“Calado!” está disponível para compra no site da Editora Arquimedes (FOTO: Divulgação | ARTE: William Barros)

Calado, nunca mais

Netos de líder comunista lançam livro sobre morte do avô, em Fortaleza

William Barros
William Barros
Published in
5 min readMar 30, 2020

--

Reportagem produzida para a editoria “Cotidiano”, do portal Tribuna do Ceará, em 2019.

O carioca Vlad Calado nunca esteve em Fortaleza, mas se refere a diversos pontos da cidade com propriedade. É que ele cresceu ouvindo a família falar de uma história que aconteceu na capital cearense. “A Rua Jaime Calado fica ali no bairro de Fátima, perto daquela sorveteria famosa”, diz o publicitário ao ensinar o endereço do logradouro que homenageia seu avô, líder comunista morto dentro do Theatro José de Alencar em 1949.

Esse episódio ocorrido há 70 anos é retratado no livro “Calado! — A reportagem do caso Jaime Calado, jornalista e líder popular assassinado por integralistas em Fortaleza” (Editora Arquimedes, 2019). A obra, organizada por Vlad e seus irmãos, foi escrita por seu pai, o jornalista Stenka do Amaral Calado, que faleceu em 2012, antes de lançar o material a respeito de Jaime.

Nas páginas do livro, estampam-se memórias, depoimentos, fotografias e recortes de jornais sobre o assunto. Tudo isso é fruto do processo de pesquisa iniciado por Stenka em 2007. À época, com quase 50 anos de carreira, o jornalista pretendia resgatar a história da morte de seu pai em uma série de reportagens. Em seguida, decidiu ampliar o material e publicar o livro. Não deu tempo. Um câncer de pulmão o levou à morte.

Depois do falecimento de Stenka, a publicação ganhou ares de produção familiar. Netos de Jaime, o publicitário Vlad cuidou do projeto gráfico e da edição de texto, o historiador Ricardo revisou o conteúdo, a jornalista Nadedja escreveu o prefácio e o designer gráfico Yuri diagramou o material. Os irmãos do antigo líder do Partido Comunista também colaboraram, com depoimentos e consultoria.

Além do resgate da história do assassinato de Jaime, o leitor pode conferir em “Calado!” a homenagem da família ao avô e ao pai. O título, inclusive, sugere o tom da narrativa. “Só nosso núcleo tem sobrenome Calado, que meu avô adotou na clandestinidade, para despistar a repressão. Virou título do livro, com essa exclamação, porque ele foi calado premeditadamente, de forma muito violenta”, explica o neto, orgulhoso do sobrenome que herdou.

Morto há 70 anos

Recortes de jornais sobre a morte de Jaime Calado ilustram as páginas do livro (FOTO: Divulgação)

O pernambucano José Ferreira Guimarães virou Jaime Calado em 1939, quando mudou-se para Fortaleza com a esposa e os dois filhos mais novos. O membro do Partido Comunista já havia sido preso diversas vezes desde a adolescência.

Na capital cearense, exerceu liderança comunitária nos bairros Pirambu e Arraial Moura Brasil. “Era um momento de segurar a impetuosidade. Ele focou mais na família, teve um filho atrás do outro”, avalia Vlad.

Para o neto, houve um momento em que Jaime não freou seus ímpetos e foi “vítima de uma cilada”. Em 24 de julho de 1949, o jornalista organizou um movimento de oposição à visita do líder integralista Plínio Salgado a Fortaleza. “Ele tinha horror aos integralistas, ao Plínio”, pontua Vlad. Um boato de que estudantes estavam sendo espancados no interior do Theatro José de Alencar fez com que Jaime e dois companheiros fossem para lá.

“Quando ele entrou no teatro, tomou uma porrada de cassetete. Ele foi morto por militares dentro de um prédio público. Seguraram o corpo dele por nem sei quantas horas. Divulgaram que foi por troca de tiros. Como se nada tivesse acontecido, o Plínio Salgado conseguiu fazer seu discurso no teatro onde tinha sido assassinado uma pessoa. Pelo menos, deveriam ter cancelado o comício. Coisa de maluco”, diz o neto, repetindo o que cresceu ouvindo.

Vlad desconhece o desfecho do fato. O que a família sempre lhe contou é que ninguém foi preso. “O crime ficou impune, apesar das testemunhas oculares e de estar amplamente divulgado na mídia quem eram os assassinos”, pondera. O pai de Vlad tinha apenas 9 anos na época do crime e foi um dos responsáveis por compartilhar a história de Jaime entre as gerações da família Calado.

Uma história atual

Stenka do Amaral não viveu a tempo de lançar o livro sobre o assassinato de seu pai (FOTO: Divulgação)

Na visão de Vlad, há uma importância política em relembrar a morte ocorrida há 70 anos. “Esse sistema que puxou o gatilho contra Jaime Calado é o mesmo que puxou contra Marielle, os guajajaras e as populações pretas e periféricas diariamente”, compara o neto do líder comunista. Por isso, essas figuras e temáticas permearam o evento de lançamento, no Rio de Janeiro, em novembro de 2019. “Acabou virando um evento fantástico, as pessoas ficaram emocionadas”, relembra.

Vlad pretende realizar em breve o lançamento do livro em Fortaleza. O publicitário enxerga na viagem a chance de ampliar a pesquisa de “Calado!”. “Quero ver outros desdobramentos. Estou doido para ir a Fortaleza. Li tanto sobre esse assunto. Acho que esse lançamento é um momento é muito apropriado para conhecer a cidade”, avalia ele, que, assim, poderá conferir de perto os cenários da história que ouviu por toda a vida.

Confira galeria com fotos do lançamento do livro “Calado!”:

Em novembro de 2019, um evento marcou o lançamento do livro “Calado!”, no Rio de Janeiro (FOTOS: Divulgação)

--

--

William Barros
William Barros

Cearense, repórter na Folha de S.Paulo. Criativo, curioso e interessado em contar boas histórias.