O apagamento bissexual tem sido um dos maiores desafios enfrentados pelos que compõem a comunidade | Imagens: Reprodução/Cíntia Martins e Equipe Mídium/William Barros

BISSEXUALIDADE

Invisi-bi-lidade: Pelo olhar de quem a sente

Quais problemáticas envolvem a invisibilização da identidade bi dentro e fora da comunidade LGBTQ+?

William Barros
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12 min readSep 19, 2018

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Por Cristina Soares e William Barros

Vinte e três de setembro é o Dia Internacional da Celebração Bissexual, criado em 1999 pelos estadunidenses Gigi Raven Wilbur, Wendy Curry e Michael Page, militantes em favor dos direitos bissexuais. A proposta dos três ativistas era a de que, nesta data, se discutisse acerca do reconhecimento da existência da bissexualidade e, em especial, quanto ao combate da invisibilização desta identidade dentro e fora da comunidade LGBTQ+. Quase 20 anos depois da origem do evento, pessoas bissexuais seguem sendo estigmatizadas, estereotipadas, discriminadas, pouco citadas na mídia e pouco lembradas pelas políticas públicas.

Em 2017, São Paulo recebeu a primeira edição da Caminhada pelo Orgulho Bi | Imagem: Reprodução/Mídia NINJA

Antes de tudo, devemos lembrar que boa parte das pessoas nem ao menos reconhece a existência da bissexualidade. De acordo com a edição de 2014 da publicação Celebrating the Spectrum (Celebrando o Espectro, em português), a ativista bissexual Gigi Raven Wilbur afirma que a sociedade “condiciona os indivíduos a tachar automaticamente um casal que anda de mãos dadas apenas como hétero ou gay”. Ao mesmo tempo, uma rápida busca na internet é suficiente para confirmar que não há sequer estudos estatísticos consolidados sobre a população bissexual existente no mundo. As evidências conduzem à mesma percepção: apesar de nos últimos anos a diversidade sexual ter sido centro de muitos debates, a bissexualidade ainda não é completamente vista como uma orientação possível.

“A bissexualidade é vista como um processo de autoconhecimento e que ao final você vai optar por um lado”, comenta Marcelle Silva, pesquisadora cearense da área de gênero, sexualidade e saúde vaginal feminina. Ela explica que o imaginário popular condiciona a inclusão das pessoas em “caixinhas” e entender a transitoriedade entre os estereótipos de gênero ou até a não identificação, é complicado para o coletivo. Isso porque grande parte da sociedade brasileira é educada com valores patriarcais e sob forte divisão de gênero e papéis sociais.

Em sua experiência como pesquisadora, Marcelle conta que percebeu a invisibilidade bissexual com tanta força que nunca teve contato com estudiosos que vissem nesse grupo um possível foco de estudos sobre as formas de manifestações da sexualidade. “Tudo se trata de aceitação individual e coletiva, então mesmo quando você se aceita, você ainda está dependendo do olhar do outro. Penso que a ideia de você se assumir bissexual é uma dupla saída do armário”, afirma. A pesquisadora acredita que a empatia e o ato de perceber o lugar do outro de forma plural, livre e como demonstração de amor é a única arma contra o preconceito e a deslegitimação.

Durante caminhada na Rua Augusta, em São Paulo, manifestantes carregaram faixas estimando a população bissexual em “mais de 6 milhões” | Imagem: Reprodução/Mídia NINJA

Quando se trata dos produtos de entretenimento, a reduzida aparição de bissexuais também é verificada. Segundo o estudo The Where We Are on TV(em tradução livre, Onde Estamos na TV), dentre todos os personagens de séries televisivas produzidas nos EUA entre 2015 e 2016, apenas 14 eram bissexuais. A pesquisa foi publicada pela ONG Gay & Lesbian Alliance Against Defamation (Aliança Gay e Lésbica Contra a Difamação) — GLAAD, que monitora a abordagem da temática LGBTQ+ na mídia estadunidense.

Para além da invisibilidade, a manifestação da identidade bissexual é costumeiramente associada a certos estereótipos, como indecisão quanto à orientação sexual, transmissão de infecções sexualmente transmissíveis, modismo ou tendência à infidelidade no relacionamento. A ocorrência dessas práticas remete à bifobia, termo usado para descrever o medo, aversão ou discriminação contra a bissexualidade. Em um registro mais amplo, a bifobia também pode ser identificada como uma das consequências da invisibilização da pessoa bissexual. Neste sentido, é válido questionar: de que modo o apagamento da identidade bi impacta a vida dos sujeitos que a vivenciam?

Nem gay nem hétero: 100% bissexual

Victória Lima tem combatido a bifobia no grupo que administra | Imagem: Reprodução/Cíntia Martins

“A invisibilidade é isso de não se sentir parte do meio heterossexual e não se sentir acolhido onde você deveria ser, já que o ‘B’ da sigla LGBT está ali por um motivo”

Há quatro anos, pouco tempo depois de terminar um namoro com um homem, Victória Lima se viu em meio a uma experiência nova: seu sentimento por uma determinada amiga parecia não se restringir à amizade. A estudante do curso de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Ceará (UFC) relembra que “sabia que sentia atração por homens, mas não tinha certeza sobre [gostar de] mulheres”. A dúvida a incomodava, mas o cerne da questão não estava na possibilidade de se sentir atraída por uma garota. O temor de Victória se depositava sobre as chances de estar se enganando, confundindo sentimentos e acabar magoando alguém no processo. “No final das contas, eu não estava confundindo nada, era isso mesmo”, relata a jovem.

Desde então, a universitária de 22 anos afirma já ter ouvido “coisas bem ruins” sobre sua orientação sexual. “Já anularam várias vezes as minhas afirmações sobre mim mesma, dizendo que bissexualidade não existe, que eu só sou uma pessoa confusa, que o tempo vai passar e eu vou perceber do que eu gosto mesmo. O tempo está passando e estamos aí: nem gay nem hétero, 100% bissexual”, argumenta. Para ela, muitas das agressões dirigidas a pessoas bissexuais são feitas em tom de brincadeira e os estereótipos são diariamente reforçados. “Parece, na mente de algumas pessoas, que, ao ser bissexual, você passa, instantaneamente, a ser uma pessoa mentirosa, infiel, promíscua, suja”, reflete.

A jovem ressalta que o preconceito contra bissexuais é muito forte dentro da própria comunidade LGBTQ+. Durante um encontro com outra mulher, Victória afirma ter sofrido rejeição por ser bi. “Ela [a pretendente] foi dizendo: ‘Se for bissexual, já vou logo avisando que não vai rolar nada’”, conta. A estudante também relembra que, por causa da bifobia, já baniu membros do grupo que administra no Facebook, o CETVevo, voltado para o público LGBTQ+ de Fortaleza.

Sobre o fato de a identidade bi ser associada à transmissão de infecções sexualmente transmissíveis, a graduanda em Ciências Biológicas relembra já ter ouvido frases como “bissexual é depósito de DST”. Para ela, as afirmações são infundadas e têm sido proferidas por indivíduos que não param para refletir a respeito do que falam. “As pessoas esquecem que a responsabilidade de não contrair doenças sexualmente transmissíveis é delas, usando camisinha”, alerta.

Na visão de Victória, a problemática da invisibilidade está na exclusão de pessoas bissexuais e no sofrimento psicológico que isso pode causar. “O isolamento pode intensificar as chances de a pessoa desenvolver ou piorar sintomas de ansiedade e depressão, por exemplo. Outra questão importantíssima é a aceitação. Para mim, foi fácil, mas não é assim para muita gente”, pondera a jovem. Para ela, a comunidade LGBTQ+ deveria ser mais acolhedora com a identidade bi e a propagação dos estereótipos deve ser combatida “repreendendo o coleguinha que faz piadas com isso, explicando que isso é errado, não se calando”.

Ninguém vira bi

Francil Ribeiro sofreu preconceito por parte da família ao assumir-se bissexual | Imagem: Equipe Mídium/William Barros

Ainda durante a infância, Francil Ribeiro Neto deu seu primeiro beijo, com um menino que morava na mesma rua, e na pré-adolescência beijou uma mulher. O momento de contar para a família sobre sua orientação veio aos 16 anos. A partir de então, o graduando em História pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) passou a enfrentar os primeiros casos de bifobia da sua vida. “Recebi apelidos, virei motivo de chacota na minha própria família. Inclusive, a minha mãe era uma das pessoas que achava que não existia bissexual, ou você era gay ou você era hétero, tanto que ela falou para meu tio me ajudar, como se eu precisasse de ajuda”, conta. Segundo ele, foi somente depois dos 20 anos que passou a se sentir mais aceito quanto à sua orientação.

O jovem de 27 anos também já sofreu rejeição por parte de um de seus pretendentes. “Ele disse: ‘Não vou ficar mais contigo, porque tu é bi’. Até hoje eu me pergunto o motivo disso”, relembra. Francil também contesta o rótulo de infiel dado aos bissexuais: “se a pessoa trai, não importa a sexualidade dela, é uma questão de princípios morais”.

“Eu gosto de ficar com os dois sexos, mas não quer dizer que, estando em um relacionamento monogâmico, eu vá necessariamente trair”.

O universitário é crítico da ideia de que a bissexualidade possa ser uma faixa de transição entre a homossexualidade e a heterossexualidade. “As pessoas têm que parar de ver a gente como essa faixa de transição. Ninguém vira bi, a gente nasce”, ressalta.

Fã de animações, ele destaca que, mesmo abordando veladamente certas identidades, há diversos personagens do universo dos filmes e dos quadrinhos que são LGBTs. Francil ressalta ainda que boa parte do público fica revoltada ao descobrir que certos super heróis são gays, caso do Homem de Gelo. Ele também menciona o personagem pansexual interpretado por Keanu Reeves em Constantine (2005) e as versões alternativas de HQs em que o herói Wolverine tem um envolvimento sexual com Hércules.

Para o jovem, dar mais visibilidade aos bissexuais é importante, pois “quanto mais pessoas entenderem a bissexualidade, mais pessoas vão poder tratar melhor umas às outras, sem julgar”. Francil também atenta para o apagamento da pansexualidade. “Acho que os pansexuais são excluídos não só da sigla [LGBT] como também do movimento”, avalia o rapaz. O universitário aconselha que cada pessoa faça pelo menos um amigo de cada letra da sigla. “Quanto mais você agrega, mais conhecimento você tem”, finaliza.

Você pode gostar dos dois

Alexia Damasceno percebeu-se como bissexual após o conselho de um amigo | Imagem: Equipe Mídium/William Barros

“Eu acho que a invisibilidade traz uma questão muito pesada, como a que trouxe para mim. Foi só depois dos 15 anos que me descobri e me aceitei sendo bi, sendo que eu podia ter tido noção disso muito antes. Nunca tinha ouvido falar sobre bissexuais, entendeu?”

Até os 15 anos de idade, Alexia Damasceno acreditava ser lésbica, já que só se sentia atraída por mulheres. Depois de um longo namoro com uma menina, conheceu um garoto que, surpreendentemente, despertou seu interesse. No entanto, estando com ele, a atração pelo gênero feminino não deixava de existir. “O que é que está acontecendo? Será que eu tenho algum problema?”, perguntava-se. O estranhamento diante da situação só teve fim quando um conselho chegou a seus ouvidos. “Teve um amigo meu que falou: ‘Amiga, tem [a possibilidade de ser] bi, você pode gostar dos dois. Me senti completa”, relembra a jovem de 25 anos.

Para ela, até mesmo definir o termo “bissexualidade” tem se tornado um desafio. Enquanto alguns afirmam que esta identidade se refere ao interesse por homens e mulheres cisgêneros, há quem utilize o termo para agrupar uma série de orientações que se diferem das chamadas monossexualidades. “Ultimamente eu vejo gente dizendo que pan é bi e bi é pan. Eu não sei, eu fico confusa”, relata a estudante de Direito, pela Unifor, e de Filosofia, pela UECE. Ainda sobre o assunto, Alexia revela que já se relacionou com um homem trans. “Já me falaram que, por isso, eu deixei de ser bi e passei a ser pan. É confuso”, reflete.

Ela afirma que ao assumir-se bissexual, imaginou que a aceitação seria mais fácil, o que hoje considera um “ledo engano”. Dentro da comunidade LGBTQ+, já foi discriminada por sua orientação. “É corriqueiro, infelizmente”, lamenta. Após revelar já ter namorado um rapaz para uma de suas pretendentes, ouviu: “Desculpa, não fico com resto de macho”. A universitária sentiu-se ainda mais frustrada pelo fato de que a frase foi proferida por uma militante da causa LGBTQ+. “Pensei que ela fosse entender”, relembra. Da parte dos homens, Alexia afirma que é comum a repetição de estereótipos. Deles, já ouviu: “Bom que tu é bi, que a gente faz um ménage [à trois], apresenta uma amiga que a gente faz”.

Quando o assunto é a representatividade da identidade bissexual na mídia, Alexia cita a animação Sailor Moon (1992–1997). “Foi minha escolinha, tinha personagem trans, tinha as lésbicas, tinha bi, não me recordo quem. Não lembro, mas tinha”, afirma. Amante das histórias em quadrinhos, a jovem menciona as personagens Hera Venenosa e Harley Quinn, ambas bissexuais. Na música, Alexia elenca David Bowie como um artista que “militou muito por essa causa”. Ela descobriu a obra do cantor na mesma época em que se assumiu bi e segue sendo fã. A moça também cita Freddie Mercury e Cazuza, que já se relacionaram com mulheres, mas são considerados gays até hoje. “Acho que é sempre assim a sociedade, né? Se você é mais afeminado, você é gay. Se você é mais másculo, não é bi, é hétero, mas ele está confuso”, avalia.

Citado por Alexia, o cantor David Bowie respondeu sobre ser bissexual em diversas entrevistas durante sua longa carreira, ao ponto de ficar cansado da mesma pergunta | Reprodução/YouTube

Questionada sobre o que pode ser feito para dar mais visibilidade para pessoas bissexuais, Alexia afirma que é necessário uma maior aceitação por parte da comunidade LGBTQ+. “Se a gente, que é tão de fora da sociedade heteronormativa, está desunido, como é que vamos trabalhar juntos?”, questiona. Sobre os avanços em termos de representatividade, ela considera “bacana saber que agora a gente está tendo um localzinho de voz”.

Onde está o “B”?

Bissexual, Thiago Tavares já foi classificado como “um gay que não quer se assumir” | Imagem: Equipe Mídium/William Barros

“Nós estamos aqui também. Nós somos parte. Nós somos esse ‘B’ que, como dizem, não é de Beyoncé, é de bissexual”

Desde sempre, Thiago Tavares sentia atração por homens e mulheres. Em sua família, conviveu com amigos e agregados assumidamente homossexuais. Da boca da mãe, chegou a ouvir: “Seria interessante se você fosse gay”. O rapaz reconhece o privilégio que é ter uma mãe “mais cabeça aberta”. No entanto, até cinco anos atrás, ele só havia namorado com mulheres e ainda não se identificava como bissexual. “Fui me encontrando aos poucos”, afirma o web designer e estudante de Gastronomia. Em seus 35 anos de idade, já foi vítima de bifobia dentro da comunidade LGBTQ+, ao ser classificado como “um gay que não quer se assumir” e “hétero de Taubaté”, em referência ao caso da falsa “Grávida de Taubaté”. Além disso, foi agredido com uma latinha de refrigerante durante uma manifestação pela diversidade após levantar a mão e declarar-se bissexual. À época, perguntou-se: “Poxa, onde é que está o ‘B’ nisso?”, relembra.

Os relacionamentos mais duradouros do estudante foram com mulheres. Segundo ele, foi comum perceber em suas parceiras a preocupação em “ser traída em dobro”. Thiago, no entanto, afirma considerar importante o diálogo e respeitar os acordos feitos em cada relação. “O perigo está em fazer coisas escondido, dizendo uma coisa para a pessoa e fazendo outra por trás. Isso que eu vejo como infidelidade”, argumenta. Por outro lado, o web designer nunca conseguiu firmar compromisso com homens, “às vezes que cheguei a ter alguma coisa mais séria, não deu certo”. Ele relembra que já estava prestes a contar para a família a respeito de uma relação homoafetiva, quando descobriu que o parceiro “tinha uns casos [fora do relacionamento], umas coisas assim”.

Para Thiago, a invisibilidade começa quando não há sequer reconhecimento dentro da comunidade do que significa ser uma pessoa bi. “As pessoas acham que uma hora você está de um lado e, uma hora você está do outro, quando na realidade, você está no meio. Você está andando dentro do seu próprio espectro, dentro da sua própria faixa”, explica.

Thiago avalia que a classe bissexual não é tão organizada quanto outros grupos da comunidade LGBTQ+, já que homossexuais vêm batalhando por seus direitos há muito tempo. Sobre o Dia da Celebração Bissexual, o estudante afirma que não viu iniciativas relacionadas à comemoração em Fortaleza. “Não tem muito disso aqui. Acho que se tiver alguma coisa, vão ser em pequenos locais, geralmente acadêmicos, para debater o assunto. Dentro da sociedade, isso não é debatido. Isso é uma coisa triste”, lamenta.

Ele também acredita que gays e lésbicas têm se fechado em subgrupos por buscarem segurança, maior identificação e “se sentir à vontade”. No entanto, considera a segregação como algo prejudicial. “Vejo isso como ovelhas que saem de um bando e fica mais fácil de o lobo atacar. “Acho que a gente [a comunidade LGBTQ+] deveria mostrar mais força. Está faltando união dentro da sigla como um todo”, argumenta.

Brigar contra a invisibilização da população bissexual é, portanto, garantir a presença, o lugar de fala e a representatividade de pessoas bissexuais. Em outro plano de análise, defender a bissexualidade como orientação sexual possível é uma das ferramentas que contribuem para a maior identificação de outros indivíduos. Dar-lhes espaço também depende de discussão e da consequente quebra de estereótipos que já causaram discriminação, sentimentos de inadequação, rejeição social e sofrimento.

Reconhecer a existência dessas pessoas remete ao verdadeiro motivo das letras ‘L’, ‘G’, ‘B’, ‘T’ e ‘Q’ estarem juntas em uma só sigla: a união daqueles que diferem da normatividade de orientação sexual ou de identidade de gênero e lutam pela garantia de seus direitos. A bissexualidade não aparece na sigla à toa e o espaço ocupado pelo ‘B’ precisa existir também na prática. Gostar de meninos e meninas é possível.

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William Barros
William Barros

Cearense, repórter na Folha de S.Paulo. Criativo, curioso e interessado em contar boas histórias.