O Blues e suas Rainhas

Gui Grazziotin
We and the Devil Blues
4 min readMar 15, 2016

Acredito ser importante citarmos a relevância da mulher para a evolução do Blues. As Blues Queens marcaram uma época onde o Blues ainda engatinhava no aspecto comercial e a maioria da população branca dominante ainda não o reconhecia como um legítimo gênero musical.

Surgiram no início dos anos 20, nos Estados Unidos e eram versáteis cantoras de cabaré que trouxeram ao mercado fonográfico um estilo único e especial de cantar Blues. Mamie Smith fez tremer o mundo do entretenimento musical quando gravou a música “Crazy Blues”. Após estourar o fenômeno e marcar o início de uma nova era na música popular, Mamie juntou-se à outras cantoras afro-americanas como Ethel Waters, Lucille Hegamin, Alberta Hunter e Edith Wilson. Juntas, foram as primeiras artistas negras a conseguirem reconhecimento e a receberem o título de Blues Queens. Elas consagraram o início de uma dinastia feminina relevante e eterna.

Partitura da música Crazy Blues. Na foto, Mamie Smith e a orquestra que a acompanhava

As suas primeiras gravações soavam muito parecido com o material de Sophie Tucker e Marion Harris, cantoras brancas de renome na época. Mesmo assim, os materiais gravados pelas Blues Queens provaram às gravadoras que havia um mercado viável e lucrativo criado por negros para negros. Por volta de 1923, as gravadoras criaram o que foi denominado Race Records (Race era o termo educado usado para substituir expressões como “negro” e “de cor”).

Seção de um catálogo de Race Records da gravadora Okeh datada entre 1926 e 1930. Fonte: The Library of Congress

Dada a extensão que o Blues alcançou com a criação do mercado de Race Records, era uma questão de tempo até que os produtores procurassem por todos os cantos as cantoras que adotaram o estilo no circuito musical sulista.

Bessie Smith lançou sua primeira gravação pela gravadora Columbia em Maio de 1923 e conquistou quase o mesmo sucesso que Crazy Blues. Bessie, eventualmente, trazia elementos pop às suas músicas, mas o Blues era sua alma. Ela possuía o controle vocal de uma diva de ópera, o fraseado de uma solista de jazz e o poder emocional de uma grande atriz. Com o lançamento de sua primeira obra, Down Hearted Blues, em pouco tempo estava participando de programas de rádio e realizando turnês nos teatros do norte. Não demorou até que outras gravadoras procurassem por cantoras que seguissem o mesmo estilo de Bessie, assim, foram lançadas Clara Smith (que não possui nenhuma relação com Mamie ou com Bessie), Ida Cox, Sippie Wallace e Ma Rainey.

Fotografia de Bessie Smith datada de 1936. Fonte: The Library of Congress

As Blues Queens eram especialistas no estilo que chamamos de Deep Blues: timbres vocais, sutilezas tonais e um senso rítmico que refletia as raízes afro-americanas. O Deep Blues também trouxe letras poéticas, mas, ao mesmo tempo, cruas e diretas que jogavam ao vento a realidade do povo negro e, principalmente, da vida da mulher negra e sua sobrevivência em um país preconceituoso e machista.

Jelly Roll Morton, importante pianista de jazz nascido por volta de 1890, relatou que um dos primeiros blues que ouviu lamentava a vida difícil de uma prostituta de rua e muitas das letras de Bessie Smith e Ma Rainey, sem dúvida, traziam o mesmo conceito. Ainda que suas obras vendessem para o público branco, era para o público afro-americano que elas cantavam, especialmente às mulheres, expressando musical e poeticamente suas preocupações e angústias.

Essas preocupações partiam desde dificuldades financeiras até viagens e a criminalidade, mas os tópicos abordados com mais frequência eram o amor e o sexo. O pop priorizava os sonhos românticos, mas o Blues lidava com os pesares e as alegrias de um relacionamento real: traição, abandono e abuso eram constantemente citados e equilibrados com prazer sexual. As Blues Queens celebravam a liberdade, a independência e a força feminina. Se o seu marido interferisse em seus deveres, Bessie Smith cantava:

“I can cut you all to pieces like I would a piece of meat.”

Ma Rainey cantou as duras realidades da violência doméstica, descrevendo uma relação com um marido violento e abusivo:

“Take all my money, blacken both of my eyes, give it to another woman, come home and tell me lies.”

Ela também contou sobre encontrar felicidade sendo lésbica:

“They must have been women, ‘cause I don’t like no men.”

As Blues Queens, no aspecto histórico, trouxeram evolução comercial, reconhecimento e colaboraram para o Blues crescer e aparecer, mas também lutaram pelos direitos das mulheres usando a música para escancarar sua realidade e se manter firme diante das adversidades. As Blues Queens foram fundamentais para a indústria do entretenimento e, mesmo vivendo em um ambiente hostil, mostraram sua força e marcaram uma era na música popular ocidental.

Obrigado, rainhas.

Adaptado do livro The Blues, A Very Short Introduction, de Elijah Wald.

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