carta aberta a quem deixou de ler

uma reflexão sobre como nos deixamos levar pela passividade da internet, comprometendo o senso crítico do conteúdo que produzimos e consumimos.

Terena Miller
wewe
3 min readSep 26, 2020

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Uma história, a meu ver, só vale a pena ser escrita se sua alma emerge dali. (Elena Ferrante)

dois anos depois de ter meu filho, eu voltei a ler um livro inteiro. e eu poderia desfiar um rosário de justificativas pra não ter lido mais depois da maternidade — falta de tempo, falta de sono, falta de gana de encher minha cabeça com além do que eu podia. mas a crua realidade é que eu não lia mais porque me deixei anestesiar pela netflix.

não, este não é um post contra o streaming mais amado do mundo. é só uma imediata necessidade que senti de dizer o quanto assistir palavras em ação é libertador, e refletir sobre o quanto nós, como produtores de conteúdo, temos lido para, então, escrever?

"Foi naquelas ocasiões que me dei conta de quanto sua relação com os livros tinha mudado. Agora se mostrava intimidada por eles. Não acontecia mais de querer me impor uma ordem, um ritmo seu, como lhe bastassem apenas poucas frases para reconstituir um quadro completo e dominá-lo a ponto de dizer: este é o conceito que importa, parta daqui." (trecho do livro A Amiga Genial, de Elena Ferrante)

sempre li muito. devorei livros não só pelo conteúdo, mas porque me desperta ver a forma como certos autores constróem narrativas impensadas, descrevem pensamentos desordenados de um jeito que eu consigo ver claramente o caos de cada personagem. assim como o meu.

nas últimas duas semanas, entrei pra dentro da cabeça de Elena Greco, personagem de A Amiga Genial, de Elena Ferrante. li o primeiro livro da série, e tive algumas constatações, que divido:

Reprodução internet

→ comparada com a educação dos anos 1950 e 1960, hoje as escolas e universidades formam cada vez menos pessoas capazes de ter uma visão crítica sobre o mundo, sem basear-se no que diz a internet. o quanto vc se sente preparado para entrar em uma conversa sobre política internacional, por exemplo?

→ estamos menos sensíveis ao mundo porque não perdemos mais tempo olhando pra ele.

→ em A Amiga Genial, a narradora, Elena Greco (Lenù), explora a complexidade dos seus sentimentos em relação à sua amiga de infância Raffaella Cerullo e, em determinados momentos, percebe o quanto ela mesma se aprisiona a uma competição platônica com a outra. é como a gente hoje, ansiando dia e noite fazer mais e melhor do que os @'s que seguimos: uma competição virtual que nos cega de tal maneira que perdemos a capacidade de questionar se o que estamos fazendo tem qualquer sentido.

→ embora Lenù descubra o empoderamento que a leitura lhe dá em relação à sua bolha de amigos, a opressão que sente por ser uma mulher nos anos 1960 muitas vezes prevalece ao poder do conhecimento. o quanto nós, mulheres do século XXI, usamos nossa liberdade de aprender para realmente nos empoderarmos?

→ não acredito que frear a tecnologia seja o caminho para que as pessoas (especialmente as mais jovens) voltem a se interessar por conteúdo rico, que ensina e convida a refletir. mas voltar a ler me fez acordar para o fato de que nossa visão de mundo não pode se restringir a posts ou vídeos de 15 segundos, por mais relevante que seja o seu conteúdo.

escrevi esta carta aberta para fazer um convite:

produtores de conteúdo, leiam. nós somos responsáveis pela educação da nossa comunidade.

mulheres, leiam. movimentos sociais cruciais estão acontecendo graças à nós, mas, principalmente, graças àquelas que combatem a opressão através do conhecimento.

pessoas negras, leiam. se a tradição nos aprisionou a alma por tanto tempo, só a cultura há de nos libertar.

Terena Miller

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Terena Miller
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estrategista de conteúdo. inquieta. resetando minhas verdades.