Sy Gomes, artista visual, conversou com este repórter no jardim da Livraria Lamarca, em Fortaleza (Foto: William Barros)

ENTREVISTA

Questione-Sy

Artista visual fala de novo projeto no exterior e critica falta de espaço para pessoas trans na gestão cultural do Ceará

William Barros
William Barros
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9 min readMar 11, 2022

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Sy Gomes, 22, defende que travestis são como plantas. Começam a vida como duras sementes, embriões daquilo que serão ao brotar. Quando indesejadas, são arrancadas da terra — algumas mal chegam a criar raízes. E fora de seu habitat ideal, morrem. “Quais são os nutrientes que elas precisam para sobreviver? Eu quero aprender com elas”, diz a artista visual cearense.

De toda a flora, Sy elege a espécie com a qual mais se identifica: “um baobá gigantesco”. Só mesmo uma árvore tão robusta poderia sustentar em seus galhos, ao mesmo tempo, uma performer, uma produtora cultural, uma cantora e uma compositora. É Sy de Synestesya, de um só corpo artístico sendo fonte de múltiplas sensações.

Como um baobá não passa despercebido, mesmo no jardim da Livraria Lamarca, no bairro Benfica, em Fortaleza, Sy foi abordada por fãs durante esta entrevista. Nesses momentos, a árvore portentosa se mostrou retraída. “Não sei lidar muito bem com esse reconhecimento das pessoas”, admite.

O baobá Sy colhe os frutos do sucesso de trabalhos dos últimos três anos. Desde o fim da sua banda, o Projeto Noodles, em 2019, passou a se dedicar mais às artes visuais. Viu a cidade voltar os olhares para o seu “Outdoor Travesti”, em que anunciava: “Procura-sy travestis vivas no estado do Ceará”. De lá para cá, acumula exposições e editais de cultura.

Sy levou seu trabalho para o respeitado Salão de Abril e foi curadora de uma exposição no Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (UFC) — casa por onde é formada em História. Conquistou espaço na imprensa, mas se diz cansada de ouvir perguntas sobre o genocídio de pessoas LGBTQIAP+. “Meus trabalhos são sobre vida trans, vida travesti, mas são sobre vida, não são sobre morte”, sintetiza.

A performer revela à Revista Impressões que, para sua próxima grande apresentação, terá que deixar o bairro Coaçu, no Eusébio, Região Metropolitana de Fortaleza. “Vou performar em Berlim”, diz, animadíssima. Ao longo da entrevista, revê sua trajetória artística, reflete sobre a reação do público aos seus trabalhos e critica a falta de espaço para uma jovem travesti negra na gestão de equipamentos culturais cearenses.

Antes de posar para as lentes de Impressões, Sy pediu para retocar a maquiagem (Foto: William Barros)

Impressões: Você já se classificou muitas vezes em entrevistas como uma “aficcionada em criar mundos”. Que mundos são esses?

Sy: Acho que isso começou com a invenção de nomes para as eras da (banda) Noodles. Cada era tinha suas performatividades específicas. E isso começou a me fazer experimentar outras percepções de mundo mesmo. Enquanto Medusa, eu usava bota, era algo mais punk. Foi uma época em que eu escrevia muito sobre o quanto eu tava puta com quem olhava pra mim na rua. Essa coisa da Medusa olhar e petrificar. Então, eu tinha essa postura e a vivi por um tempo. Me digo aficcionada mesmo, de viciada, em ficcionalizar as coisas e mudar a mim mesma também.

Impressões: Falando em Noodles, li um artigo seu que dá a entender que o começo nas artes visuais tem relação com o fim da banda. É isso mesmo?

Sy: Quando a Noodles acabou, a gente não queria dizer que tinha acabado e por qual motivo tinha acabado. Decidimos não falar. A pergunta que eu fazia era: quando minha banda acabou? Tinha escrito isso em alguns lambes do “Panfletário Sy”. E foi aí que comecei a me intitular Sy e a entender aquilo como uma obra de artes visuais, que eu era uma performer.

Depois da banda, fui direto para um projeto com o DJ Perigo, que é outra coisa, outro ritmo. Mas ainda assim, era na noite. Essa época foi massa, mas eu não trocaria atualmente por uma casa no Eusébio. O mergulho na performance me trouxe um pouco de calma. Tanto é, que quando eu voltar pra música, acho que eu vou voltar com essa carga mais calma, e não com uma carga louca.

Outdoor Travesti, 2020 (Foto: Muriel Cruz)

Impressões: O “Outdoor Travesti”, desdobramento do “Panfletário Sy”, é sua obra de maior repercussão. Como foi o processo de construção dele?

Sy: Já estava previsto no “Panfletário”. Propus ele dentro de um edital da Aldir Blanc e eles financiaram o projeto. A (Ella) Monstra fez as artes, porque eu não tinha nem programa para fazer uma arte de nove metros. Convidei outras pessoas para outras partes, também para distribuir melhor o dinheiro. Uma pessoa fez as fotos, outra pessoa fez o drone.

Mas a maior parte da grana foi para o aluguel do outdoor. Descobri que é muito caro e só dura duas semanas. A gente comprou cinco outdoors. Os locais tinham uma relação de incomodar, por ser muito central, ou de se associar à presença travesti ou trans naquele local. Tinha um próximo a um local onde uma menina tinha sido morta, tinha um no Centro onde sempre tem pista. Queria ter colocado no interior também, mas não deu certo.

Foi meu primeiro trabalho de diálogo com a cidade que passou na TV. Foi quando começou o desafio de ter uma imagem mais pública do que eu já tinha.

Impressões: E como você recebeu toda a repercussão desse trabalho?

Sy: Eu não esperava [a repercussão]. Lembro disso ter me impactado muito. Foram muitos vídeos que recebi, muitas postagens, que às vezes nem falavam que o trabalho era meu. Matérias que saíram muito rápido e não conseguiram falar comigo antes. Tendo que falar com todo mundo, com repórteres e pessoas que não me conheciam mesmo. Foi uma coisa que exigiu muito de mim, tanto que só fui fazer outro trabalho em fevereiro de 2020. Nesse tempo todo, fiquei mal. O outdoor continua sendo um peso bem grande que carrego mesmo. Não só por conta do momento, mas também porque as pessoas se lembram.

Ioiô não vai votar, 2021 (Foto: Jorge Silvestre)

Impressões: Outro trabalho que fez sucesso foi o “Ioiô não vai votar”, em que você questiona a história dos fortalezenses terem eleito o Bode Ioiô, mas nunca terem eleito uma candidatura trans. Como foi a resposta do público?

Sy: Eles ficaram bem confusos, né? Os comentários eram muito loucos. Falavam que não entendiam o trabalho e deslegitimavam. Não diziam que eu tinha maculado o signo da cidade, não defendiam o patrimônio. Questionavam se aquilo era arte ou não. E o que mais pesa são esses comentários do senso comum sobre arte, sobre meu trabalho.

Construir uma arte travesti passa por muitas camadas do desentendimento. A gente não é entendida ou é mal entendida. Mas não me preocupo exatamente com isso, porque meu objetivo não é ser entendida. Meu objetivo é construir esse local de vida, esse local para mim e para as minhas.

Impressões: Você levou uma videoarte para o Salão de Abril, que é um espaço muito nobre para as artes visuais cearenses. Como foi a experiência de ocupar esse local?

Sy: Passei de primeira [no edital] e isso levou vários curadores de Fortaleza a olharem para o meu trabalho. Passei a figurar dentro das listas de curadoria de arte contemporânea. Mas eu não entendia por que eu tinha passado, se era uma videoarte tão simples.

A relação com a organização foi problemática. Foram soltando a grana em parcelas. Foi muito chato. Escrevi uma carta para eles, em que dizia que eles tinham falhado nisso, por não perceberem que temos necessidades maiores do que uma pessoa rica que está expondo.

Impressões: Recentemente, você esteve do outro lado, como curadora da mostra “Aquilo Acolá”, do Museu de Arte da UFC. Como foi isso?

Sy: Foi a primeira curadoria que assinei. Mas tive que fazer a produção toda sozinha. Não vou me colocar no lugar de curadora, porque não me vejo igual a essas pessoas que só assinam listas de artistas. Não estamos no mesmo lugar. As coisas que eu fiz pra essa exposição acontecer não são coisas que um curador da Unifor Plástica faz. Uma travesti, quando faz curadoria, tem que se virar em 400 mil.

Esse convite só chega para pessoas negras raramente. Você não pensa em outras pessoas, além de Diane Lima, Jota Mombaça, Musa Mattiuzzi. Quem mais assim? Qual é o universo de pessoas que está produzindo exposição todo ano em museus do Brasil e do mundo?

Terra Prometida, 2020 (Foto: Linga Acácio); Como fazer essa semente brotar, 2020 (Foto: Matheus Dias)

Impressões: E como tem sido essa experiência de viver de arte no Ceará?

Sy: É muito foda. Saí de Fortaleza, porque a gente não estava conseguindo pagar o aluguel mais. Vim [para Fortaleza] por causa da bolsa de mil reais do Porto Iracema das Artes. Em algum momento, essa assistência parou. Quando ocorreu o segundo lockdown no estado, entrei de novo nessa tristeza. Tive um trabalho que nem chegou a acontecer. Foi um período bem difícil.

Eu e Rodrigo (companheiro de Sy) tivemos que nos virar fazendo bolos. O que nos sustentava era a Larica, a confeitaria que abrimos. Já faz um mês que voltei a morar no Eusébio. A gente foi para uma casa lá dos meus pais, mas não moramos com eles. Tudo mudou muito.

Impressões: Falando em pais, sua mãe é muito presente nas suas redes sociais. Ela comenta tudo, né?

Sy: Minha mãe te pagou pra falar dela? (Risos)

Impressões: Fico pensando que ela é uma das suas maiores fãs.

Sy: Acho que sim. O Rodrigo também é bem meu fã e meu pai é o mais dedicado a construir minha obra comigo. Minha mãe é muito orgulhosa e aprendeu a amar esse trabalho. Amo minha mãezinha. Não tínhamos uma relação tão boa, de proximidade. Mas depois da minha transição, pós-acolhimento, ela virou a chave junto comigo e viramos amigas. Hoje, tenho uma grande amiga e fã.

Abordada por admiradora, Sy confessou que ainda não sabe lidar totalmente com o reconhecimento do público (Foto: William Barros)

Impressões: Voltando aos seus projetos, uma iniciativa muito importante, da qual você foi co-fundadora, é a “Lookinho”, que promovia essa troca de roupas entre pessoas trans e travestis. Será que além de artista, performer, cantora e tudo mais, dá para incluir algo como “ativista” no seu currículo?

Sy: Sim, com certeza. Mas eu nem gosto muito dessa palavra. Acho que ela já foi muito esgotada pela história, assim como “militante”. Acho que eu sou uma uma pessoa que deseja criar essa floresta, esses espaços de proteção e de coletividade, que deseja gerir melhor os centros culturais do Ceará, junto com as bichas que fazem aquilo. Mas o que a gente está se encaminhando é para o contrário disso, com a cultura no Ceará sendo cada vez mais gerida por iniciativa privada.

Impressões: E quais são suas próximas aventuras? O que está aprontando?

Tem uma aventura acadêmica. Eu me inscrevi agora pro mestrado em Artes. Vamos ver! Vai sair aí o resultado em breve. Mas a minha aventura de vida mesmo vai ser Berlim, para onde eu vou em março de 2022.

Impressões: Que incrível! O que vai fazer lá?

Sy: Vou performar em Berlim. Lá tem uma travesti que saiu do Brasil há quinze anos. O nome dela é Sani Est. Ela começou a trabalhar como educadora do Schwules Museum, que é o Museu Gay, o Museu Queer. O museu já existe há 45 anos. Muito foda, né?

A Sani é co-curadora de uma exposição, que é a “Transmigração”. A proposta é questionar o que travestis, pessoas trans e pessoas não binárias podem fazer por Berlim. Algumas pessoas são convidadas a performar e deixar um vestígio na exposição. E eu vou fazer isso. Já estou com ideias, mas também não vou contar. (Risos)

Em quase duas horas de conversa, Sy não escondeu a empolgação pelos novos projetos, mas fez mistério sobre alguns detalhes (Foto: William Barros)

Impressões: Para finalizar, fale um pouco de Sy…

Sy: Amo muito ser quem eu sou. Digo que eu sou um artista pirata, que habita a cidade, meio radical, que vai mexendo com as coisas. Falo sobre vida trans, vida travesti, mas é sobre vida, não é sobre morte.

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“Margem”, para o cearense, é “beira”, “beirinha”, “beirada”. É de quem vive “na beirada” que falamos nesta edição da Revista Impressões, produzida pela turma de 2021.2 da disciplina de Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará (UFC). Com nosso olhar voltado para as margens, descortinamos aqui as Outras Impressões. Descortinamos o Ceará que o olhar do colonizador não vê.

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William Barros
William Barros

Cearense, repórter na Folha de S.Paulo. Criativo, curioso e interessado em contar boas histórias.