Por atender mulheres em situação de vulnerabilidade, o sigilo é parte essencial da rotina do projeto “O Direito de Sorrir” (FOTO: William Barros/Tribuna do Ceará)

O direito de sorrir

Projeto social já beneficiou pelo menos 80 mulheres, com tratamento odontológico para vítimas de violência doméstica

William Barros
William Barros
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20 min readApr 2, 2020

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Reportagem especial produzida em formato de hotsite para o portal Tribuna do Ceará em 2019. Ganhadora do 1º lugar na categoria “Webjornalismo” do 2º Prêmio ACM de Jornalismo, realizado pela Associação Cearense dos Magistrados (ACM).

Pacientes atendidas pelo projeto já sentem o resultado. Ouça o áudio!
(ARTE: Felipe Kayatt e Uhull Implementação)
No Complexo Odontológico da Unifametro, estudantes realizam atendimentos gratuitos (FOTO: William Barros/Tribuna do Ceará)

Outras Marias

Maria, como tantas outras mulheres. Da Vila Matilde, em São Paulo, como tantas outras mulheres. Vítima da violência doméstica, a personagem cantada por Elza Soares está entre nós: uma mãe, uma amiga, uma irmã ou até uma filha. ​No país que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), é o 5º que mais mata mulheres, Maria não é só da Vila Matilde.​ Por aqui, Maria é de todo o Brasil.

O Ceará também tem suas Marias. Da Messejana, do Meireles, do Quintino Cunha, do Dionísio Torres e, claro, da Penha. Já faz 13 anos que a cearense dá nome à lei nacional que combate a violência doméstica. E mesmo com os inúmeros artifícios que esse mecanismo oferece, as agressões persistem. São namorados, maridos, filhos e pais deixando marcas pelos corpos dessas Marias e tirando-lhes o sorriso do rosto.

E quem poderia devolver a expressão de alegria à face dessas mulheres? Foi pensando nisso que Odontologia e Direito se uniram, numa parceria entre o Centro Universitário Fametro (Unifametro) e o Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE). ​Às quintas-feiras, mulheres encaminhadas pelo TJCE são atendidas por estudantes do curso de Odontologia. ​Desde abril, ​pelo menos 80 pacientes já foram beneficiadas. ​O projeto não poderia ter outro nome: ​O Direito de Sorrir​.

Além das mulheres já atendidas, há pelo menos 30 na lista de espera. Estas últimas foram encaminhadas após o fechamento da parceria mais recente do projeto: a Casa da Mulher Brasileira (CMB). Assim, as pacientes passam a ser atendidas durante toda a semana e seus filhos ou dependentes também têm acesso ao projeto.

Para conhecer melhor essa iniciativa, o ​Tribuna do Ceará​ conversou com a equipe responsável. Entre sorrisos ao falar da nova fase e lágrimas ao relembrar o sofrimento passado, três das principais beneficiadas compartilharam suas histórias de vida. Com seus nomes reais preservados por segurança, as Marias descreveram os resultados que o tratamento odontológico as tem proporcionado e, acima de tudo, reafirmaram seu direito de voltar a sorrir.

Leia a reportagem completa abaixo e não deixe de conferir o podcast, ao final do texto!

Em meio aos atendimentos, não há como distinguir as pacientes encaminhadas pelo TJCE (FOTO: William Barros/Tribuna do Ceará)

Para devolver sorrisos

São 36 cabines enfileiradas. Em cada um daqueles espaços, aspirantes a dentistas atendem gratuitamente quem procura o Complexo Odontológico da Unifametro, no bairro Jacarecanga, em Fortaleza. Entre moradores da comunidade ao redor, funcionários da própria instituição e até mesmo outros estudantes do curso, misturam-se elas: as Marias atendidas pelo projeto interdisciplinar.

Por lá, ninguém será capaz de distinguí-las dos demais pacientes. Nem devem tentar.​ Faz parte do pacto firmado entre a faculdade e o tribunal que as mulheres encaminhadas pelo juizado sejam tratadas com discrição quanto à violência sofrida. ​“São cuidados do nosso código de ética profissional”, explica Fabíola Andrade, estudante que coordena o projeto desde seu início, há 6 meses.

Tanto ela quanto os outros alunos que realizam os atendimentos receberam preparação do TJCE para lidar com casos de violência doméstica. “Além de identificar lesões, precisamos conhecer sobre Lei Maria da Penha e medidas protetivas, porque ​o prontuário pode ser utilizado no processo​”, comenta Fabíola, que também é formada em Direito.

Fabíola cursa o 9º semestre de Odontologia e atendente no Complexo Odontológica da Unifametro (FOTO: William Barros/Tribuna do Ceará)

Fabíola já é “doutora”

Para as Marias, a aluna do 9º semestre também já colou grau em Odontologia. As participantes do projeto a chamam de “Doutora Fabíola”. Além de dentista, a cada visita semanal, a estudante acaba se tornando amiga das pacientes. “Elas têm meu número no Whatsapp, me mandam mensagem, conversam comigo, mandam fotos, me ligam”, explica a graduanda.

E se uma Maria falta ao atendimento marcado, é Fabíola quem precisa identificar o motivo. Por vezes, a jovem também toma para si a responsabilidade de encontrar uma solução para o problema que impede a chegada da paciente. “Muitas delas estão em condições financeiras desfavoráveis. Já tivemos, por exemplo, que custear a vinda de algumas delas, que têm dificuldade com relação ao transporte”, recorda.

Estudante ressalta o que tem aprendido com o projeto. Ouça o áudio!

Para a graduanda, ver o resultado do tratamento da primeira paciente foi um dos momentos mais gratificantes da sua trajetória no projeto. “A vida dela mudou completamente. Ela não tinha nem telefone. O contato com ela era bem difícil. Quando ela se olhou no espelho pela primeira vez, foi incrível. ​Ela deu um feedback muito positivo”, comemora Fabíola.

Fabíola exibe com orgulho o logotipo do projeto que coordena (FOTO: William Barros/Tribuna do Ceará)

Segundo ela, o programa tem promovido um atendimento “mais humano”. “Conseguimos dar um pouquinho mais da gente, dar um olhar diferente, nos solidarizar com elas. Gosto disso. Estou dispondo do meu tempo para ajudar outras pessoas”, avalia a “doutora”. Em contrapartida, Fabíola encontrou nas Marias ​um tema para o seu TCC: “O Direito de Sorrir”.

“Muitas das pacientes estão em condições financeiras desfavoráveis. Já tivemos, por exemplo, que custear a vinda de algumas delas, que têm dificuldade com relação ao transporte”.​​ — Fabíola Andrade, estudante de Odontologia na Unifametro

Palavras do criador

Coordenador relembra a criação do projeto. Ouça no áudio!

A criação do programa foi iniciativa de Paulo André Carvalho, cirurgião-dentista, professor e coordenador do curso de Odontologia da Unifametro. Para preencher a lacuna de projetos de extensão no centro universitário, ele apresentou a ideia ao Tribunal de Justiça do Ceará. Dali, surgiu o convênio, que tem contemplado diversos aspectos do processo de recuperação das vítimas.

“​A maior parte das agressões são na face​, principalmente mandíbula e nariz. Precisávamos também de um laudo técnico que atestasse isso. E precisavam de um suporte tanto no laudo quanto na recuperação da saúde e da estética dessas mulheres”, justifica Carvalho, que já atua há mais de 20 anos como cirurgião-dentista.

Paulo André Carvalho tem mais de 20 anos de carreira como cirurgião-dentista (FOTO: William Barros/Tribuna do Ceará)

Sigilo, saúde e confiança são elencados pelo docente como o tripé que norteia o trabalho desenvolvido no projeto. Para ele, os resultados aparecem quando as Marias deixam a inibição de lado e voltam a sorrir. “Quando a gente vê o primeiro sorriso da paciente, dizemos que agora está no ponto. É maravilhoso”, descreve.

O Direito de Sorrir também traz acréscimos para a formação dos alunos, como destaca o professor. “O ganho do estudante é saber criar empatia com quem está sendo atendido. Tem que saber conversar e ser humano. ​Esse aluno ganha 10 anos em 5 meses quando atende essas pacientes. ​Cresce emocionalmente, amadurece e se prepara para atender outros pacientes”, argumenta o coordenador.

Para Paulo, o aprendizado acontece principalmente ao lidar com as barreiras que envolvem o trajeto das Marias à Unifametro. Há pacientes que dependem financeiramente de seus agressores. Outras foram expulsas de casa ou tiveram que abandonar suas residências. ​“Temos que esperar o tempo da paciente. Precisamos esperar a mudança de vida dela”, atenta.

O coordenador acredita que os benefícios também são sentidos pelos alunos (FOTO: William Barros/Tribuna do Ceará)

Carvalho afirma que todos esses obstáculos lhe parecem pequenos diante dos resultados apresentados. “Estamos aprendendo a lidar com os problemas. Todo dia é um aprendizado. Mas os sorrisos que recebemos das pacientes foram mais importantes do que qualquer dificuldade”, pondera.

“Os sorrisos que recebemos das pacientes foram mais importantes do que qualquer dificuldade”.​ — Paulo André Carvalho, coordenador do Curso de Odontologia da Unifametro

(ROTEIRO: William Barros | IMAGENS: Carlos Brito | EDIÇÃO DE VÍDEO: Fabio Rabelo | ELENCO: Fernanda Nepomuceno, Hayanne Narlla e Flávia Bessa)
Maria de Fátima já sente a autoestima melhorar após sua passagem pelo projeto (FOTO: William Barros/Tribuna do Ceará)

Maria de Fátima

(*) A reportagem adota nomes fictícios para garantir a segurança das beneficiadas pelo projeto.

A injeção de autoestima da “doutora Fabíola” já surte efeito na vida de Maria de Fátima. A mulher, que há duas semanas nem saía de casa, retornava ao trabalho no dia em que conversou com o ​Tribuna do Ceará​. “Quando a gente passa por um processo desses, você quer morrer. ​Depois que conheci o projeto, voltei a sair de casa. ​Estou bem melhor”, garante.

Maria usa os cabelos para disfarçar uma lesão no rosto, que a impede de abrir completamente a boca. Atualmente, ela realiza fisioterapia para recuperar esse movimento. Com o avançar das sessões, a paciente deverá passar por procedimentos como extração de dentes, canal e limpeza. Essa dificuldade sentida hoje tem relação direta com a violência sofrida por parte do ex-marido.

Ofensas diárias, ameaças de morte e agressões físicas marcaram os 10 anos vividos ao lado daquele homem. Quando Maria optou pela separação, ele não aceitou. “Não vou te deixar, porque você é minha. Você assinou um papel perante o juiz. Se é casada comigo, então, é minha e de mais ninguém”, relembra a mulher, reproduzindo as falas do ex.

À época da agressão que marcou o rosto dela, o casal já estava separado. Após as recusas do homem em deixar a casa em que moravam, Maria fugiu com os filhos mais novos. Foi então que uma ida a um supermercado numa avenida movimentada da capital cearense se transformou em ​10 minutos de dor e sofrimento​.

“Quando a gente passa por um processo desses, você quer morrer. Depois que conheci o projeto, voltei a sair de casa. Estou bem melhor”. — ​Maria de Fátima, paciente atendida pelo projeto

Maria já realizou os primeiros exames e aguarda para poder começar, de fato, o tratamento (FOTO: William Barros/Tribuna do Ceará)

“Vou furar teu coração”

Fátima relembra a agressão que sofreu por parte do ex-marido. Ouça no áudio!

“Você vai ter uma surpresa muito grande”, recorda Maria, repetindo o conteúdo de uma mensagem de texto enviada pelo ex. E a surpresa se revelou quando a mulher atravessava a rua. “Senti só uma pessoa me empurrando. Quando eu vi, ele estava em cima de mim. Ele começou a me esfaquear e eu a lutar com ele​”, descreve Fátima.

Noutro momento, o agressor apontou o objeto cortante para a garganta da mulher. A faca, no entanto, atingiu o rosto dela. “Quando entrou, perfurou a minha bochecha e eu comecei a sangrar muito. Pensei que eu iria morrer”, relembra Maria. Em seguida, o alvo do agressor passou a ser o peito da ex-companheira. “Vou te matar agora. Vou furar teu coração”, repete as palavras dele.

O último golpe atingiu o braço da mulher. A agressão só foi interrompida por um socorrista do Samu, que passava pelo local e prestou atendimento primário à vítima. O ex-companheiro tentou fugir, mas acabou sendo cercado por outros homens. “Queriam linchar ele. Achavam que ele tinha me matado. Eu sangrava direto e só pensava nos meus filhos, que eu ia morrer”, relata Maria.

Desde então, o agressor está preso. ​Fátima jamais o reencontrou, mas ainda convive com o medo do que possa lhe acontecer.​ “Ele mora cinco casas depois da minha. Se ele se soltasse e voltasse para lá, eu teria que mudar toda a minha vida de novo. Fiquei traumatizada”, relata.

Não foi a primeira vez

Essa não foi a primeira vez que o homem tentou matá-la. Quase um ano antes, ela já havia passado pela mesma situação, mas acabou perdoando o pai das crianças. A mulher acredita que a falta de apoio da família contribuiu para que ela optasse por dar continuidade à relação. “Minha família acha que quem casa tem que ficar junto para o resto da vida. ​Apanhando ou não, ele era o meu marido​”, constata.

Maria afirma ter se arrependido de retomar o relacionamento com o agressor. “Peço que as mulheres nunca tentem voltar, porque pode acabar mal. Eu não era nem para estar viva. As mulheres que voltam com os maridos ou morrem ou ficam com sequelas. Se você vê um homem falando que lhe mataria por causa de ciúme, você tem que ter medo”, alerta.

Para ela, a diferença salarial também pode ter contribuído para o comportamento agressivo do então companheiro, já que, à época, Fátima ganhava mais do que o homem. “Quando ele viu que eu tinha uma condição financeira melhor, ele quis tirar minha vida. Acordava com ele pegando em mim, apertando minha garganta, dizendo que ia me matar. Ele sempre mencionava em dar tiro”, recorda a mãe de três crianças.

“Eu não era nem para estar viva. As mulheres que voltam com os maridos ou morrem ou ficam com sequelas. Se você vê um homem falando que lhe mataria por causa de ciúme, você tem que ter medo”. — Maria de Fátima, paciente atendida pelo projeto

Violência respinga nos filhos

É justamente com os filhos que Fátima mais se preocupa. Para evitar que os pequenos vejam o pai “com maus olhos”, a mãe omite a prisão do ex-marido. “Digo que ele foi para São Paulo. Uma hora eles vão ter que saber, mas tento não sujar a imagem dele. A menina pergunta direto por ele. O menino tem medo dele, pergunta se o papai morreu”, descreve a mulher.

Ela acredita que a violência do pai também respingou no comportamento do filho mais novo. “Meu filho pequeno estava indo no mesmo caminho, batia na própria irmã. Depois que parou de conviver com o pai, ele melhorou muito”, avalia Maria.

Começar de novo

Depois de ter sobrevivido a duas tentativas de homicídio e enfrentado anos seguidos de agressões, Maria afirma lidar agora com o preconceito da sociedade. “As pessoas viram a cara para mim. Dizem para eu retirar a queixa, que ele fez certo, porque eu não queria mais ele e arranjei outro namorado. Acham que, se estou namorando com outra pessoa agora, ele tem direito de me matar”, relata ela.

Segundo ela, o atual companheiro tem a ajudado nesse recomeço. Maria já está cheia de planos. “Quero reformar minha casa, deixar tudo novo, para esquecer, mudar. Quero dar uma educação melhor para os meus filhos, comprar um meio de transporte e crescer na minha vida. Meu maior sonho é fazer uma faculdade de Enfermagem”, aspira ela, que já voltou a sorrir e, claro, a sonhar.

Prontuário médico

Doutora Fabíola explica o tratamento que tem realizado com Maria. Ouça no áudio!
(ARTE: Felipe Kayatt e Uhull Implementação)
Lourdes foi agredida pelo próprio filho (FOTO: William Barros/Tribuna do Ceará)

Maria de Lourdes

(*) A reportagem adota nomes fictícios para garantir a segurança das beneficiadas pelo projeto.

Mesmo que seu rosto não tenha sido atingido, Maria de Lourdes aceitou o encaminhamento para o Complexo Odontológico da Unifametro. “Meu sonho era ajeitar meus dentes. ​Eu não ria para ninguém, mas agora começo a rir​”, revela a mulher, que já está na fase intermediária de seu tratamento.

Além da extração de dentes inferiores, a equipe do projeto já se prepara para fazer moldagem de uma prótese removível para Maria. O sonho de ganhar um novo sorriso vira realidade na vida dela depois do ápice de uma situação delicada: ​a agressão sofrida por Maria partiu do próprio filho​, a quem se refere como “meu menino”.

A mãe estima que o jovem a tenha agredido por 10 vezes. A situação mais violenta culminou numa tentativa de homicídio. “A primeira vez que ele tentou me matar foi dessa vez agora. Ele me bateu, depois começou a dar chutes. Por último, ele me jogou em cima da pia. Ele já cuspiu na minha cara. Na hora que ele ia me dar um murro, eu me abaixei”, recorda a mulher sobre as agressões sofridas

Lourdes relembra a agressão que sofreu por parte do filho. Ouça no áudio!

Incentivada pela filha mais velha, a mãe tomou a difícil decisão de denunciar o próprio filho à polícia. Depois de nove dias preso, o rapaz deixou a delegacia. “Eu e minha menina, com pena, pagamos advogado para soltar ele. Depois que ele saiu da prisão, começou a me agredir de novo. ​Deus me perdoe, mas maldita hora que eu tive pena dele.​ Só sobrou para mim”, arrepende-se Maria.

Desde então, a mulher deixou a casa onde morava e passou a residir com amigas. O filho, no entanto, continua no imóvel da família. Mesmo temerosa, a mãe faz visita ao jovem diariamente. “Tenho nojo de ir lá, mas vou para deixar coisas para ele, algum alimento. Da porta, eu volto. Levo bolacha, café, shampoo, gás, sabonete, cesta básica. Ajudo, mas ele não está nem aí”, lamenta.

“Depois que ele saiu da prisão, ele começou a me agredir de novo. Deus me perdoe, mas maldita hora que eu tive pena dele. Só sobrou para mim​”​ .— Maria de Lourdes, paciente atendida pelo projeto

Maria está numa fase intermediária de seu tratamento (FOTO: William Barros/Tribuna do Ceará)

Relação conturbada

Segundo ela, a relação ficou conturbada depois que o filho atingiu a maioridade e se tornou usuário de drogas. “Ele não era violento, foi depois disso. Ele era bom, trabalhava, me ajudava em tudo. A gente cria com tanto carinho, tanto amor e acontece isso mesmo”, lamenta.

Hoje, Maria enxerga no filho uma figura que lhe causa medo. Dormir em casa? Nem pensar. A mulher descarta a hipótese, temendo aquilo que o filho seja capaz de fazer contra ela. “​Não confio nele, de jeito nenhum​. Quando eu dormi lá, eu ficava com olho aberto. Não durmo lá”, assegura.

Por recomendação do TJCE, o jovem frequenta reuniões de um grupo de apoio. No entanto, ele exige a companhia da mãe. Assim, o trajeto até o local onde acontecemos encontros é marcado pela insegurança de Maria.

“Quando chega numa parte mais esquisita, ele vem chegando perto de mim, começa a dizer que ​vai me bater, me furar, me matar​. Eu começo a chorar e pedir forças a Deus”, descreve.

Maria afirma já saber como reagir no caso de uma nova agressão. “Na hora que ele me bater, eu chamo os homens e mando levar ele lá para a delegacia. Outras mulheres não vão atrás, mas eu vou de novo. Se bater, eu vou de novo, para ele saber o que é bom. ​É filho, mas tem que ir atrás, dar parte​”, constata a mãe.

“Na hora que ele me bater, eu chamo os homens e mando levar ele lá para a delegacia. Outras mulheres não vão atrás, mas eu vou de novo. É filho, mas tem que ir atrás, dar parte”​. — Maria de Lourdes, paciente atendida pelo projeto

Desesperança e desgaste psicológico

Maria não acredita na possibilidade de mudança do comportamento do filho. “Ele disse na frente dos advogados que ia me matar e que não se arrependia do que fez. Não muda, não”, avalia. Contudo, quando perguntada sobre quando pretende voltara trabalhar, responde: “Quando meu filho não me der mais trabalho”.

Visivelmente abalada, a mulher ressalta o desgaste psicológico que o conflito com o filho tem trazido para a sua vida. “​Estou me acabando. Não estou vivendo, não. Estou vegetando, por causa desse menino.​ Não sei se vou chegar em casa e encontrar ele morto. Tenho medo. Ele pode fazer ‘um arte’ com ele mesmo”, teme a mãe.

Para Maria, o que a tem “mantido em pé” é o apoio vindo de amigos, familiares e, claro, da “doutora”. “Meu namorado e meus amigos me ajudam. Ele me dá força. Também me dou muito bem com a Fabíola, que parece uma irmã, é toda simpática”, descreve, num dos raros momentos em que se dá a liberdade de voltar a sorrir.

Prontuário médico

Doutora Fabíola explica o tratamento que tem realizado com Maria. Ouça no áudio!
(ARTE: Felipe Kayatt e Uhull Implementação)
Maria sente dores de cabeça até hoje, em decorrência das agressões sofridas (FOTO: William Barros/Tribuna do Ceará)

Maria Iracema

(*) A reportagem adota nomes fictícios para garantir a segurança das beneficiadas pelo projeto.

Vaidosa, Maria Iracema não hesitou em aceitar o encaminhamento do Tribunal de Justiça para o Complexo Odontológico da Unifametro. Quando conversou com o Tribuna do Ceará​, ela havia passado apenas pelas consultas e exames iniciais, mas já sonhava com seu implante. “​Já sinto minha autoestima melhor. Tenho vergonha de não ter dentes. Se alguém fala, eu fico envergonhada​”, explica a mulher.

Durante cinco anos de relacionamento, Iracema já enfrentava agressões verbais. Segundo ela, o ex-companheiro foi o único homem que tentou impedi-la de trabalhar. Desgastada, a mulher optou pelo fim da relação. Depois de dois meses de separação, o homem cometeu a agressão mais grave.

Maria relembra a agressão que sofreu por parte do ex-companheiro. Ouça no áudio!

Era noite. O ex-companheiro pediu para ir à casa de Maria, com o pretexto de visitar o filho do casal. “Percebi que ele estava bêbado. Corri para a avenida em que eu moro. Ele me pegou pelo cabelo e ficou rodando no meio da pista. Deu vários socos na minha cabeça, fiquei com calombos”, relembra ela, que reclama até hoje de fortes dores. O agressor passou menos de 30 dias preso e foi solto.

“Já sinto minha autoestima melhor. Tenho vergonha de não ter dentes. Se alguém fala, eu fico envergonhada”​. — Maria Iracema, paciente atendida pelo projeto

Maria deverá passar pela extração de dentes danificados (FOTO: William Barros/Tribuna do Ceará)

Audiência culminou em amizade

Apesar do medo sentido por Maria, é depois da liberdade do ex-companheiro que nota-se a principal diferença da história dela com relação às demais.“​Conversamos com a juíza e agora somos amigos.​ Ele disse que isso foi um ensino, que aprendeu muitas coisas. O que eu ligar pedindo para o nosso menino, ele dá”, descreve a mulher.

Segundo Maria, os vizinhos não concordaram com a prisão do agressor. “Só sabe quem passa. Eles só viam a parte boa do que ele fazia. A parte ruim era só dentro de casa”, justifica Maria, que já voltou a sorrir e a trabalhar.

Prontuário médico

Doutora Fabíola explica o tratamento que tem realizado com Maria. Ouça no áudio!
(ARTE: Felipe Kayatt e Uhull Implementação)
Rosa Mendonça é a titular do juizado que atende mulheres vítimas de violência doméstica em Fortaleza (FOTO: William Barros/Tribuna do Ceará)

Sorrir é um direito

Se a Lei Maria da Penha completa 13 anos em vigor, Fátima Maria Rosa Mendonça está há pelo menos 12 à frente do Juizado de violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher da Comarca de Fortaleza. É ela quem encaminha as mulheres para os atendimentos realizados no projeto O Direito de Sorrir.

Juíza Rosa Mendonça comenta a importância do projeto. Ouça no áudio!

Depois de uma graduação em Biblioteconomia pela Universidade Federal do Ceará(UFC), Rosa estudou Direito na Universidade de Fortaleza (Unifor). Com quase três décadas de atuação na magistratura, ela afirma ter “caído de paraquedas” no juizado da qual é titular, mas garante: ​“Amo o que eu faço. Amo minha profissão. Tenho o privilégio de fazer o que gosto”​.

Ao ​Tribuna do Ceará​, Rosa falou sobre o projeto, fez um balanço do combate à violência doméstica no Ceará ao longo da última década e avaliou sua passagem pelo Tribunal de Justiça. Confira a entrevista abaixo.

Tribuna do Ceará​ — ​A Lei Maria da Penha já está em vigor há 13 anos. Desses, você atua há 12 no juizado. Que balanço você faz do combate à violência contra a mulher nesse período?

Rosa Mendonça​ — A gente vê muitos avanços. Muitas coisas ainda são necessárias de se fazer, naturalmente, mas a gente já progrediu muito. A gente vê que hoje a violência doméstica ganhou o espaço público, ganhou divulgação. A Lei Maria da Penha é super conhecida, quase 100% da população conhece essa lei. E isso faz com que a mulher se sinta encorajada. Ela (a mulher) já acredita mais nos mecanismos previstos na própria Lei Maria da Penha.

Tribuna​ — ​Segundo dados divulgados em 2018 pelo Fórum Brasileiro de Segurança, a cada dois minutos, uma mulher é vítima de violência doméstica no Brasil. Na sua visão, que características da nossa sociedade corroboram para esse dado?

Rosa​ — Quando a gente lida com essa matéria, a gente vê que a cultura é muito machista. Tem a questão da dominação, do homem achar que é o dono, o proprietário da mulher. É uma coisa que eu digo que é bíblica. No Brasil, quando agente começa a estudar a história, a gente vê que a mulher sempre foi reservada ao lar, que o homem era quem saía para trabalhar. Ela saía do domínio do pai e ia para o domínio do marido. Então, esse machismo é uma das grandes causas dessa violência contra a mulher.

Tribuna — Como é que a senhora avalia os resultados do projeto?

Rosa​ — Esse projeto é de fundamental importância na questão do enfrentamento à violência contra a mulher. Os locais onde os homens mais agridem são essa parte do rosto. É uma parte que é exposta, fica mais cara para a mulher, que é vaidosa. Em casos mais graves, atingem partes íntimas, mas são sempre locais muito importantes para a mulher. Essa parte da boca é uma dessas áreas.

Com esse projeto, o que eu vejo é a felicidade das mulheres. Quando a gente diz que vai encaminhar para um tratamento, elas quase nem acreditam que vão ter esse atendimento. Quando chegam lá e vêem, aí que elas não acreditam mesmo. É a sociedade se envolvendo também nesse tema, que é um problema de todos nós. Não é um problema só da Justiça. Uma faculdade dessa se envolver e se preocupar com isso, a gente só tem que agradecer e parabenizar.

A sala da juíza é decorada com os prêmios que ela recebe por sua atuação (FOTOS: William Barros e Arquivo pessoal de Rosa)

Tribuna​ — ​Além desse projeto, o que mais o TJ oferece para essas mulheres

Rosa​ — Tem um projeto muito interessante, que é o projeto Novo Caminhar. Nós inserimos a mulher vítima da violência doméstica no mercado de trabalho. Temos parcerias com empresas públicas e privadas. Elas atuam em serviços gerais, porque a mulher não necessita de nenhum curso ou capacitação. Geralmente, elas não têm nem ensino médio, só fundamental. E tudo isso é uma barreira para entrar no mercado de trabalho.

Temos também uma central de medidas protetivas, em que nós fazemos o acompanhamento de todas as medidas protetivas que são deferidas. Temos o Ronda Maria da Penha, que faz um acompanhamento das mulheres que têm medidas protetivas, nos casos mais graves, em que a Central acha necessário. Fazemos palestras regularmente em escolas públicas e privadas, empresas, postos de saúde, hospitais, faculdades. Distribuímos também o material informativo, guias próprios dos juizados.

Tribuna​ — ​Uma outra questão que também pudemos conversar com essas mulheres foi a respeito dos familiares e vizinhos. Muita gente assistiu às agressões e não fez nada, não denunciou ou ainda deu razão para o agressor. Por que a senhora achaque isso acontece?

Rosa​ — É a coisa do machismo, de não entender como funciona o machismo. Aí tem aquela história de briga de marido e mulher não se mete a colher. Acham que se tiver acontecendo briga, ligam, a polícia vem e, em seguida, a mulher volta a se relacionar com aquele homem. As pessoas costumam não entender isso. Até a mulher romper esse ciclo, é muito comum ela ir e voltar.

A mulher sempre acredita na mudança do comportamento do homem. Eles dizem que foi a droga, o estresse, o trabalho, prometem mudar o comportamento e a mulher, como quer manter a relação, por causa dos filhos, da família, por não trabalhar, acredita naquela mudança.

Ele muda por algum tempo, mas depois volta a se repetir. E quando a violência se repete, ela vem cada vez mais grave. As pessoas não entendem que essa volta é a aposta da mulher nessa mudança do comportamento. Dizem pejorativamente que ela é safada, sem vergonha. Na verdade, não é. Aquela mulher está inserida num contexto de violência. Até ela romper isso, demora um tempo. Tem mulheres que levam mais de 10 anos para romper esse ciclo. Não é uma questão fácil.

A deusa Têmis, que representa a Justiça, é motivo da decoração da sala da juíza Rosa Mendonça (FOTOS: William Barros/Tribuna do Ceará)

Tribuna​ — ​A denúncia é considerada uma das partes mais complicadas desse processo, não é mesmo?

Rosa​ — Sim. É muito difícil ela denunciar, porque está denunciando um conhecido, o pai do filho, um irmão, um pai, enfim, uma pessoa com quem ela tem uma relação íntima de afeto. Tem a vizinhança, a família, a vergonha, a esperança da mudança de comportamento, o pedido dos filhos. E, no frigir dos ovos, aquele homem não é ruim o tempo todo. Ele tem um período em que há alguma coisa boa e é nisso que a mulher se apega, vai permanecendo naquela violência.

Tribuna​ — ​Notamos nas conversas que essa violência respinga nos filhos…

Rosa​ — Os filhos também são atingidos. São crianças que apresentam problemas de convivência na escola ou dentro de casa, têm baixo rendimento escolar, vivem na barra da saia da mãe, têm medo do escuro, só saem se a mãe tiver junto, são agressivas, agridem irmãos, primos, vizinhos, são nervosos, ansiosos. É uma questão seríssima.

Tribuna​ — ​O que a senhora gostaria de deixar como legado, como marca, da sua passagem pelo TJ?

Rosa​ — O que eu queria deixar era a confiança da mulher nas instituições. Isso eu acho que seria um legado: a mulher confiar no poder judiciário e em todo o aparato de atendimento à vítima de violência. Mas o que a gente queria mesmo era que não fosse mais preciso de nada disso, e que a violência acabasse. Mas a gente sabe que esse processo ainda vai demorar, porque a violência é muito arraigada no comportamento.

Rosa já atua há 27 anos na magistratura (FOTO: William Barros/Tribuna do Ceará)

Tribuna​ — ​E o que a sociedade pode fazer para mudar isso?

Rosa​ — Na escola, tem que começar desde criança, os tios, avós, pais, a se policiar na questão da educação. E acabar o negócio de papéis, de que isso só pode ser feito por homem ou mulher. É uma questão de comportamento que a gente tem que trabalhar nas escolas, dentro de casa, na sociedade. A gente tem que se policiar para dar bons exemplos. A gente tem que lutar para que a igualdade entre homens e mulheres não venha a existir só daqui a 90 anos, como estudiosos dizem.

Ouça o podcast produzido para esta reportagem!

(ARTE: Felipe Kayatt e Uhull Implementação)

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William Barros
William Barros

Cearense, repórter na Folha de S.Paulo. Criativo, curioso e interessado em contar boas histórias.