Erick Medeiros é um dos 2 milhões de brasileiros que convivem com a gagueira desde a infância | ARTE: WILLIAM BARROS

Gagueira não tem graça, tem tratamento

Outubro é o Mês Internacional de Atenção à Gagueira, data que passa despercebida até mesmo entre os que sofrem com esse distúrbio da fala

William Barros
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10 min readFeb 7, 2020

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Por Marcos Felipe Martins, Vitória Queiroz e William Barros

Erick Medeiros ainda lembra da força das mãos da bisavó. Com uma colher de madeira, a mulher atingia a cabeça do menino de 7 anos de idade. Ignorava a dor que o neto sentia, enxergava naquele gesto uma finalidade positiva. “Ela dizia que aquilo era para eu parar de gaguejar. Eu chorava e ficava com muita raiva”, relembra o agora estudante de Medicina. A atitude da “bisa”, obviamente, não surtiu o efeito esperado.

Hoje, aos 21 anos de idade, Erick continua gaguejando. “Tenho dificuldade em falar palavras que iniciam com vogais, como ‘a’ e ‘e’. É extremamente chato não conseguir falar uma palavra ou perder o tempo de uma frase.”

O jovem está entre os 2 milhões de brasileiros que gaguejam de forma crônica. Esse dado, divulgado pela Associação Brasileira de Gagueira (Abra Gagueira), representa uma das poucas estatísticas acerca de pessoas que convivem com essa dificuldade de fala no Brasil.

>>> 2 milhões de brasileiros gaguejam de forma crônica

Fonte: Abra Gagueira

A lacuna de dados foi percebida por Erick quando decidiu buscar orientação pela internet. Para ele, as informações sobre gagueira são “escassas e repetitivas”. “Encontrei algo mais útil em sites mais técnicos, que conheci depois de entrar na faculdade. Mas para a maioria das pessoas, as informações sobre o tratamento e o que fazer não estão acessíveis”, avalia o estudante.

No mesmo ano em que o Erick nasceu, 1998, a Associação Internacional da Fluência (IFA) e a Associação Internacional da Gagueira (ISA) escolheram outubro como o Mês Internacional de Atenção à Gagueira (Miag). Desde então, a ideia é que, ao longo desses 31 dias, sejam realizadas ações em todo o mundo para explicar o que é a gagueira e como ela pode ser tratada. Entretanto, na vida do estudante de Medicina, o evento internacional tem passado despercebido.

Mesmo tendo praticamente nascido junto com o Miag, o jovem jamais ouviu falar da data alusiva ao problema que enfrenta por toda a vida. O mesmo acontece com outros entrevistados ouvidos pela reportagem. Mas quem convive com esse distúrbio conhece bem os efeitos que a falta de informações sobre o assunto pode trazer às suas rotinas. “Pessoas da minha família e escola faziam chacota comigo. Algumas pessoas acham que gaguejar é engraçado e riem, de maldade. Essas situações são chatas e constrangedoras. Isso me afetou muito na infância e na adolescência”, reflete o universitário.

“Algumas pessoas acham que gaguejar é engraçado e riem, de maldade. Essas situações são chatas e constrangedoras. Isso me afetou muito na infância e na adolescência”.

Erick Medeiros, estudante de Medicina

O relato de Erick está diretamente ligado ao principal lema estampado nas campanhas do Miag: “Gagueira não tem graça, tem tratamento”. Mesmo desconhecendo o slogan, o jovem tem consciência dessa mensagem. Há 2 anos, ele decidiu buscar tratamento com um fonoaudiólogo em uma clínica particular. Por falta de tempo, ele interrompeu o processo. “Como fiz por pouco tempo, (o tratamento) não me trouxe tantos resultados, mas, na época, eu já via alguma melhora. Meu nível de fluência já foi bem pior”, recorda o estudante.

Na visão dele, o tratamento para a gagueira não está acessível financeiramente à maioria da população. Ele acredita que ações sociais da Fonoaudiologia deveriam ser levadas “para além do consultório” e que a gagueira não é abordada pela mídia com a devida importância. “Ninguém faz nada a respeito, porque é consenso da sociedade que (gagueira) é algo sem importância. É como se a gagueira fosse uma característica e, não, um problema”, avalia o estudante, que já planeja retomar o tratamento no próximo mês.

Por quê a gagueira é um problema

Familiares de Erick também convivem com a gagueira. O exemplo mais próximo é o do avô dele, que, assim como o neto, gagueja. O fonoaudiólogo Charleston Teixeira explica que esse histórico familiar é um dos fatores que levam ao diagnóstico da chamada “gagueira verdadeira”. Segundo ele, o problema tem origem genética e é causado por uma alteração no desenvolvimento dos hemisférios cerebrais da criança. “A zona do cérebro responsável pela fala pode estar ali desconectada das outras zonas. Assim, a pessoa que gagueja pensa perfeitamente, mas não consegue emitir o som”, explica o profissional.

“A pessoa que gagueja pensa perfeitamente, mas não consegue emitir o som”.

Charleston Teixeira, fonoaudiólogo

O professor do curso de Fonoaudiologia da Universidade de Fortaleza (Unifor) alerta que dificuldades de fluência da fala também podem aparecer ao longo da vida. “Isso pode ser causado por um problema emocional ou neurológico, como um AVC. Mas hoje a gente não chama mais isso de gagueira. A gente diz que isso é uma disfluência da fala, uma quebra na fluência”, retifica Teixeira.

De acordo com o fonoaudiólogo, 10% das palavras ditas por uma pessoa que gagueja são pronunciadas com dificuldade. Dentre os empecilhos mais comuns, ele elenca a repetição, o prolongamento e o bloqueio de sons. “Todos nós temos momentos de disfluência, mas uma pessoa gaga tem muitos mais momentos desses do que quem não gagueja”, estima Charleston.

>>> 10% das palavras ditas por uma pessoa que gagueja são pronunciadas com dificuldade

Fonte: Charleston Teixeira, fonoaudiólogo

Colher de madeira, nunca mais

Especialista em aperfeiçoamento vocal, ele diz que a gagueira pode ser identificado a partir do segundo ano de vida da criança. Para o profissional, a infância é o momento ideal para que o tratamento seja buscado. “A criança pode ter uma melhora bem significativa na fluência dela já na infância, quando o desenvolvimento cerebral é mais moldável. O adulto vai melhorar na fluência, mas a Fonoaudiologia não garante sucesso total na terapia desse paciente”, argumenta.

Ele explica que, em geral, a gagueira é tratada com o apoio de um fonoaudiólogo e um psicólogo. “O fonoaudiólogo vai ajudar a administrar essa gagueira, amenizando aquilo que afeta a fluência da fala do paciente. O psicólogo vai ajudar o paciente a se reconhecer como uma pessoa que gagueja e a tratar aspectos emocionais que a gagueira está causando a ele, como retração social e baixa autoestima”, descreve Teixeira.

Além do trabalho desenvolvido pelos profissionais de saúde, a tecnologia também já oferece alternativas para quem deseja tratar a gagueira. O especialista destaca o equipamento speecheasy, que chegou ao Brasil há 11 anos. “Com ele, você se escuta mais atrasado, como se estivesse falando duplamente ou em coro. Isso ajuda o gago a ficar mais fluente, porque ele presta mais atenção na fala dele”, explica o professor. Apesar das vantagens, ele alerta que o equipamento é caro e os resultados não são garantidos.

Charleston também explica que comportamentos como o da bisavó de Erick, que agredia o neto com uma colher de madeira, não acontecem por acaso. Segundo o especialista em aperfeiçoamento vocal, atitudes desse tipo refletem antigos mitos construídos acerca dos tratamentos para a gagueira. “Como a profissão de fonoaudiólogo é nova, muito se falou sobre a gagueira antes de essa ciência surgir. A gente está indo contra tudo isso aí, mostrando que esse problema tem, sim, tratamento adequado”, defende o especialista.

Erick, por sua vez, não guarda mágoas com relação à bisavó. “Hoje em dia, eu acho até engraçado essa crença dela. É a coisa do conhecimento popular”, pondera o rapaz. Para evitar situações como a que o estudante de Medicina enfrentou na infância, esse distúrbio da fluência da fala ganhou um mês de atenção especial. A data, no entanto, segue esquecida. Por outro lado, a desinformação e o preconceito com relação à gagueira resistem ao tempo. E assim, demora ainda mais para que os tratamentos especializados substituam de vez as colheres de madeira.

Atendimento gratuito de excelência

Gabriel, de 7 anos, é um dos pacientes que tratam a gagueira no Nami | FOTO: MARCOS FELIPE

Com histórico de gagueira na família, o diagnóstico de Gabriel Alves, de 7 anos, veio aos 3 anos de idade. A mãe do garoto, Ana Paula, percebeu a dificuldade no ato de falar do filho desde o segundo ano de vida da criança, quando procurou o primeiro acompanhamento fonoaudiológico para Gabriel. A preocupação precoce da vendedora veio da gagueira do avô materno do menino. O pai de Ana tinha dificuldades para pronunciar o ‘r’ e o ‘l’ e, por vergonha, nunca procurou um tratamento qualificado, erro que Ana Paula se recusou a repetir com o filho.

Foi por meio do Sistema Único de Saúde (SUS) que a mãe de Gabriel conheceu o Centro de Fonoaudiologia do Núcleo de Atenção Médica Integrada (Nami) da Universidade de Fortaleza. A clínica escola recebe os pacientes a partir de encaminhamentos dos postos de saúde do município. Após a avaliação e identificação do quadro, as pessoas com disfluência na fala passam a realizar uma série de procedimentos, realizados duas vezes por semana.

Gabriel é uma das 407 crianças atendidas no núcleo com problemas de articulação da fala. Apesar de ainda não ter concluído o tratamento, que tem duração média de um ano, o garoto já apresenta melhorias no quadro de gagueira. “Quando ele iniciou (o tratamento), a gagueira dele, ele para contar uma história, uma palavra era quase 20 minutos, e hoje, graças a Deus, ele já conversa, já lê textos, e antes ele não tinha uma leitura boa como está hoje”, explica Ana Paula.

“Para contar uma história, uma palavra era quase 20 minutos, e hoje, graças a Deus, ele já conversa, já lê textos”.

Ana Paula Alves, mãe de Gabriel

O sucesso do tratamento é mérito de Gabriel, que pratica diariamente os exercícios repassados no Nami na escola. “Ele mesmo está vendo que se ele aplicar o exercício que ele aprende no Nami no dia-a-dia, ele tem resultados, ele enxerga isso”, conta a mãe do garoto.

Para Tiago Aguiar, fonoaudiólogo que atende no núcleo, o tratamento das crianças precisa estar embasado em um tripé, que envolve o trabalho conjunto da escola, da família e do profissional de fonoaudiologia. “Quando a gente tem isso funcionando, girando direitinho, a gente tem um super sucesso terapêutico. Então, a família é um que tem que ser mais agregado a terapia, não só o pai e a mãe, mas o cuidador, a avó, o avô, o tio. Quem convive nesse ciclo familiar tem que estar inserido no processo terapêutico”, explica Tiago Aguiar, fonoaudiólogo do Nami.

Durante o tratamento, os pacientes realizam uma série de procedimentos. Atividades que reduzem o esforço na musculatura bucal, envolvem a organização das ideias, melhoram a respiração e suavizam pontos de tensão são alguns dos exercícios presentes no tratamento dos pacientes do núcleo.

“Se o paciente não tiver melhora em torno de um ano, tem que ser revisto se aquela abordagem é mais eficaz, se o paciente está tendo adesão, se ele faz realmente aquilo que a gente solicita, às vezes o quadro do paciente é bem severo, que envolve outros aspectos, às vezes problemas familiares, emocionais, sociais ou profissionais”, esclarece o fonoaudiólogo Charleston.

De crianças a idosos, o Nami realiza o atendimento gratuito de 716 pessoas com problemas de articulação na fala. Além de pacientes com gagueira, o centro de fonoaudiologia do núcleo atende pessoas que tem o ato de falar prejudicado por conta de atrasos de linguagem, problemas neurológicos, ortodônticos, emocionais ou dificuldades na leitura.

O tratamento é considerado de excelência por Ana Paula, que lamenta a inexistência de outras unidades semelhantes em Fortaleza.

Aprendizado

No núcleo, os alunos da universidade têm a oportunidade de aprender na prática como funciona o tratamento, passando por diversos níveis de atendimento. No grau mais elementar, os estudantes de fonoaudiologia da Unifor apenas assistem aos procedimentos. Quando já adquirem mais experiência, os alunos começam a entrevistar os pacientes, para só então realizar as avaliações do público atendido no núcleo. >

Serviço

Atendimento no Núcleo de Atenção Médica Integrada (Nami) da Unifor

Quando: De segunda a sexta-feira, a partir das 8h

Onde: Rua Desembargador Floriano Benevides Magalhães, 221, Edson Queiroz

Mais informações: (85) 3477.3600

Uma placa a ser trocada

O grupo Microsom era o único no Brasil a exportar um aparelho que ajuda a tratar a gagueira | FOTO: MARCOS FELIPE

Quem passa pela loja Microsom, localizada no bairro Aldeota, se depara com as palavras “audição, gagueira e zumbido” destacadas em caixa alta, numa placa afixada na fachada do prédio. O trabalho da loja é vender aparelhos de tecnologia de ponta para pessoas com necessidades especiais de comunicação, como a gagueira. Pelo menos era assim até o ano passado.

Agora, quem liga para a empresa procurando informações pelo serviço se decepciona com a notícia que recebe. Desde 2018, a loja parou de vender o speecheasy, aparelho que, segundo o Instituto Brasileiro de Fluência (IBF), faz com que a pessoa ouça sua própria voz com outro tom — mais fino ou mais grosso — e com um leve atraso. O aparelho faz com que o cérebro pense que a pessoa está falando em uníssono com outra.

Para evitar que os clientes se frustrem, a administração da Microsom tomou uma atitude. A fachada da loja está sendo reformada. Daqui a algumas semanas, uma nova placa estará no local. Por consequência, o aparelho para tratamento da gagueira não estará mais no anúncio.

Problemática

A Microsom parou de vender o speecheasy devido a “problemas burocráticos”, segundo informações fornecidas pela gerente da filial em Fortaleza. Em conversa informal com a reportagem, ela explicou que o produto não chegará em mais nenhuma das unidades do grupo comercial.

Com matriz em São Paulo, a loja era a única no mercado a vender o aparelho de tratamento para a gagueira. De acordo com funcionários, mesmo custando cerca de R$ 9,9 mil, o produto costumava vender muito bem. “Apesar do preço, a procura era grande, vendíamos bem”, pontua uma funcionária da loja.

Não há previsão sobre quando a empresa vai voltar a importar o produto. A medida tem consequências mais sérias do que parece, já que as negociações com o SUS para a disponibilização gratuita do mesmo também estão prejudicadas. A oportunidade de realizar o tratamento com o aparelho fica, portanto, ainda mais distante das possibilidades dos 2 milhões de brasileiros que convivem com a gagueira.

Reportagem produzida para a disciplina de Jornalismo Impresso I, do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará (UFC), em 2019.

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William Barros
William Barros

Cearense, repórter na Folha de S.Paulo. Criativo, curioso e interessado em contar boas histórias.