A vulnerabilidade dos homens e os tabus do masculino

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7 min readNov 12, 2019

Escrito por João Alberto

O que é o homem em 2019?

O que é preciso ser, sentir e fazer para viver a masculinidade? Tem sido tão positiva e benéfica a posição social do homem frente às demandas contemporâneas?

Historicamente, os homens e tudo aquilo que envolve o masculino é direcionado para o não sentir, para a não demonstração do afeto e a desconexão com os sentimentos. A partir do sexo biológico, desenvolve-se uma série de dinâmicas para performar (querer parecer ser) um gênero. Para assegurar a existência do pênis é necessário apresentar-se de determinadas maneiras e com certos parâmetros para, realmente, configurar-se como homem. Estes indicadores envolvem não falar sobre emoções, não chorar, não pedir ajuda, não demonstrar fragilidades, competir fortemente e mostrar-se emocionalmente restrito, dentre outras.

A masculinidade sustenta-se na performance de uma virilidade de modo que comportamentos ou pensamentos que se distanciem dos ideais viris devem ser policiados, vigiados, anotados, apontados e tornados ridículos. Tal desígnio de performance é tão arraigado na identidade masculina que chorar, expressar seus sentimento ou manifestar desconforto emocional é alvo de regulação dentre os homens. Há um cuidado para garantir que nenhuma ovelha se desgarre do rebanho. Tal forma de controle assume um aspecto de microgerenciamento na medida em que supervisiona de forma hipervigilante certos detalhes de expressão tais como as cores das roupas, o modo como se senta, a maneira como se abraça outro homem ou, mesmo, como se sorri.

Neste modo determinado de apresentar-se homem, a masculinidade torna-se muito frágil, pois qualquer ação fora da expectativa prévia já é suficiente para desqualificar o sujeito e acusá-lo daquilo que é o mais terrível, abominável e horripilante juízo: de que se possui qualquer semelhança, por mínima que seja, com o feminino. Não pode haver ofensa maior a um homem criado nesses preceitos do que compará-lo a algo do universo da mulher.

Ora, na medida em que é preciso performar um gênero masculino determinado em suas minúcias, há uma série de impedimentos, restrições e, por consequência, de tabus. Pode-se listar o papel de provedor da família e de referência de autoridade, o contato afetivo com os filhos ou o modo como deve lidar com o luto, todavia, pode-se, em síntese, dizer que qualquer balizador de identidade para os homens sustenta-se na profunda ojeriza que há com a mulher. O grande tabu e medo do homem é parecer ser mulher.

Havendo este ideal de virilidade, força e poder, molda-se a subjetividade de um opressor cuja linguagem fundamental é da violência. O modo como se lida com os afetos, mesmo os positivos, é sustentado na força, na dominação e na guerra. Entretanto, essa linguagem violenta do homem para o mundo volta-se contra ele mesmo. Ainda que os homens representem um papel opressor sobre tudo que se afasta da virilidade, a linguagem da violência possui certos buracos negros nos quais não há discurso para descrever. Assim, os filhos nascem, o cachorro abana a cola mostrando cumplicidade, fica-se feliz porque a filha andou de bicicleta sem rodas, mas não há como manifestar de modo lúdico, afetivo e explícito a emoção que colore a situação. Os homens podem ditar as regras, os modos de ser, impor e oprimir mulheres, mas são absolutamente silenciosos naquilo que sentem, percebem ou desejam. Na medida em que esta identidade é tão definida e regulada socialmente, torna-se difícil falar do que se sente e do que é desejo original. A solidão, a depressão e o vazio assombram o universo psíquico do homem atual.

Nesta contemporaneidade as formas de viver e se relacionar mudaram muito, principalmente, em função das tecnologias digitais. Os modos pelos quais sentimos e experenciamos os nossos afetos também se alteraram. Podemos e precisamos sentir com intensidade, necessitamos escolher o que queremos e o que não queremos e, por isso, estarmos muito alinhados com nossos desejos.

Os avanços tecnológicos também trouxeram grandes progressos para a saúde física e os tratamentos. Entretanto, as demandas de tempo, disponibilidade e aparência virtual fizeram com que a saúde mental fosse exigida como nunca antes. Nota-se, inclusive, que grande parte das doenças físicas tem sua origem, ou são fortemente influenciadas, por estados psicológicos. Nestes tempos, ter boa saúde é sentir-se bem e estar bem consigo. Assim, os homens estão em profunda desvantagem na medida em que culturalmente se constituíram como aqueles que não sentem e não extrapolam o desejo prescrito por outros.

De acordo com a Sociedade Brasileira de Urologia, cerca de 1000 homens têm o pênis amputado parcial ou totalmente todos os anos. Em sua maioria, por falta de higienização adequada nessa região do corpo. A cada 10 pessoas que comentem suicídio, 8 delas são homens. Estas situações envolvem comportamentos de não-cuidado que estão essencialmente vinculados a masculinidade e a forma de ser e sentir-se homem. Em especial, queremos falar a respeito do câncer de próstata, que é o tumor mais usual entre homens e a segunda maior causa de morte por doenças nesta população. Um estratégia de divulgação e combate a esta enfermidade é a celebração do Novembro Azul como forma de reforçar a importância da prevenção e do diagnóstico precoce.

Os modos de descobrir-se a doença e as formas de tratá-la são relativamente simples e com resultados muito efetivos. Em muitos outros tipos de câncer a agressividade do tumor, a dificuldade de diagnóstico, o acesso aos tratamentos e sua eficácia faz com que sejam doenças que envolvam muito sofrimento. O câncer de próstata, entretanto, tem uma particularidade: suas dificuldades de tratamento não se restringem apenas aos problemas de ordem prática. A forma de diagnóstico da enfermidade, o famoso teste de toque, já invadiu o imaginário masculino, defrontou-se com os problemas do homem em sentir prazer, mas, sobretudo, chocou-se frontalmente com a possibilidade de algo que questione a virilidade.

Esse exame, tão importante para a saúde do homem, é alvo de um repertório de piadas que envolvem desde o tamanho do dedo do médico até a frequência de realização do procedimento. Essas piadas e humilhações envolvendo uma doença (você riria de alguém que descobre ter um tumor no pulmão?), fazem parte das estratégias de microgerenciamento e hipervigilância sobre a masculinidade.

Torna-se um tabu por que aproxima-se do contato do corpo e do possível prazer para além do pênis. Escolhe-se correr o risco real e significativo de morrer a ser questionado sobre a virilidade e a masculinidade.

Nesse sentido, os tabus da masculinidade podem trazer uma série de prejuízos na medida em que restringem as possibilidades de experiência. O cuidado e o amor com os filhos é uma descoberta ainda recente e para poucos homens. Manter sua própria casa e cuidar de si próprio é também uma experiência nova. De fato, o cuidado com a beleza e a estética é algo tão perigoso para a masculinidade que criou-se uma nova categoria de homem: o metrossexual, a fim de não macular a identidade viril e desleixada do homem hétero. Nota-se, uma linha de fuga dessa produção de identidades sólidas: como enquadrar homens, que não desejam parecer ser mulheres e não são homossexuais, mas cuidam da sua aparência. Ainda não podemos incorporá-los no imaginário social como simplesmente homens, mas uma categoria derivada, ainda que socialmente aceita.

Ao falarmos desses tabus da masculinidade e de sua contraposição ao dito feminino, é necessário expandir-se para a homofobia. Ora, nota-se que o machismo, uma noção do que é ser homem sustentada na masculinidade tóxica e em uma linguagem violenta e hipervigil sobre os comportamentos alheios, faz como que a homossexualidade seja não só desprezada e ignorada, mas, necessariamente, combatida. Como permitir que alguém que nasce com as bênçãos do pênis pode querer em algum nível aproximar-se da feminilidade ou de um possível posição de abandono da virilidade frente ao outro. É interessante notar que historicamente os homens que assumiam uma posição ativa na relação sexual sequer eram considerados gays. Ser gay, seria então, não se ter desejo sexual ou afeto pelo mesmo gênero, mas assumir numa posição inferior de passividade.

Também é interessante fazer uma análise histórica de como a propaganda procura vender produtos e estabelecer persuasão. Até os anos 80 elas eram direcionadas aos homens, vistos como únicos consumidores, ou direcionada às mulheres com estratégias para que pudessem agradar ou seduzir seus parceiros. Nas diferentes mídias os homens eram apresentados como sujeitos importantes que passariam a posição de maior destaque ou prestígio a partir da aquisição de determinados produtos ou serviços.

Nos anos 2000, as mulheres são ávidas consumidoras, decidem e fazem escolhas nas famílias e possuem poder de decisão. Com isso, o mercado de vendas precisou se transformar. A compra é uma experiência subjetiva para além da necessidade do produto. Quer se sentir algo ao comprar, mas como saciar os desejos para um sujeito que desde a mais tenra idade foi ensinado a não sentir e a não manifestar o que deseja para que fosse considerado homem? A propaganda que provoca emoções, fantasias e produz afetos é estranha a um homem que foi educado para não tê-los. Ele é um novato no mundo do qual se expressam as emoções.

Entretanto, o mercado da propaganda tem encontrado seus caminhos. Há formas de emocionar e conectar-se com este homem perdido. Pode-se falar dos filhos, da estabilidade familiar, dos pais ou dos irmãos, desde que se tangencie a possibilidade de que isso represente uma performance feminina ou de algo considerado referente ao mundo da mulher. O sucesso no emprego, o bom desempenho no trânsito, o uísque de qualidade ou um lifestyle dito superior não são mais suficientes para sentir-se realizado, feliz e plenamente vivo. A fragilidade do que é ser homem corrompe padrões que traziam a impressão do que era seguro gostar e desejar sem aproximar-se do feminino.

Assim, ser homem, reconhecer-se homem e saber o que sentir para sê-lo tem se tornado mais difícil. Acessar os novos códigos afetivos que permeiam uma sociedade tecnológica, hiperconectada e intuitiva requer novas linguagens e possibilidades de expressão do que se sente. No caso dos homens, isso implica uma nova construção que se abra à possibilidade de entrar em contato com a dimensão feminina que existe em si e direciona-la para aspectos positivos da vida com o cuidado, o prazer e a experiência emocional.

Texto escrito pelo João Alberto da Silva, Psicólogo e Sexólogo, dentro do programa We Care Together da Possible Brasil.

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