Pai e filha, os desdobramentos do capital moral no âmbito público e familiar

Hudson Araujo
vulgo H.A.S opina
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8 min readNov 13, 2021
Ozu, Pai e Filha

Diante da desintegração moral da sociedade contemporânea, surgem análises sobre as origens do problema e possíveis soluções. Roel Kuiper aponta o processo de individualização e falta de capital moral como principais causadores do atual cenário. Através do filme “Pai e Filha” de Ozu, temos um exemplo mais visível desses movimentos.

A globalização como agente de desintegração do Capital Moral:

Não é segredo nenhum que nossa sociedade enfrenta uma crise moral severa. Basta observar os noticiários para ver a dificuldade coletiva de convivência, envolvendo problemas políticos e criminais. Fica evidente que “a sociedade pós-moderna se transformou num mundo desregulado. E, consequentemente, também as pessoas acabam desreguladas.” (KUIPER, 2019, p. 19). Um dos principais sinais desse esfacelamento é a falta de confiança mútua. Uma vez que “cada sociedade sempre necessita de formas de confiança social para poder funcionar.” (KUIPER, 2019, p. 20). Podemos dizer também que há cada vez mais uma dificuldade coletiva de confiança. Tanto nas relações particulares quanto na relação com as instituições, como igrejas, escolas e o próprio Estado. Isso só evidencia um esfacelamento moral coletivo, pois: “o fato de a confiança ser tematizada tão expressamente como um problema da sociedade pós-moderna salienta a inquietação sentida de forma ampla sobre a qualidade das relações sociais.” (KUIPER, 2019, p. 20). Diante dessas questões, qual seria a origem dessa desconfiança? Há vários motivos para esse cenário, mas um deles é certo: a lógica de mercado amplamente difundido pela cultura de massa é uma das principais causadoras dessa desconfiança coletiva. Pois: “individualização e globalização criam uma cultura do desprendimento em sociedades que até há algumas décadas pareciam estar com seus sistemas políticos e sociais em ordem.” (KUIPER, 2019, p. 18). Desta forma, encontramos uma sociedade com uma lógica interna muito diferente da confiança, onde é incentivado o descarte, o utilitarismo e o individual. Quando tais ideias moldam o comportamento coletivo, valores vitais para a convivência são comprometidos. Portanto, “os estilos de pensamento e padrões de agir modernos são responsáveis pelo deslocamento do capital moral necessário para o funcionamento das sociedades” (KUIPER, 2019, p. 40).

Onde esses valores de convivência podem ser resgatados? Quais seriam as correlações entre essa crise pública e o âmbito moral familiar e particular? É isso que Roel Kuiper nos apresenta em seus estudos no livro Capital Moral. Através de uma análise certeira, o autor propõe que parte do problema seria a falta de moral coletivo que não está sendo desenvolvido. Kuiper vai dar o nome desses valores de capital moral, que seria um tipo de “crédito” de virtudes geradas em determinados âmbitos (família, igreja e Estado) que são usados e aplicados em toda a convivência social. O próprio autor diz que: “como capital moral entendo a capacidade (individual e coletiva) de estar junto ao próximo e ao mundo de uma forma preocupada.” (KUIPER, 2019, p. 24). Com “moral” o autor não se refere simplesmente a um conjunto de ideias e preceitos, mas algo muito mais palpável. Kuiper traça comportamentos e valores profundos intrínsecos à vida comunitária. Em outras palavras: “no comportamento preocupado do qual estou falando se expressam valores centrais como amor e lealdade — em diversas modalidades e de acordo com contextos.” (KUIPER, 2019, p. 24). Um ambiente fundamental para a formação do capital moral seria, segundo o autor, a família. Segundo ele: “a comunidade da família é a unidade menor e mais importante para a formação de capital moral.” (KUIPER, 2019, p. 197). Pois esse seria o ambiente onde habilidades e virtudes essenciais são desenvolvidas. A família é a um campo central nesta disputa entre globalização e a prática da aliança e “preocupação”, descrita anteriormente como uma das principais definições do capital moral. Pois: “todas as formas fortes de altruísmo também começam na comunidade familiar.” (KUIPER, 2019, p. 197). Com isso, definimos de forma resumida que: existe um contexto (globalizado), um efeito (falta de confiança e individualização), uma solução ou falta dela (a prática do cuidado) e ambientes para a produção desses recursos (um deles sendo a família). A ideia pode parecer complexa ou pouco prática. Porém, com uma aplicação o conceito de Kuiper pode ficar ainda mais claro e até mesmo tomar novos contornos. Talvez, nosso exemplo perfeito de aplicação se encontra no Japão pós guerra de 1949.

Pai e filha como exemplo de falta e presença do Capital Moral:

Por mais que o exemplo acima pareça distante de nosso contexto, se aplica muito ao presente assunto. O mundo pós Segunda Guerra apresenta os mesmos conflitos: um mundo prestes a se globalizar enquanto lida com suas tradições familiares e coletivas. Ao invés de uma consciência geral, o mundo passou a se preocupar com um padrão de vida baseado no consumo, gerando uma maior ênfase no individual. Obviamente, o país que encabeçou essa mudança foi os E.U.A:

“O que, afinal de contas, os estadunidenses haveriam de fazer depois de sua vitória sobre a Alemanhã Nazista? (…) “O objetivo supremo dos Estados Unidos”, como relatou a missão ao presidente “é o de guardar os direitos do indivíduo e aumentar suas oportunidades.”” (KUIPER, 2019, p.37)

Porém, essa mudança não ficou parada apenas no país, se espalhando por todo o mundo. Segundo Matsuura: “a globalização marca a ascensão de uma era materialista que revela o colapso de valores que dão sentido à nossa existência. A dinâmica é avassaladora, mesmo num contexto não ocidental.” (KUIPER, 2019, p. 41). O Japão foi um dos países que teve um impacto direto desse movimento, tanto na perda dos valores universais como também na invasão globalista e consumista. Existe um filme do período que ilustra muito bem esses conflitos. Pai e Filha (Ozu, 1949). Nele, temos um complexo retrato onde:

“Shukichi é um professor viúvo e absorto em seu trabalho. Sua filha solteira, Noriko, cuida da casa para ele. Ambos estão perfeitamente satisfeitos com este acordo até que a irmã do velho declara que sua sobrinha deve se casar. Afinal de contas, Noriko está na casa dos 20 anos; no Japão em 1949, uma mulher solteira daquela idade está se aproximando do fim de sua vida útil. A irmã avisa o professor que após sua morte Noriko ficará sozinha no mundo; é seu dever empurrá-la para fora do ninho e encontrar um marido que possa sustentá-la. O professor relutantemente concorda. Quando sua filha se opõe a qualquer ideia de casamento, ele diz a ela que também vai se casar novamente. Isso é mentira, mas ele sacrifica seu próprio conforto pelo futuro de sua filha. Ela se casa.” (EBERT)

A primeira coisa que podemos observar é o impacto da globalização na vida pessoal dos personagens. Pois, em questão de alguns anos, as decisões do jovem adulto japonês, personificado aqui por Noriko, mudam significativamente. De uma preocupação do coletivo (que seria a formação de uma nova família) para uma preocupação individual (a preocupação de manter o arranjo familiar como está). Obviamente, o retrato não é tão simples. A filha tem uma preocupação genuína com o pai, o que mostra valores e virtudes bem tradicionais, principalmente para nossos olhos individualizados do Século XXI. Porém, é possível observar sim uma preocupação individual com os próprios desejos. Há aí um antagonismo com uma visão da tradição incorporada pela a tia: abrir mão de uma felicidade e liberdade individual para a formação de uma nova família, em favor da sociedade e da tradição. É possível resumir o conflito em:

O sutil, mas doloroso, choque entre o tradicionalismo doméstico japonês e o modernismo e o feminismo — entre o velho inseguro e o jovem inquieto — é o campo de ação de Ozu, e aqui isso é realinhado após a era da guerra e complicado implicitamente por sinais de uma americanização invasiva. (CRITERION)

Da mesma forma que a falta de desenvolvimento de capital moral dentro das famílias afeta todo um coletivo, é inegável a afetação do coletivo no particular e familiar, uma vez que “o que acontece com família, casamento e divórcio é um reflexo do que está acontecendo em maior escala na sociedade.” (KUIPER, 2019, p. 44). Ambos estão correlacionados, e a forma como Noriko deseja uma vida sem os compromissos do casamento está fortemente entrelaçada com o contexto globalizado em que ela vive. Em um primeiro momento, Pai e Filha pode ser reduzido ao retrato do efeito da individualização na família, principalmente na resistência da filha sobre o casamento. Porém, esse seria um olhar simplista, uma vez que há mais camadas para serem desvendadas. Tanto o pai quanto a Filha, fazem um sacrifício ao final do filme, sacrifício esse que se esbarram na descrição de capital moral, com sinais de preocupação, lealdade e amor genuíno pelos membros da família, mesmo que isso envolva algum tipo de renúncia, sacrifício e até mesmo distância. A filha afirma com todas as palavras que não acredita que: “O casamento não me faria mais feliz. Você pode se casar novamente, mas eu quero estar ao seu lado.” (EBERT) Porém, ao final toma a decisão de uma nova vida, apenas para o agrado do pai. Da mesma forma, o pai tem uma forte preocupação com o bem estar da filha, uma vez que afirma: “Sua mãe não era feliz no começo. Eu a encontrei chorando na cozinha muitas vezes.” (EBERT) O Pai está consciente de todas as dificuldades que a filha irá passar, mas está convicto que esse é o melhor caminho para ela.

Também é necessário fazer uma afirmação importante: o pai incentiva a decisão da filha de se casar com base em uma mentira, rompendo o trato social da confiança citado anteriormente, necessário para o convívio. Rompendo valores importantes e evidenciando uma ruptura e falta de capital moral. Desta forma, não seria exagero dizer que o pai teria sido tão afetado quanto a filha pela individualização. A tradição japonesa não é necessariamente o maior exemplo de moral e convivência. Porém, é possível ver, com a globalização, o esfacelamento de valores importantes para uma convivência se dissolverem nesse microcosmos. Voltando à Kuiper, essa análise é importante pois é na família que conseguimos avaliar se uma sociedade está sendo capaz de produzir capital moral para uma convivência coletiva saudável. Já que “a comunidade familiar (…) é onde se exercitam as atitudes morais mais fundamentais” (KUIPER, 2019, p. 197). No caso de Pai e Filha, vemos uma transição histórica, onde é possível encontrar tanto virtudes corrompidas pela individualização quanto cuidados e preocupações familiares próprias do meio. O que traz um retrato complexo da época e do próprio conceito de Kuiper. Diante do caso analisado, temos um bom exemplo de como o capital moral se desenvolve e se desintegra.

“Pai e Filha é um filme sobre duas pessoas que desesperadamente não acreditam nisso (na tradição), e sobre como elas são desfeitas pelo tato, suas preocupações um com os outros e a necessidade de deixar os demais confortáveis, fingindo concordar com eles.” (EBERT)

Conclusão:

Nosso cenário social é complexo. Mas com conceitos como o de capital moral e ilustrações como Pai e Filha podemos observar ainda melhor as causas e possíveis soluções de nossa condição. Com a aproximação desses artefatos e uma análise lado a lado, ambos ganharam novos contornos. O conceito se expande e o filme pode ser visto como “um passo em direção a compreensão dos vastos efeitos da era do pós-guerra entre os cidadãos comuns — ou, se isso não for possível, pelo menos capturá-los em um âmbito compassivo.” (CRITERION)

Referências bibliográficas:

KUIPER, Roel. Capital moral: o poder de conexão da sociedade. Tradução Francis Petra Janssen — Brasília, DF. Editora Monergismo. 2019.

ATKINSON, Michael. Late Spring: Home with Ozu. The Criterion Collection. Disponível em: https://www.criterion.com/current/posts/421-late-spring-home-with-ozu. Acesso em: 04 Ago. 2021.

EBERT, Roger. Sadness beneath the smiles. Disponível em:

https://www.rogerebert.com/reviews/great-movie-late-spring-1972. Acesso em: 04 Ago. 2021.

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Hudson Araujo
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Estudante de Letras, (inglês português), Redator, Escritor e outras coisas mais.