“Gênero, uma categoria útil de análise histórica” de Joan Wallach Scott.

Ray Dias
xicarasepalavras
8 min readOct 12, 2020

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Uma resenha do artigo de Joan Scott, por Ray Dias.

O texto se inicia discutindo a importância de compreender as palavras e seus significados, pois como diz o autor, elas são carregadas de história. Iniciado sobre uma ótica de relação da França e das francesas com o termo “gênero” e outros meios de expressão acerca do que é ser “feminino”. É possível compreender logo no segundo parágrafo como o sentido “masculino” das coisas foi posto como algo que simplesmente é, e o feminino apenas como o “contrário de”. Logicamente, não seria diferente em uma sociedade paternalista, principalmente dado o tempo em que Scott traz as referências, por exemplo, ao citar a afirmativa de Gladstone (1878). Diante desses dados, Scott vai introduzir que as feministas, perceberam a necessidade de dar às palavras os moldes significativos coerentes às mudanças necessárias, ao que se fazia entender como “feminino”, conforme escrito no seu texto abaixo:

Gladstone fazia esta distinção em 1878: “Atenas não tinha nada do sexo além do gênero, nada da mulher além da forma”.3 Mais recentemente — demasiado recente para que pudesse entrar nos dicionários ou na Encyclopedia of Social Sciences — as feministas começaram a utilizar a palavra “gênero” mais seriamente, num sentido mais literal, como uma maneira de se referir à organização social da relação entre os sexos. A referência à gramática é ao mesmo tempo explícita e plena de possibilidades não-examinadas. (Scott, 1995. Trad).

Contudo, Scott afirma parecer que o termo gênero, como se aplica hoje entre o movimento feminista, é iniciado pelas americanas sob o objetivo de explicitar e esclarecer ainda mais que havia um “caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo” (p.3). Havia a necessidade entre essas mulheres de compreender os fenômenos presentes ao olhar do sexo biológico feminino, e das relações existentes da época entre homens e mulheres. Elas entenderam já em 1975 que era preciso buscar ao longo da história, a construção social que foi enfatizada entre os gêneros e a maneira como foi encarada a distinção, para compreender os fins atuais daquele tempo. Scott também afirma que “Gênero” era um termo até então proposto pelas cientistas que buscavam no fazer de suas pesquisas, justificar a importância do enfoque ao universo das mulheres, inclusive às expressões que utilizavam o gênero feminino para reforçar ou imprimir os paradigmas sociais. Em dado momento ele retrata que utilizando o termo “gênero” o discurso se tornava mais científico, generalizado e neutro quando se objetivava falar das mulheres na pesquisa.

Esta necessidade de compreender melhor as relações entre “corpos oprimidos socialmente”, — pois a marginalidade não se referia apenas ao “ser mulher”, mas também ao “ser mulher de onde e de qual raça” –, entre gênero e gramáticas impressas a eles e produção científica presente na época, parte das seguintes razões:

Em primeiro lugar, porque a proliferação de estudos de caso, na história das mulheres, parece exigir uma perspectiva sintética que possa explicar as continuidades e descontinuidades e dar conta das persistentes desigualdades, assim como de experiências sociais radicalmente diferentes. Em segundo lugar, porque a discrepância entre a alta qualidade dos trabalhos recentes de história das mulheres e seu status marginal em relação ao conjunto da disciplina (que pode ser avaliado pelos manuais, programas universitários e monografias) mostram os limites de abordagens descritivas que não questionam os conceitos disciplinares dominantes ou, ao menos, que não problematizam esses conceitos de modo a abalar seu poder e, talvez, a transformá-los. Para os/as historiadores/as das mulheres, não tem sido suficiente provar que as mulheres tiveram uma história, ou que as mulheres participaram das principais revoltas políticas da civilização ocidental.

Ou seja, a participação do corpo feminino ao longo da história era tão presente quanto o do corpo masculino na construção da sociedade, entretanto comprovar a história das mulheres não era suficiente para mudar as posições, ou apenas reconhecê-las como sujeito social equiparado ao homem. Afinal, a história das mulheres está entrelaçada a história do homem. Para estudar as mulheres era também importante se estudar os homens.

Por isso, sob diferentes panos de fundo era necessário conceber além das perguntas: “onde estão as mulheres, o que dizem das mulheres e como estão as mulheres?”, era necessário conceber o “por quê renega-se as mulheres?”.

Assim como no texto “Porque nunca falamos sobre os culpados” de Maria Celina Bodin, há um ponto chave que Scott descreve e aponta para o mesmo foco de Bodin. Houve ao longo da História, por parte dos homens o desamparo, desinteresse e omissão às questões femininas. Ora, sendo o homem (branco, europeu, elitizado) a figura central desta sociedade, das ações dele saíam as produções culturais e transformações dela, em grosso modo. Por isso, se às feministas era incumbida a tarefa de “comprovar a importância do novo olhar para a mulher”, a tutela patriarcal era se não inexistente, no mínimo neutra demais para dar força ao movimento. Tudo se trata então da correlação entre a teoria e a prática.

(“as mulheres tiveram uma história separada da dos homens, em conseqüência deixemos as feministas fazer a história das mulheres que não nos diz respeito”; ou “a história das mulheres diz respeito ao sexo e à família e deve ser feita separadamente da história política e econômica”). No que se refere à participação das mulheres na história, a reação foi, na melhor das hipóteses, um interesse mínimo (“minha compreensão da Revolução Francesa não muda por saber que as mulheres dela participaram”). O desafio colocado por essas reações é, em última análise, um desafio teórico. Isso exige uma análise não apenas da relação entre a experiência masculina e a experiência feminina no passado, mas também da conexão entre a história passada e a prática histórica presentes.

E há se de repensar a significação de gênero como termo empregado atualmente, se nós observarmos a maneira como ele vem sendo utilizado ao longo da História.

O que seria o conceito de gênero atualmente? É o mesmo do que descrevem as fontes de Scott? Podemos afirmar gênero apenas como a distinção entre “macho e fêmea”, “homem e mulher”, “feminino e masculino”?

Tem sido assim por um longo tempo e ainda é, mesmo em uma sociedade onde as relações de gênero e sexualidade são tão diversificadas e conectadas entre si. Percebemos que se atribui a elas novas terminologias como: “transgênero”, “transexualidade” e inclusive, já há referência à ausência de gênero ou ruptura com o conceito de gênero considerado “binário”, explícito na expressão “genderqueer”.

Enfim, são variadas as multiplicidades contemporâneas ao longo das significações dadas a esse termo “gênero”. No trecho abaixo, Scott já confirma existir uma intencionalidade na aplicação desta palavra desde que foi criada. E também é possível problematizarmos outras questões, como por exemplo, a diferenciação e relevância dada aos estudos de gênero, política e sociedade. Em tempos onde se encontram tão aflorados os debates entre esta tríade, certamente não é possível negar que existe uma relação de intenções e poderes causando estas tensões e que, torna-se válida a discussão e análise sobre.

Esses usos descritivos do termo “gênero” foram empregados pelos/as historiadores/as, na maioria dos casos, para delimitar um novo terreno. À medida que os/as historiadores/as sociais se voltavam para novos objetos de estudo, o gênero tornava relevante temas tais como mulheres, crianças, famílias e ideologias de gênero. Em outras palavras, esse uso de “gênero” refere-se apenas àquelas áreas, tanto estruturais quanto ideológicas, que envolvem as relações entre os sexos. Uma vez que, aparentemente, a guerra, a diplomacia e a alta política não têm a ver explicitamente com essas relações, o gênero parece não se aplicar a estes objetos, continuando, assim, a ser irrelevante para o pensamento dos/as historiadores/as preocupados/as com questões de política e poder.

Scott relacionará também, a reprodução da espécie como o elo que classificou o papel da mulher, do qual nos confrontamos ao estudar a história do corpo. E para isso, demonstra que dar à mulher seus significados essenciais e sujeitá-las a papéis que girem em torno do discurso reprodutivo, é tão arcaico quanto extintivo se pensarmos na possibilidade da tecnologia romper com esta função.

Observe que o texto original de Scott, escrito em 1986 já falava de uma “evolução” da qual hoje experimentamos. Embora a tecnologia ainda utilize o corpo feminino para desenvolver as “reproduções in-vitro” não nos soa absurdo pensar que este mesmo corpo, pode não ser necessário para “hospedar o feto” apenas. E mais do que isso, a essencialidade da sexualidade feminina, há tanto tratada pelo caráter maternal da reprodução, também pode desconfigurar esse sentido posto ao percebemos a ausência de maternidade na vida da mulher contemporânea que, hoje pode escolhê-la ou não.

Então se mantivermos este julgamento de que a mulher é essencial na sociedade apenas para desenvolver o papel da maternidade e reprodução, como caracterizá-la em tempos onde seus óvulos são armazenados para fecundações futuras que não partem do método “natural”? E como caracterizá-la dentro de uma nova configuração de mulheres que optam por rejeitar a maternidade? Sendo assim, as relações entre os conceitos de sexualidade, feminino, e reprodução, todas decorrem de modificações sociais e todas convergem para um único objeto: a mulher. Inclusive, a objetificação sexual da mulher é trazida por Scott, através da análise textual e gramatical, assim como ele iniciou a investigação neste texto.

“A objetificação sexual é o processo primário de sujeição das mulheres. Ela liga o ato com a palavra, a construção com a expressão, a percepção com a efetivação, o mito com a realidade. O homem fode a mulher; sujeito verbo objeto”. [Scott apud Catherine MacKinnon]

E é exatamente quando observamos os fenômenos sociais ao qual estamos imersos que percebemos que as relações de gênero também são ligantes à política, antropologia, e outras ciências sociais. Por isso, emitir a razão de um discurso pautado no significado primário dado ao termo é de certo modo, continuar propagando conceitos que podem não condizer com a sociedade atual.

É necessário discutir-se o que é o gênero, qual a etimologia da palavra, qual a intencionalidade sobre ela ao longo das épocas. E assim tornar se não possível, pelo menos mais franco, o exercício de compreensão dos papéis sociais que envolvem não só a mulher, mas também ao homem. Como também se torna possível enxergar que todos estes apontamentos estão aliançados: desde os regimes políticos pró e contra feminismo, até ao desenvolvimento etnocêntrico em conformidade ou reversão aos modos tradicionais de dada cultura.

[CITAÇÃO] SCOTT, Joan Wallach. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995, pp. 71–99. Revisão de Tomaz Tadeu da Silva a partir do original inglês (SCOTT, J. W.. Gender and the Politics of History. New York: Columbia University Press, 1988. PP. 28–50.), de artigo originalmente publicado em: Educação & Realidade, vol. 15, nº 2, jul./dez. 1990. Tradução da versão francesa (Les Cahiers du Grif, nº 37/38. Paris: Editions Tierce, 1988.) por Guacira Lopes Louro. Disponível em https://www.seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/viewFile/71721/40667

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Ray Dias
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Escritora de obras escondidas, fanfics e crônicas. Libriana, linda, prolixa, gente fina e doida. Tentando ser blogueira, criei e escrevo o Xícaras & Palavras.