Nem Milão Tem Moda Igual a Jequié

Ray Dias
xicarasepalavras
5 min readOct 22, 2020

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por Ray Dias, em Dezembro de 2017.

— Até mais tarde meu filho, mamãe te busca mais tarde!

Diz a mãe, para a eufórica criaturinha que adentra aos portões da escola em velocidade.

— Professora, já se passaram cinco meses desde o início das aulas, e onde está o material escolar que a prefeitura tem que dar?

A professora olha para os lados sorrindo falsamente, e recebendo outras criaturinhas recém-chegadas. Ela começa a gaguejar, prevendo o burburinho. Desde a pergunta emitida, já são quatro mães à sua frente. Uma com olhos curiosos, outra com cara de desdém, a terceira nem sabia que o filho tinha esse direito, e a quarta, lá estava impaciente por ter perguntado e ainda não ter sido respondida.

— Bem, mães… Chegou um material ontem à tarde e hoje distribuiremos para as crianças ao final das aulas.

As mães sorriem satisfeitas. A professora respira aliviada: “Por ora, consegui!”, ela pensa.
Meio-dia bate o sinal da saída e as mães fazem fila no portão.

— Nossa graças a Deus que o material chegou. Wesleyson Júnior já estava me perturbando pra comprar uma mochila nova! Sabem como eu consegui que ele esquecesse um pouco este assunto?

As mães negaram silenciosas.

— Eu disse a verdade pra ele: meu filho, eu compro a mochila nova do guardião do universo sei-lá-das-quantas, mas você vai ter que comer a mochila, ? Porque a mamãe não vai ter dinheiro para comprar comida.

As mães sorriram cúmplices àquela realidade.

— É… A gente até quer dar para eles as coisinhas, mas as coisas estão tão difíceis! Minha filha também queria um caderno da Peppa, e eu falei pra ela que quando fui comprar a Peppa havia ficado doente e pra não passar a gripe suína para ninguém, as pessoas pararam de vender o caderno. Não dá gente, o caderno custava 56 reais!

— Nossa senhora, o que tinha neste caderno? Folhas de ouro?

Hunf! Adesivos e glitter.

Respondeu a mãe ainda espantada com a realidade que a cercava.

— É, eles metem a mão nos preços quando se trata de criança. O José Cirilo não vai comigo quando faço as poucas compras escolares dele, porque senão eu deixo as calças lá.

O portão abre, as mães esticam o sorriso de alívio, a professora surge sem olhar nos olhos de ninguém empurrando as crianças sobre as mães.

“O que é isso?”, “Tá de brincadeira!”, “Vocês perderam a noção?” e muitas outras reclamações eram berradas.

A professora de um metro e sessenta de altura caiu para um metro. Curvava-se tanto atrás do portão que a diretora teve que intervir.

— Mães! Mães! Acalmem-se, por favor. A escola não tem culpa!

— Vocês não vão refazer o pedido pra prefeitura? — indagou a mãe do Wesleyson.

— A prefeitura enviou o material ontem, não tivemos tempo de recorrer às reclamações… Olhe, eu lamento, mas infelizmente acredito que eles não vão enviar novas mochilas.

— Mulher! Opá isso! — disse uma das mães que, retirando a mochila das costas do filho e abrindo-a, enfiou a criança lá dentro: — Meu filho pode carregar outra criança aqui dentro! Pra quê isso? É pra facilitar o sequestro dos pedófilos?

— Senhora, por favor…

— Não, ela tá certa diretora! Sem falar que aos dez anos eles já vão apresentar hérnias de disco mais graves do que as minhas!

— Pessoal, calma. Eu aconselho que aguardem a escola informar à prefeitura do erro…

— Uma ova! Vamos agora à prefeitura!

A mãe de Cirilo revoltada pegou a mão do filho e dando as costas à diretora indagou às outras mães:

— Quem concorda em ir até lá agora?!

Foi unânime.

— Vamos, cada um pega a sua tartaruguinha e vamos simbora! Alguém tira foto, por favor, porque protesto bom começa na internet!

Andaram as mães furiosas e as tartaruguinhas em direção à prefeitura de Jequié, enquanto a professora e diretora correram de volta à escola.
Na porta da prefeitura, o prefeito já saía para seu almoço ou encerrar do seu dia, quando se depara com um exército de mochileiros e mães afoitas.

— O senhor pode nos explicar que palhaçada de mochila é esta?

— O senhor não acha que eles são muito novos para pular de paraquedas?

— Eu esperava uma mochila escolar, e não uma barraca!

— É pro meu filho usar a mochila ou a mochila usar o meu filho?

Como numa resposta pronta o palanque fora montado e acompanhado de seu assessor o homem apenas respondeu:

— A mochila foi planejada para que eles a usem por mais tempo, assim servindo aos anos posteriores. E cabe aí, tudo o que eles vão necessitar.

— É muita falta de respeito com os direitos do povo! — disse a mãe da Maria Rosa.

— Mas vocês são exigentes demais, também! A prefeitura tem problemas mais sérios a tratar! Nada está bom para vocês!

— Exatamente prefeito, a impressão que fica é que nada está bom para nós. E por isso quando vocês não fazem nada, fazem o mínimo possível por nós!

— Ao se tratar dos nossos direitos é tudo nas coxas! Cinco meses desde que as aulas começaram pra chegar o material, e olha o que vocês oferecem! Mas o IPTU aparece lá em casa com cinco meses de antecedência!

O trem não prestou não! Eu só sei que as mães estavam lá a ponto de voar no prefeito, mas o redemoinho piorou quando o secretário de educação alegou que o tamanho das mochilas era indiferente, e que não acreditava que os pais de hoje eram tão imprestáveis, a ponto de não poder carregar nem a mochila de seus filhos. E ainda disse ser impossível confeccionar uma mochila para uma criança de creche.

— Juliana, como é que você sabe disso tudo?

— Uai Eugênia, eu sou motorista da prefeitura !

— E o que isso tem a ver?

— Eu que entreguei o material ontem à tarde na escola, ‘acha que eu não ia brotar lá cedinho pra ver o maltubedê?

— E como acabou isso?

— Acabou como todo mundo achou que ia acabar. As mães jogaram tudo na internet, e agora a creche não é mais creche. É um acampamento mirim!

— É eu vi foto na internet de criança dentro da mochila. Te contar, tem de tudo nessa cidade… Nem Milão tem moda igual a Jequié!

Autoria: Ray Dias.

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Ray Dias
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Escritora de obras escondidas, fanfics e crônicas. Libriana, linda, prolixa, gente fina e doida. Tentando ser blogueira, criei e escrevo o Xícaras & Palavras.