Portas Bloqueadas: Uma História sobre a Neutralidade da Rede Brasileira

Emmy Tither
We Are Bunny Studio
7 min readSep 27, 2018
Foto de Unsplash; edição de imagem por Monica Fajardo.

Salun mora no Brasil. Ele entrou na Bunny Inc. como engenheiro de software no início de junho de 2018 . E trabalha remotamente em casa. Quando ingressou, tinha uma conexão de internet bastante boa. Bastante boa para o Brasil (15Mb), mas não boa o suficiente, não para o nível de trabalho que ele sabia que teria que realizar. Seria melhor contratar uma conexão de internet mais rápida.

Fez isso, então. Trocou de provedor de internet, da Vivo para a Claro, e conseguiu uma conexão muito mais rápida, de 120Mb. Até aqui, tudo bem, certo?

Bom, mais ou menos. De fato a conexão era mais rápida e funcionava bem. As videochamadas se tornaram mais fáceis, com menos problemas de conexão. As coisas estavam indo bem.

Até que deixaram de ir tão bem. Como desenvolvedor, Salun tem que ser capaz de se conectar aos bancos de dados da Bunny Inc. e ao GitHub. Esses serviços usam portas diferentes de, digamos, um site HTML padrão. O que, normalmente, não é um problema. A internet está disponível para todos, certo?

Hummm, não é bem assim. Em teoria, sim, Salun deveria ser capaz de se conectar a qualquer porta. Porém, não conseguia acessar informações vindas de várias portas, incluindo: 22, 21, 9010. Desse modo, não poderia fazer seu trabalho corretamente. Ele não conseguia nem acessar o banco de dados da Bunny Inc.

Então, ele ligou para o seu provedor. E foi aí que as coisas começaram a ficar interessantes.

Aparentemente, estas portas estavam bloqueadas. Se quisesse desbloqueá-las, Salun teria que se registrar como empresa, um processo custoso, e pagar mais para acesso à internet através de uma conta corporativa. Seu provedor de internet afirmou que as portas que ele queria acessar não poderiam ser alcançadas através de uma conta individual.

Espera aí, como assim? Provedores de serviços de internet não podem bloquear o acesso a portas (e à internet) por indivíduos apenas porque querem. Certo?

Neutralidade da rede para Iniciantes

Para entender completamente esta questão, precisamos voltar para o início.

“Neutralidade da rede: você a adora, mesmo que não saiba o que é”. Se você passou algum tempo na internet recentemente, provavelmente já ouviu falar sobre neutralidade da rede. De qualquer forma, aqui está um resumo.

Cunhada por Tim Wu em 2002, a neutralidade da rede é o princípio de que a internet deveria estar disponível para todos. Governos e provedores de serviços devem tratar todos os dados da mesma forma, e não bloqueá-los ou torná-los seletivamente acessíveis.

Um exemplo de falta de neutralidade da rede seria um provedor de Internet fazer um acordo com, digamos, o Youtube, no qual o provedor prioriza o tráfego para esse site de streaming de vídeo, enquanto propositadamente reduz o tráfego para outros sites de streaming de vídeo, como o Vimeo. Basicamente, a neutralidade da rede é o que permite que você use a internet como quiser, quando quiser.

Diferentes países apresentam diferentes abordagens relativamente à neutralidade da rede. Alguns a reforçam, com variados graus de sucesso, e outros não. O que é interessante, neste caso, é como o Brasil respondeu à neutralidade da rede.

Neutralidade da Rede no Brasil

Em 2014, o Brasil aprovou uma legislação única — o Marco Civil, ou Declaração de Direitos da Internet. Baseado na Carta Magna, e financiado coletivamente desde o início (via crowdsourcing), o projeto de lei é o primeiro de sua espécie. É chamado de inovador, e com razão.

A legislação é abrangente. Contém 32 artigos, e trata de direitos, princípios, salvaguardas, neutralidade da rede, proteção de dados, responsabilidade de terceiros e papel do Estado. Apesar de sua abrangência, questões surgiram quanto a sua implementação.

O problemas vieram à tona em 2015 e 2016, quando o WhatsApp foi bloqueado em todo o país por ordem judicial por três vezes em 18 meses. Felizmente, em todas as vezes a decisão foi revertida por um tribunal superior. Isto demonstra, no entanto, a fragilidade desta legislação, ainda que tão robusta.

Ter uma legislação que imponha a neutralidade da rede é um bom passo a frente. Mas isso não resolve todos os problemas.

O que nos traz de volta a Salun.

O que está acontecendo com a internet?

Não ser capaz de acessar o banco de dados da Bunny Inc. ou o GitHub era frustrante para Salun, para dizer o mínimo. Ele não podia fazer seu trabalho adequadamente, apesar de ter contratado a melhor e mais rápida conexão que conseguiu encontrar. Registrar-se legalmente como uma empresa também não era a opção ideal. É preciso tempo, dinheiro e aconselhamento jurídico para fazê-lo. Além disso, por que as empresas seriam capazes de acessar mais informações do que as pessoas? A internet deveria estar disponível para todos. Na verdade, o Marco Civil afirma que provedores não podem bloquear o acesso à internet.

O que fazer a seguir, então? Como poderia Salun desbloquear as portas necessárias para conseguir trabalhar?

As chamadas subsequentes ao seu provedor receberam uma resposta semelhante à de seu primeiro contato — certas portas e, portanto, certos sites, estavam bloqueados para planos individuais de internet. Se ele quisesse se conectar a elas, teria que se registrar como empresa, e pagar mais pelo acesso à internet.

Inabalável, e recusando-se a aceitar esta resposta, Salun fez algumas pesquisas. Alguém mais havia se deparado com esse problema? Bem, ao que parece, ele não foi o primeiro a passar por isso. Muitas outras pessoas haviam tido o mesmo problema. Mas apenas aquelas com contratos mais recentes, como ele. Contratos antigos não tinham esse problema. No entanto, nenhuma solução permanente se apresentou.

Então, Salun entrou em contato com a Anatel, a agência reguladora brasileira de telecomunicações, e apresentou uma reclamação. E esperou. Oficialmente, ele teria que esperar cinco dias por uma resposta.

Uma semana depois, a Claro ligou. Haviam encontrado uma solução, e enviariam alguém para resolver o problema.

Que conveniente.

No dia seguinte, ele tinha um novo roteador, com todas as suas portas desbloqueadas. Não tratamos dessa questão com frequência, disse o engenheiro da Claro, porque as pessoas simplesmente pagam mais por uma conta de empresa.

Mas, por quê? Um relatório de 2017 afirma que 59,7% da população brasileira tem acesso à internet, com disparidades regionais significativas. Isso comparado, por exemplo, à taxa de penetração da internet na França, de 85,6% no mesmo ano. Certificar-se de que é possível se conectar a todas as facetas da internet não é uma prioridade para a maioria das pessoas, porque nem tudo na internet é relevante para suas necessidades. Alguém que ganha a vida na internet, como um engenheiro de software como o Salun, verá relevância em mais seções de internet. São estas pessoas que provavelmente se depararão com portas bloqueadas e, portanto, com esse tipo de censura.

Foto de Unsplash; edição de imagem por Monica Fajardo.

Mas, as coisas foram resolvidas?

Claro, sim, a questão foi — superficialmente — resolvida. Salun possui um novo roteador, e é capaz de acessar todos os bancos de dados que precisar. É bom que ele não tenha sido obrigado a se registrar como empresa. É bom que sua queixa ao órgão regulador tenha sido atendida pelo provedor de internet. É bom que a empresa tenha feito a coisa certa — sustentado o Marco Civil — e que isso agora permita que Salun acesse as informações que necessita para fazer o seu trabalho.

O que continua desconhecido, no entanto, é por que a Claro bloqueou essas portas inicialmente. E por que insistiu a princípio que, para desbloqueá-las, Salun teria que pagar mais. De acordo com o Marco Civil, provedores não podem bloquear o acesso à internet, exceto em casos que envolvam pornografia de vingança, ou que violem a lei de direitos autorais. Nenhum dos dois é o caso aqui.

Talvez o mais preocupante, porém, seja que nem todo mundo perceberá que seu acesso à informação está sendo cerceado desta forma. Nem todo mundo usa a internet da mesma forma que um engenheiro de software. A censura só é relevante se você souber que está sendo censurado? Se você não tem interesse em determinadas informações, importa se está sendo impedido de vê-las? É papel dos indivíduos cobrar a responsabilidade dos provedores de serviços de internet e governos?

O futuro da neutralidade da internet está longe de estar decidido. À medida que a internet e o acesso à informação que ela fornece se tornam ainda mais enredados em nossas vidas, casos como esses continuarão surgindo, tanto no Brasil, quanto em outros lugares. Alguns deles podem afetá-lo individualmente, e outros talvez não. O acesso igualitário à informação é importante para você? Cabe a você mesmo decidir.

E esse é o objetivo deste artigo, na verdade. Não o de falar sobre um problema que um membro da nossa equipe enfrentou, mas sim o de fazer esta pergunta a você. E, talvez, estimulá-lo a pensar em sua resposta.

A censura só é relevante se você souber que está sendo censurado? O acesso igualitário à informação é importante para você?

Deixe-nos conhecer seus pensamentos nos comentários.

Psiu…estamos contratando um Chefe de Engenharia de Software.

Thank you to Salun Marvin, Vanilson Magalhaes Santos and María Murcia Fajardo. This story was translated from the English using TranslationBunny.

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Emmy Tither
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British-Peruvian-American currently living Albuquerque, NM, USA. Educator, audio geek, and psychogeography enthusiast. www.emmytither.com