Do artigo ao encantamento: duas faces importantes da comunicação científica

Ana Bertol
oddstudio
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11 min readJul 11, 2022

O carinho que nosso time tem com o projeto “A Epidemia de Obesidade e as Doenças Crônicas Não Transmissíveis” vem dele ser um exemplo daquilo que acreditamos que a Odd sabe fazer. Além de explorar nossa multidisciplinaridade (afinal, foi um projeto que atuou em áreas como ciência, política, design, tecnologia), nós também pudemos experimentar o processo de cocriação com uma equipe colaborativa, extremamente especializada e que faz ciência porque acredita na capacidade de mudança do nosso país.

Aqui na Odd.Studio, nós costumamos dizer que trabalhamos na intersecção entre ciência, design e tecnologia. Não é da boca para fora: nosso pequeno time é formado por 25% de doutores em ciências, 50% de cientistas da informação/de dados e 62,5% de designers.

Diagrama de Venn entre Ciência, Tecnologia e Design, com 8 cabeças distribuídas. No centro, o logo da Odd.Studio.
Time Odd.Studio distribuído conforme suas expertises em Ciência, Tecnologia e Design. A minha cabeça é a que fica na intersecção entre Ciência e Tecnologia.

Uma das nossas motivações é ajudar cientistas e pesquisadores a contar seu trabalho de modo a atingir públicos que não apenas o acadêmico: jornalistas, gestores públicos, políticos, tomadores de decisão e público em geral.

Acreditamos que a ciência pode e deve furar a bolha acadêmica para guiar cada vez mais políticas públicas informadas por evidências (PIE).

Nós também acreditamos que comunicar dados de forma responsável não vem da coragem imperativa de contar histórias, mas sim de um respeito com o objeto de estudo — do medo de ser insensível com nosso público-alvo. O medo não precisa ser algo paralisante; pode, em vez disso, ser um sinal de preocupação, uma vontade de cuidado e atenção com aquilo que importa. O medo de errar nos motiva a estudar, a perguntar, a pesquisar.

O projeto “A Epidemia de Obesidade e as Doenças Crônicas Não Transmissíveis” nos permitiu explorar algumas das nossas habilidades mais conhecidas, mas também nos desafiou a mergulhar em um assunto delicado pelos prismas do design, da comunicação e da ciência. E, claro, foi mais uma oportunidade de levar ao limite o nosso prazer de learn by doing, já que obviamente nos propusemos a fazer coisas que nós — ainda — não sabíamos fazer.

Transformando artigos científicos em histórias

Escrever um artigo científico é uma tarefa complicada. Quase 10 anos depois da publicação do meu primeiro artigo, ainda me pego pensando se não cometi nenhum erro, nenhuma imprecisão. É um processo que exige uma grande capacidade de síntese (não raro o trabalho de uma tese de 100 páginas é transformado em um artigo de 6), uma compreensão extensa do projeto e dos resultados (geralmente traduzindo o trabalho de uma equipe inteira), e um conhecimento amplo e atualizado da área e do que vem sendo pesquisado no mundo inteiro sobre tópicos relacionados.

O processo inclui escrita, revisão, reescrita, submissão, mais reescrita… Às vezes, no meio do caminho, chega uma rejeição que obriga quem pesquisa a rever métodos e resultados — depois disso, mais revisão e, finalmente, uma versão final em que o autor ainda vai encontrar algum erro de digitação que incrivelmente resistiu a todas essas etapas. O tempo médio entre a submissão e a aceitação de um artigo é de aproximadamente cem dias, dependendo da área de pesquisa. Antes disso, claro, há todo o período de escrita.

É um processo imersivo tanto na porção de pesquisa quanto na que envolve o formato canônico de escrita de artigo. Esse formato clássico — introdução, motivação, metodologia, resultados e discussão, com algumas variações dependendo da área — tem o objetivo de facilitar a revisão pelos pares (o processo de revisão anônimo feito por colegas especialistas da área, que criticam sem dó o artigo para garantir uma publicação à prova de balas) e a reprodutibilidade do conhecimento gerado.

O artigo científico não só é o principal meio de divulgação de resultados dentro da comunidade científica — o total de publicações e a relevância delas é uma métrica para avaliação de desempenho do pesquisador na academia. Assim, fica fácil entender por que pesquisadores e cientistas acabam se familiarizando com essa maneira de contar histórias sobre seu trabalho, mesmo que não seja o formato mais atraente para outros públicos.

Até porque, se formos sinceros, quase ninguém lê um artigo científico por livre e espontânea vontade. A maioria dos conteúdos científicos que consumimos hoje em dia passaram por um processo de mastigação e digestão feito à revelia dos pesquisadores que de fato desenvolveram e entendem os resultados. Essa distância entre o conhecimento científico e a tradução ao público geral causa uma sensação de incerteza e de desconfiança do que é ou não é “ciência de verdade”.

É por isso que nós acreditamos que os cientistas e pesquisadores precisam ser protagonistas no processo de tradução da própria pesquisa, mas que não precisam assumir sozinhos as responsabilidades adicionais que vêm com o trabalho de comunicar ciência para públicos não acadêmicos.

Pode parecer que é fácil falar e difícil colocar em prática, e de fato é. Mas não é impossível, e eu posso não só provar como também deixar uma lista de dicas (lá no final, para quem é preguiçoso e quiser pular toda a história legal que eu vou contar).

O projeto “A Epidemia de Obesidade e as Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT)”, sob responsabilidade do professor Leandro Rezende, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), chegou na Odd com o problema que explicamos: um artigo já estava pronto e em processo de publicação, mas o projeto também previa a disponibilização dos resultados para o público não acadêmico — em especial para gestores públicos com poder de mudar políticas relacionadas ao tema.

Foram dois os principais questionamentos originados dessa missão: como apoiar a equipe de pesquisa na comunicação dos resultados gerados a um público amplo? Como fazer isso traduzindo a intenção do projeto de não culpabilizar o indivíduo com obesidade ou excesso de peso, mas sim propondo soluções sistêmicas à epidemia das DCNT?

Tabela de dados e gráfico de bolhas, com dados de custo atribuível, porcentagem atribuível ao excesso de peso e à obesidade, procedimentos totais e mortes por grupos de doenças crônicas.
Do artigo ao encantamento em uma imagem: os dados apresentados como tabela no artigo (uma parte, acima), foram transformados em uma visualização interativa. O usuário pode decidir qual informação é mais relevante para ordenar os dados, quais ele quer detalhar melhor e até filtrar apenas para a localização de interesse.

Fazendo as perguntas chatas

O pesquisador é, sem dúvida, o maior especialista no assunto que pesquisa. Essa frase parece redundante, mas é importante lembrar que o artigo é a ponta de um iceberg de conhecimento sobre o assunto. Por isso, o trabalho de cocriação de uma história começa quando nosso time se dispõe a fazer as perguntas chatas: as mais difíceis de responder, que abordam os conteúdos mais delicados.

Esse processo permite que nossa equipe entenda melhor a pesquisa, além de proporcionar que, junto do pesquisador, todos entendam as partes da história que estão inconsistentes e que precisam de mais detalhamento. Não é incomum que surja nessa conversa um protagonista da história que ainda não tinha sido mencionado — ou um vilão, como foi o caso dos ultraprocessados nesse projeto.

Outra questão incômoda é achar o equilíbrio entre uma história que serve exclusivamente para expor a pesquisa e uma história que usa alguns resultados da pesquisa como elementos de roteiro para um problema maior. O resultado mais eficiente fica em algum lugar entre as duas opções: valorizando o trabalho da pesquisa, mas fornecendo um contexto amplo da situação.

Isso vai exigir do pesquisador a compreensão de que, para a maioria dos públicos não acadêmicos, o contexto é mais importante do que os resultados, e a metodologia é irrelevante.

O resultado dessa etapa de perguntas chatas e escolhas incômodas foi a decisão por contar uma história em cinco capítulos no formato de scrollytelling: um site em que a história é narrada por meio da rolagem da tela e onde o leitor pode interagir com o conteúdo selecionando filtros e explorando visualizações. Desses cinco capítulos, apenas um foi dedicado aos resultados da pesquisa, valorizados através de visualizações exploratórias. Todo o resto foi dedicado a contextualizar o tema em questão de maneira mundial e regional, a apresentar as principais perguntas que inspiraram o estudo e como essas perguntas orientaram os objetivos e, por fim, as expectativas de impacto socioculturais.

Um computador aberto navegando pela página “A Epidemia da Obesidade e as DCNT — Causas, custos e sobrecarga no SUS”.
Scrollytelling “A Epidemia da Obesidade e as DCNT — Causas, custos e sobrecarga no SUS”, disponível em rezendelfm.github.io/obesidade-e-as-dcnt.

Essa etapa também deixou claro o quão sensível é o assunto que estávamos comunicando. Escolher mal as palavras poderia fazer com que o leitor entendesse o problema do custo do tratamento de DCNT no SUS como culpa do indivíduo com obesidade — uma interpretação oposta à que o projeto pretendia conduzir. Esse cuidado — não só com as palavras, mas com os elementos visuais usados — se fez presente ao longo de todo o trabalho.

Respeitando quem é impactado pelo tema

Nós acreditamos que um dos papéis da Odd é trazer para os pesquisadores a perspectiva de foco no usuário com a qual o Design já trabalha há anos.

Enquanto o usuário de um artigo científico é outro cientista — interessado na metodologia e nos resultados e provavelmente já conhecedor do contexto do problema da epidemia de obesidade –, o usuário pretendido com a história que estávamos criando poderia ser uma pessoa leiga sobre o assunto ou, muito mais difícil de lidar, alguém com uma opinião enviesada sobre a obesidade.

Afinal, não são poucos os exemplos de visões distorcidas de gestores públicos e da sociedade sobre individualizar a causa e a responsabilidade de doenças: tabagismo, HIV, vacinação. Em muitos destes casos, o conceito de escolha pessoal é usado para mascarar o fato de que a escolha não existe enquanto políticas públicas não garantirem que os indivíduos tenham acesso ao conhecimento e a opções de escolha.

Essa foi uma face muito legal do processo de cocriação. Mesmo que essa contextualização social não estivesse muito presente no texto do artigo, as conversas com o professor Leandro foram aulas sobre como funciona a gordofobia estrutural. Aprendemos que o Brasil é referência em pesquisa na classificação de alimentos, abordagem muito importante para entender a epidemia de obesidade, e que são necessárias mudanças em políticas públicas para oferecer às pessoas melhores condições de alimentação e de saúde. Lembra que a gente falou que os pesquisadores são os maiores especialistas no assunto que pesquisam?

Da nossa parte, tentamos garantir que o produto final fizesse jus a essas preocupações. Um exemplo foi a (difícil) mudança de título: do original “O Custo da Obesidade” (curto e direto para um artigo) para “A epidemia de obesidade e as DCNT: causas, custos e sobrecarga no SUS”, tirando destaque dos resultados e indicando que a obesidade de maneira individual não pode ser caracterizada diretamente como um problema. Em vez disso, utilizamos assertividade para expressar que o comportamento epidêmico da obesidade é retrato de uma mudança de hábitos da sociedade que pode acarretar o aumento de casos das DCNT — e do custo no SUS do tratamento dessas doenças.

Design com significado

O principal conceito que permeou a história foi a diferença entre causas e comportamentos individuais (fatores genéticos, medicamentos) de causas e comportamentos coletivos (alimentação e atividade física). Uma epidemia não pode ser explicada nem prevenida atacando causas individuais, ao mesmo tempo que o tratamento de um indivíduo não pode ser feito transferindo para ele a culpa e a responsabilidade de causas coletivas.

Esses dois conceitos — coletivo e individual — foram usados na criação de ícones que representam o indivíduo sozinho e os indivíduos que compõem um grupo. Assim, sem perder de vista a ideia de que mesmo o coletivo é formado por pessoas, conseguimos indicar através dos elementos visuais quando o efeito cultural e social é predominante, e quando as escolhas individuais são mais importantes.

À esquerda, ilustração de uma pessoa cercada das causas individuais e coletivas da obesidade. À direita, várias pessoas com diferentes causas individuais, mas todas com as mesmas causas coletivas.
Se o produto ultraprocessado é mais barato que o alimento in natura, será que a alimentação é realmente uma escolha individual? Era muito importante no projeto deixar claro que os hábitos alimentares são fatores culturais, coletivos, até mesmo políticos. Quando expusemos as causas da obesidade em um indivíduo (esquerda), diferenciamos os fatores coletivos (vermelho) dos fatores individuais (roxo). Ao rolar o site, a imagem se afasta exibindo mais pessoas, mostrando que a incidência dos fatores individuais varia, mas os fatores coletivos (alimentação e inatividade física) são compartilhados pelo grupo.

O uso de figuras semigeométricas, idealizadas e desenhadas pela designer Ana Sifuentes, trouxe uma característica única aos personagens, diferenciando-os das iconografias tradicionais e daquelas encontradas online — passíveis de serem consideradas insensíveis ou até preconceituosas no recorte temático. O uso desses elementos figurativos foi essencial para a síntese de conteúdo, oferecendo uma experiência de leitura mais agradável e interativa e direcionando a atenção do leitor aos conceitos fundamentais para a compreensão do problema.

Montagem com rascunhos à mão de ícones representando pessoas, alimentos e doenças crônicas não transmissíveis, em diversos níveis de finalização.
Evolução do trabalho de criação dos ícones e ilustrações, dos rascunhos à mão até as versões finalizadas.

Finalmente, as visualizações foram pensadas para respeitar o caráter de ranking das análises do artigo, ilustrando principalmente de forma comparativa as doenças que mais matam e que mais custam ao Brasil. Elas também permitem que o usuário explore em detalhes os resultados disponíveis.

Criando o que — ainda — não sabíamos fazer

Inovações em produtos de dados ocorrem quando definimos primeiro nosso usuário e nosso objetivo para depois pensar como alcançar esse objetivo com as limitações tecnológicas e de recursos que temos.

Conforme nos aprofundamos no problema que o projeto tentava explicar e com quem ele pretendia se comunicar, o scrollytelling se firmou como a melhor escolha de produto de dados, mesmo que o desenvolvedor responsável pelo projeto nunca tivesse feito um (pelo menos não com todas as animações em cuja necessidade insisti). Essa postura acabou virando uma piada interna — à pergunta “Dá pra fazer?”, o desenvolvedor Matheus Alves sempre respondeu com: (a) dá para fazer fácil; (b) já fiz algo parecido; (c) que dá pra fazer, dá, mas eu preciso descobrir como; (d) deve dar, mas não dentro do prazo; ou (e) dá, mas vai prejudicar a performance do site.

Dessas respostas, a única que deixamos nos limitar foi a (e), já que negociamos e esticamos os limites do prazo quando acreditamos que eram opções que valiam a pena serem exploradas.

Montagem com conversa de texto sobre como desenvolver um mapa no estilo desejado, ao lado do mapa criado.
Nós não queríamos apenas um mapa: queríamos um mapa que reproduzisse o estilo dos ícones desenvolvidos, e que fosse interativo. No detalhe, é possível ver o esforço do Matheus em transformar em realidade o que nós idealizamos.

O resultado final foi um produto que deixou o pesquisador e sua equipe muito satisfeitos e que nos enche de orgulho, que se transformou em um case usado frequentemente como exemplo para outros clientes de como é possível contar uma pesquisa científica de maneira encantadora.

Lições aprendidas

Se você também quiser transformar um artigo científico ou um texto técnico em uma história encantadora, seguem algumas das lições que aprendemos com esse projeto e que achamos que podem te ajudar:

  • Os autores do artigo são os maiores especialistas: considere-os não apenas clientes, mas parceiros de projeto;
  • Comunicar ciência exige multidisciplinaridade. Conte com o apoio de uma equipe com conhecimentos diferentes dos seus;
  • Não tenha medo das perguntas difíceis ou que pareçam básicas. Provavelmente o cliente vai te surpreender com as respostas (use a seu favor o fato de ser novo no projeto);
  • Tenha sempre em mente a sensibilidade do assunto, tanto para o indivíduo que lê quanto para aquele que é representado no centro do seu design;
  • Escolha o produto que vai melhor satisfazer o seu objetivo (seja ele digital ou físico), e não o que você já está confortável fazendo.

Nosso agradecimento especial ao professor Leandro Rezende e a sua equipe não apenas por nos procurarem para esse projeto, como também por confiarem nas nossas propostas, responderem com tanta paixão às nossas dúvidas e se entregarem com tanta dedicação ao processo de cocriação.

As histórias que contamos são da nossa experiência e crenças como indivíduos e empresa. Elas não representam a opinião dos nossos clientes ou parceiros. Somos de países e de áreas de conhecimento diferentes, e buscamos pesquisar e checar os fatos do nosso trabalho da melhor forma possível e em diversas línguas. Caso você encontre erros, inconsistências ou tenha dúvidas, não hesite em nos enviar um email em hello@odd.group. Nós ficaremos muito felizes em retornar!

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Ana Bertol
oddstudio

A physicist with a passion for art and technology, translating data problems for business people, developers, designers and scientists.