Um artista incomum

Giovana Alves França
Cultura & Arte Wiki
12 min readNov 2, 2020

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Chico Buarque

Biografia

Francisco Buarque de Holanda, ou Chico Buarque, como ficou conhecido, é cantor, compositor, escritor e dramaturgo, nasceu em 19 de junho de 1944 no Rio de Janeiro, mas aos cinco anos se mudou para São Paulo quando seu pai foi nomeado diretor do Museu do Ipiranga. Chico é o quarto de sete irmãos e começou a se interessar pela música aos cinco anos.
Em 1953 Buarque e sua família se mudaram para Itália pois seu pai foi convidado a lecionar na Universidade de Roma. A casa de Chico era ponto de encontro de artista intelectuais, como Vinicius de Moraes, inspirando Francisco.
Novamente no Brasil, Chico chegou a cursar três anos de Arquitetura e Urbanismo na Universidade de São Paulo (USP) mas abandonou o curso em 1964, quando a repressão adentrou as universidades após o Golpe Militar. Mas Buarque afirma que cursar Arquitetura foi importante para aguçar sua sensibilidade e ver a cidade com outros olhos, tendo isso contribuído para suas composições musicais.

Chico teve um trabalho relevante de protesto através de suas canções durante a Ditadura Militar e devido a perseguição que sofreu pelo Regime se autoexilou em Roma, na Itália em 1969. Em Março de 1970 Buarque retorna a convite de uma gravadora.
Atualmente, Buarque ainda atua como músico, militante político e escritor, tendo inclusive ganhado o Prêmio Camões (31° edição) , um dos maiores prestígios em literatura na língua portuguesa.

Adesão ao Tropicalismo

Buarque inicialmente fazia parte da onda artística da Bossa Nova, liderada por Tom Jobim e Vinícius de Moraes, mas com o sentimento de insatisfação que crescia na população brasileira perante a Ditadura Militar os artistas "passivos" começaram a não ser bem vistos e se viam pressionados a serem mais engajados politicamente.

Em 26 de Junho de 1968 aconteceu no Rio de Janeiro a Passeata dos cem mil, uma das maiores manifestações contra a ditadura vigente na época. Participaram desse movimento muitos artista intelectuais, entre eles Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, entre outros.

Foto da Passeata dos Cem Mil

Nesse acontecimento, Chico se envolve nos ideais anti regime militar, que seria a ideia central do Tropicalismo e também tem 
contato com artistas, citados anteriormente, que seriam protagonistas da Tropicália.

Na foto aparecem Caetano Veloso, Chico Buarque e Milton Nascimento da esquerda para direita.

O que pensava Chico Buarque sobre a Tropicália

Chico era um figura polêmica no movimento Tropicalista, muitas vezes visto como inimigo desse movimento e inclusive já o criticou, dizendo:

" Mas eu não tinha objeção de ordem ideológica, nada disso. Só que, de certa forma, fui afetado pela violência com que o movimento em torno do tropicalismo me atingiu.[...]. Edu Lobo e eu 
éramos adversários do tropicalismo. E eu nunca senti isso, tirando o que havia de pessoal, que 
podia haver e havia de certo ressentimento pessoal, de mágoa (in BACAL et alii, 2006:189)."

Um dos grandes focos desse dualismo de Chico era sua amizade com Caetano, que se iniciou no começo da carreira de ambos os artistas, mas foi abalada quando as correntes revolucionárias da Tropicália ganharam força. Enquanto Veloso aderiu prontamente as novas visões artísticas de rompimento da época, Buarque parecia de certa forma alheio a esse processo.
 Todavia, Chico foi capaz de se atualizar e adentrar correntes tropicalistas com músicas que representavam ideais anti-regime, fazendo críticas à censura e à violência militar.

Obras

Cálice

Composição: 1973
Lançamento:1978

*A música também foi composta por Gilberto Gil.

Link da música no Deezer:

https://deezer.page.link/aLD9pBgcvEwq6t9u5

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Ao dizer "Pai, afasta de mim este cálice" o eu lírico se refere a passagem bíblica "Pai, se queres, afasta de mim este cálice" (Marcos 14:16). Momento esse em que Jesus Cristo está prestes a ser crucificado e usa a palavra cálice para simbolizar uma grande dor e sofrimento. Contudo, “cálice” também tem semelhança sonora com o termo “cale-se”, que fazia referência a censura.
Além disso, enquanto no trecho da Bíblia Sagrada, o cálice estava simbolicamente cheio do sangue de Jesus Cristo, na canção esse estaria cheio do sangue de vítimas da violência da tortura do governo. Assim, o autor fez uso da dupla interpretação possível da palavra para compor sua canção, fazendo uma crítica, mas não de forma explícita, devido a repressão do regime militar.

Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta

Quando o eu lírico fala de "beber dessa bebida amarga" e "tragar a dor", ele se refere a dor de aceitar a dificuldade de viver sob um regime opressivo. 
 Já "engolir a labuta" se refere ao trabalho exaustivo e mal remunerado comum na época, mas não podia ser criticado pois corresponderia a uma crítica ao militarismo.
Além disso, ao afirmar " Mesmo calada a boca, resta o peito. Silêncio na cidade não se escuta" o autor fala de seu sentimento de indignação que não desaparece mesmo não podendo manifestá-la livremente.

Ao dizer "De que me vale ser filho da santa.Melhor seria ser filho da outra" o eu lírico, mantendo a linguagem religiosa, questiona o regime que se dizia tão bom que seria imaculado e toma uma postura desafiadora afirmando que preferia ser filho da outra.

Nos versos 
"Outra realidade menos morta"
 O eu lírico expressa sua vontade de viver em uma "realidade menos morta" isto é, sem tanta repressão e mortes pelo regime. E com " Tanta mentira, tanta força" bruta faz referência ao suposto milagra econômico da ditadura e a tortura, respectivamente.

Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa

O autor afirma como é difícil "acordar calado", isto é, não poder se manifestar em meio a tanto horror sabendo que poderia ser a próxima vítima.
"na calada da noite eu me dano" que era uma referência a uma atitude do regime de invadir a casa das pessoas contra o regime, prendendo uns, matando outros e ainda fazendo "sumir" alguns. 
Ao dizer que quer "lançar um grito desumano" fala da sua vontade de se expressar e "ser escutado".
E o eu lírico segue dizendo que apesar se "atordoado" segue "atento" para a reação coletiva de manifestação.
Ao dizer que está "na arquibancada" expressa sua insatisfação de ter que assistir passivamente a violência. 
E "monstro da lagoa" faz referência a figura do imaginário infantil de medo, sendo no caso da canção o regime militar.

De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade

"A porca " é uma figura para se falar de um governo corrupto e ao dizer que essa está "muito gorda" faz referência ao pecado capital da ganância, que simboliza o governo corrupto que enriquece às custas do povo.
E ao dizer "de muito usada a faca já não corta" quer dizer que a faca, isto é, a violência do governo, já está perdendo o efeito pois já foi "muito usada" e agora é ultrapassada mas a população resiste. 
Continua expressando sua luta cotidiana de "abrir a porta" que pode significar biblicamente a liberdade. E "essa palavra na garganta" refere-se a proibição de poder se manifestar politicamente.
Ao questionar "o que adianta ter boa vontade" o autor remete a passagem Bíblica "Glória a Deus nas maiores alturas, e paz na terra entre os homens de boa vontade" ( Lucas 2:14, Bíblia Sagrada) e também ao desânimo, pois mesmo querendo fazer algo contra o regime não pode.

E ao dizer que "resta a cuca" mostra que restam seus pensamentos e seu poder intelectual de resistência. 
E ao falar dos "bêbados no centro da cidade" faz referência aos militantes, vistos como desajustados.

Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça.

Na última estrofe há um tom de esperança ao dizer "talvez o mundo não seja pequeno" 
e que a vida não seria um "fato consumado" ou seja, há possibilidade do fim do regime.
E ao dizer que quer inventar o "próprio pecado" e morrer do próprio veneno" o eu lírico fala de sua vontade de viver segundo suas próprias regras e não recebendo ordens.
Para chegar ao sem fim de liberdade o eu lírico precisa "perder de vez tua cabeça" isto é, derrubar o regime militar. 
E fala que quer "perder o juízo" ou seja, abandonar tudo o que a sociedade opressora o impõe. 
Ao abordar "cheirar óleo diesel" faz referência uma técnica de tortura onde as vítima eram obrigadas a inalar óleo diesel.
E também ao dizer que quer "perder o sentidos", fala-se de uma técnica de resistência na qual as vítimas fingiam perder os sentidos para a tortura se encerrar.

Apesar de você
Composição: 1978
Lançamento: 1978

Link da música no Deezer:

https://deezer.page.link/aLD9pBgcvEwq6t9u5

Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão

Para começar é importante lembrar que o pronome “você” se referia ao regime militar, e ao dizer "hoje você é quem manda" ele se refere a repressão que é uma autoridade suprema e não tem abertura para críticas.

A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu

Ao dizer "a minha gente" o eu lírico se refere ao povo brasileiro que estava "falando de lado" no sentido de falar contra o regime secretamente e "olhando pro chão" é se escondendo da repressão.

Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão

Aqui existe um jogo de palavras com a palavra estado podendo significar estado de espírito e Estado, isto é, o governo do país.
Escuridão diz respeito a tristeza devido à repressão.

Cena do filme Terra em Transe (1967) de Glauber Rocha.

Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão

O eu lírico diz que "inventou o pecado" porque na ditadura era comum que o regime acusasse pessoas de crimes que nem existiam ou as acusavam falsamente por algo. 
Mas não inventou o perdão porque no regime militar tudo era tratado rigidamente sem misericórdia.

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia

No caso " apesar" do Estado devido toda a repressão e violência, sendo você o 
Já o "amanhã há de ser outro dia" se refere a esperança de uma melhora no país, onde haveria mais liberdade.

Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia

O eu lírico diz que o regime militar não vai ter onde "se esconder da enorme euforia", isto é, fugir da punição de seus crimes e da liberdade reinando após o fim da ditadura.

Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar

Proibir é uma palavra chave aqui, já que muitas coisas eram proibidas na ditadura.
O galo cantando é um símbolo de resistência porque o galo cantar, seria o grito do povo que apesar de tudo não se cala.

Foto do movimento estudantil em 1968

Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar

Água nova brotando simboliza a esperança de dias melhores.
Já "a gente se amando sem parar" sustenta a teoria que Chico propõe de que a música era para uma mulher, estratégia para despistar a censura.

Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro

Quando "chegar o momento", ou seja, quando a ditadura acabar.
Esse "sofrimento" causado pelo Regime vai ser cobrado, isto é, os responsáveis vão pagar pelos seus crimes.
E vai ter "juros" porque os repressores vão sofrer ainda mais do que o povo

Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro

Aqui "amor reprimido" fala dos desejos da população proibidos e sua liberdade tomada.
Já o "grito contido" é o desejo de se manifestar que tem que ser contido.
Sendo o "samba no escuro" um símbolo que no regime militar não havia espaço para celebrações.

“Amor reprimido” e “grito contido” são símbolos da falta de liberdade da população.

“Samba no escuro” implica que a festa e a alegria tinham que ser em silêncio.

Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar

O Estado " inventou a tristeza" porque ele oprime o povo.
E ele deveria ter a "fineza", isto é, a educação de "desinventar", pois se ele criou esse regime terrível, o mínimo que pode fazer é acaba esse regime te

Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar

Novamente o eu lírico insinua que os responsáveis pela ditadura militar pagarão pelos seus crimes.
Sendo "cada lágrima rolada" e "penar" símbolos de extremo sofrimento.

Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria

Pagar para ver é uma expressão que significa insistir em algo esperando seu resultado sendo "inda" uma abreviação e um regionalismo de "ainda".
 E "o jardim florescer" refere-se à esperança do fim do regime.
E "qual você não queria" , ou seja, os governantes não queriam que seu poder acabasse.

Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença

Se amarrar nesse caso tem um tom provocativo, porque a expressão tradicionalmente significa gostar muito e é óbvio que os governantes não iriam gostar do fim de seu regime.
O "dia raiar" é novamente uma referência à esperança, semelhante ao "amanhã há de ser outro dia"

E "sem pedir licença" porque isso vai ocorrer independentemente do que os repressores militares estabeleçam.

E eu vou morrer de rir
Que esse dia há de vir
Antes do que você pensa

O eu lírico diz que vai "morrer de rir" porque vai se alegrar com a queda do governo militar antes do que esse prevê, pois o militarismo se achava inabalável.

Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia

O eu lírico fala que os opressores militares vão "ter que ver" sua derrota, simbolizada pelo " a manhã renascer", isto é, um novo começo e "esbanjar poesia" uma referência a arte, alegria e liberdade.

Além disso, frase "você vai ter que ver" tem um tom provocativo de dizer que o regime militar vai ser derrotado e ainda vai ter que assistir todas suas diretrizes sendo rompidas.

Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente

O questionamento "como vai explicar" é um questionamento provocativo para os opressores que verão "o céu clarear", o fim da opressão, "De repente e "impunemente", com rapidez e força.

Você vai se dar mal
Etc. e tal
Lá lá lá lá laiá

O regime militar "vai ser dar mal" e o "etc. e tal" deixa aberto para o ouvinte o que essas punições poderiam incluir.

“Quero lançar um grito desumano, que é uma maneira de ser escutado.”

Chico Buarque de Holanda

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