que Scorsese percebeu algo e o comentou com afinco: a dominação da esfera econômica sobre a esfera criativa. Para o diretor, “os filmes são feitos para atender a um conjunto específico de demandas e são projetados como variações sobre um número finito de temas” (SCORSESE, 2019). Ou seja: a questão para ele não é um aspecto técnico ou de capacidade das pessoas que produzem os filmes do estúdio. Mas sim uma falta de inclinação artística, uma lógica de produto, mercado e demanda atendida com características específicas e temas limitados.

Muitos filmes hoje são produtos perfeitos fabricados para consumo imediato. Muitos deles são bem feitos por equipes de indivíduos talentosos. Ao mesmo tempo, falta-lhes algo essencial para o cinema: a visão unificadora de um artista individual. Porque, é claro, o artista individual é o fator mais arriscado de todos (SCORSESE, 2019).

Desta forma, ainda mais contando com o alcance e monopólio da produtora, Scorsese também se preocupa com a questão mercadológica. Ou seja, a saúde do próprio aspecto econômico. “Em muitos lugares deste país e do mundo, os filmes de franquia são agora sua escolha principal se você quiser ver algo na tela grande” (SCORSESE, 2019). Aqui o problema central fica claro: se a maior produtora de filmes no mudo não se preocupa em fazer filmes voltados para o aspecto artístico que tenha mais sensibilidade humana, e as salas de cinema só mostram isso, raramente o público geral vai querer ver outro tipo de filme: “se as pessoas recebem apenas um tipo de coisa e vendem indefinidamente apenas um tipo de coisa, é claro que vão querer mais desse tipo de coisa” (SCORSESE, 2019).

É importante questionar: o diretor está certo? É necessário dizer que ele não está sozinho. Um frequente colaborador do diretor, Paul Schrader, comentou sobre os depoimentos do amigo. Ele discorda sim sobre a definição sobre o que é cinema ou não: “não, eles (os filmes da Marvel) são cinema. Assim como aquele vídeo de gato no YouTube, é cinema” (SCHRADER, 2021). Porém, não há discordância sobre o aspecto econômico. O diretor e roteirista diz que “é surpreendente que o que costumávamos considerar entretenimento para adolescentes, histórias em quadrinhos para adolescentes, tenha se tornado o gênero dominante economicamente” (SCHRADER, 2021). Schrader até aponta as dificuldades de fazer filmes dentro desta lógica de mercado predominante, e dá a entender que parte do público também perdeu o desinteresse por filmes mais complexos e menos comerciais: “quando o público não quer filmes sérios, é muito, muito difícil fazer um (…) esses filmes ainda estão sendo feitos, mas não estão mais no centro da conversa” (SCHRADER, 2021).

Sobre a lógica de mercado e aspecto artístico, o jornalista cristão Ricardo Alexandre tem algo para contribuir. Ele atribui parte dessa confusão pela junção de esferas que é a cultura POP: “quando a gente fala de arte pop, falamos exatamente da junção — da intersecção — entre criatividade e mercado” (ALEXANDRE, 2021). Portanto, no mundo da globalização, a arte popular está inevitavelmente entrelaçada com a questão econômica. Isto dificilmente está passível de mudança. Mas, ainda assim, é importante e necessário fazer uma distinção clara de cada esfera e como ela vai atuar no resultado da obra de arte, seja ela um filme, música ou qualquer outro tipo de mídia ou formato:

A dificuldade de pensar arte pop atualmente — atualmente não, acho que desde de sempre! — é o risco de pensarmos em termos de mercado (…) justamente por a arte pop se relacionar tanto com o mercado, eu acho que se corre o risco de pensar na cultura pelas lógicas do alcance, da padronização e do volume — que são próprias do mercado (ALEXANDRE, 2021).

A negligência da estética como pecado

Como já mencionado anteriormente: esta questão não é nova. Um grande filósofo cristão, Hans Rookmaaker, já avisava da necessidade de conversar sobre a esfera estética e como ela dialoga, ou não, em relação com as outras esferas. É importante lembrar que “toda ação humana flui do coração, onde escolhemos estar contra ou a favor de Deus” (ROOKMAAKER, 2018, p. 22). Portanto, um mau uso da esfera da estética não é apenas indesejável ou errado, mas um pecado contra a lei de Deus e suas estruturas criacionais.

Para esta afirmação, é necessário reafirmar os pressupostos do filósofo em questão. Para ele, existe uma ordem para a criação e para a realidade, que podem ser divididas em funções. Em suas próprias palavras, “ao ser humano, e portanto também à realidade temporal, foi dado por Deus um conjunto de funções” (ROOKMAAKER, 2018, p. 22). Cada uma dessas funções tem independência entre si, mas existe dependência e coabitação entre elas: “essas funções são muito diferentes em qualidade e ainda assim têm coerência. Também são chamadas “esferas de lei”” (ROOKMAAKER, 2018, p. 22).

A realidade é composta por esferas de lei. Cada esfera diz respeito a um aspecto da realidade e é impossível fazer total separação, visto que a realidade é formada por todas elas. Porém, para fim de estudos, é importante separar teoricamente cada esfera e suas funções, para assegurarmos que cada esfera cumpre sua função devida. Pois “filósofos cristãos, contudo, não deveriam absolutizar um dos aspectos da realidade, porque conhecem o Deus verdadeiro” (ROOKMAAKER, 2018, p. 21). Uma dessas esferas de soberania é a Estética, que diz respeito à harmonia e beleza de todos os aspectos da realidade, como o biológico ou jurídico, mas que pode ser aplicada também para às artes. Portanto, “numa obra de arte, tudo é dirigido e guiado pela função estética” (ROOKMAAKER, 2018, p. 24).

Então, nesses pressupostos: sabemos que Deus criou a realidade sendo instituída por Ele com um propósito. Sabemos também que a realidade não é composta por uma única esfera, mas de várias funções que compõem a realidade toda. Quebrar a lei de Deus, em qualquer grau, é chamado na teologia cristã de pecado. Portanto, não é nenhum exagero nomear quando uma das esferas não é respeitada e honrada de pecado. O próprio Rookmaaker afirma sem dificuldades que “posso construir algo feio, (em desacordo com as leis da estética). (…) Transgredir essas normas, obviamente, é pecado” (ROOKMAAKER, 2018, p. 23). Aqui Rookmaaker se refere à criação da arte, mas ela pode ser facilmente aplicada também ao seu consumo não criterioso. Quando consumimos obras de arte sem se preocupar com o aspecto estético e nos rendemos aos apelos mercadológicos da arte, podemos dizer sem medo que isso é sim, pecado.

Rookmaaker previu e alertou, inclusive que a arte poderia ser cooptada e desrespeitada por outras esferas: “se uma das estruturas ultrapassa as fronteiras dadas por Deus e interfere em questões internas de outra, então é inevitável que uma delas seja prejudicada” (ROOKMAAKER, 2018, p. 24). Neste aspecto, Rookmaaker e Scorsese não só dialogam como concordam e se encontram perfeitamente, já que ele direciona a mesma preocupação: “temo que o domínio financeiro de um esteja sendo usado para marginalizar e até menosprezar a existência do outro” (SCORSESE, 2019).

Ou seja: negligenciar que existe um tipo de arte que vai além do previsível e seguro para as métricas do capital é um pecado que os cristãos devem evitar. Ricardo Alexandre, por sua vez, aponta que a arte deve manter seu espírito não qualificável: “por mais que a arte pop se relacione com o mercado, falar/pensar cultura ainda precisa ser visto de um ponto de vista espiritual. Espiritual no sentido de não-material, não quantificável” (ALEXANDRE, 2021).

Não só isso: pensar a arte fora das amarras do mercado é um dever do cristão, já que ele tem a visão de mundo capaz de direcionar essa incoerência para algo além do comercial.

“O cristianismo é a dimensão — o Reino de Deus é a dimensão — na qual o próprio Deus diz: “Vocês observam a sociedade e veem como os poderosos subjugam os mais fracos? Não será assim entre vocês!”, “Quem quiser liderar, que sirva”, “Bem-aventurados os que choram”” (ALEXANDRE, 2021).

Não à toa Scorsese e Schrader já declararam se aproximar muito da fé cristã e confessar alguns aspectos dela. Portanto, para o cristão inserido no nosso modelo comercial e com acesso a esse tipo de entretenimento, cabe fazer a distinção das esferas. Não necessariamente o boicote ou a isenção, mas discernir o que é bom, o que é mediano e o que está totalmente rendido às lógicas do mercado. O cristão que interage com a cultura pop deve conseguir distinguir entre uma obra de arte e uma propaganda bem feita. Qualquer coisa diferente disso, e a falta de um desenvolvimento consciente de um senso estético, é pecado contra as esferas instituídas por Deus. Sobre a missão dos cristãos neste aspecto, Ricardo Alexandre nos ajuda mais uma vez:

“A miniaturização e a praticidade de tudo é algo para ser revisto. Não estou dizendo que estamos aqui para mudar essa tendência, mas para que a gente (que vive, respeita e debate cultura) tente remar contra a corrente, trilhar esse caminho estreito” (ALEXANDRE, 2021).

Conclusão

Diante disso, fica claro o dever do cristão. A lógica do mercado existe e deve ser respeitada, mas nunca deve se sobrepor às outras esferas de soberania. Portanto, o cristão deve estar atento, desenvolver seu senso estético, e exercer o reinado de Cristo também nesta área. Valorizando o humano, o espiritual, o não quantitativo e o inesperado, sempre nas conformidades das leis de Deus. Só assim poderemos direcionar o reinado de Cristo e devolver, mesmo que aos poucos e de forma localizada, a autonomia da esfera estética. “A mensagem de Jesus é o contrário dessa lógica fria do mercado” (ALEXANDRE, 2021).

Referências:

ROOKMAAKER, Hans R. Filosofia e estética. Tradução William Campos da Cruz — Brasília, DF: Editora Monergismo 2018.

MARONI, Bruno. Entrevista com Ricardo Alexandre. Invisible College.

Disponível em: https://theinvisiblecollege.com.br/entrevista-com-ricardo-alexandre/. Acesso em: 30 Out. 2021.

PAIELLA, Gabriella. Paul Schrader Knows the Perfect Clickbait Headline for This Interview. GC. Disponível em: https://www.gq.com/story/paul-schrader-card-counter-interview. Acesso em: 30 Out. 2021.

SCORSESE, Martin. I Said Marvel Movies Aren’t Cinema. Let Me Explain. New York Times. Disponível em: https://www.nytimes.com/2019/11/04/opinion/martin-scorsese-marvel.html. Acesso em: 30 Out. 2021.

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Hudson Araujo
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Estudante de Letras, (inglês português), Redator, Escritor e outras coisas mais.