O dia em que ouvi um Capim

Como a arquiteta e paisagista, Mariana Siqueira, tem usado o paisagismo urbano para promover e preservar a biodiversidade do Cerrado brasileiro

Bruna Próspero Dani
transdisciplinar
7 min readJun 20, 2020

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“Vá para onde faz seu coração vibrar e lá você encontrará o que procura. Talvez, o caminho ainda não esteja todo feito, mas dê o primeiro passo que a trilha se abrirá.” Essa frase dita ao sete ventos por aí pode parecer muito clichê, mas a prática, neste caso, revelou que a teoria está certa: busque viagens, cursos, imersões, até festas que estejam ressoando com você e assim um caminho próspero, com belas conexões e de conhecimentos se desenrolará.

Decidi começar esse texto com essa pequena introdução para lembrar como conheci a Mariana Siqueira, a arquiteta e paisagista que encontrei durante uma imersão em que eu decidira ir apenas por ouvir um chamado interno muito forte.

E também porque nas linhas que seguem esse texto, trago histórias de um lugar que sempre me atrai magneticamente pelo chakra cardíaco: o Cerrado brasileiro.

A Mari me chamou a atenção durante uma das vivências propostas pelo Ádrian durante a imersão chamada “Conselho de Todos os Seres” (a ideia dessa atividade é que cada participante encarne o papel de um ser da floresta, tomando distanciamento da identidade humana, e assim faça um pedido, um desabafo, enfim, mostre seu sentimentos perante os outros seres ali presentes).

Nesse conselho apareceu Leão, Borboleta, Palmeira, Árvore, Anemona…. E Mariana escolheu representar as plantas rasteiras do Cerrado. Ela escolheu ser capim.

E eu, que sou apaixonada por essa vegetação tão charmosa, tratei de prestar muita atenção no que aquele capim falava:

“Sabe, gente… O interesse pela conservação da biodiversidade tem aumentado — ainda bem! — Mas acho que é importante a gente fazer um refinamento desse olhar em relação ao verde. Natureza vai muito além de grandes árvores e florestas. Os ecossistemas brasileiros são mais do que estamos acostumados a pensar. Eu, capim, estou sendo desvalorizado no meu habitat natural e isso causa um enorme impacto do ponto de vista ecológico. Posso não ser tão vistoso assim, mas tenho muito valor, viu.”

Nesse momento fiz uma autorreflexão e te convido a fazê-la também: qual a primeira imagem que lhe vem à cabeça quando pensa sobre “paisagens brasileiras”? Se você também pensou em matas e praias você não está sozinho. Os ecossistemas abertos e não florestais das terras tupiniquins não têm lá muita representatividade cultural no Brasil.

Aquele capim tinha muito a falar, então fui conversar com a Mariana para entender mais a fundo o que aquela planta rasteira pedia. Entendi que nós, brasileiros, temos uma auto-imagem muito florestal, como se as paisagens naturais do país se resumissem basicamente a florestas e praias. E claro que temos uma rica biodiversidade em florestas e lindas praias, mas somos mais que isso. E precisamos lembrar (e saber) disso.

Quando os colonizadores chegaram por aqui, 40% das terras não eram cobertas por florestas, mas por savanas e campos. Ou seja, quase metade do território.

"Seus risonhos lindos campos têm mais flores ".

Já diria o hino.

O Cerrado é considerado uma Savana e cobria originalmente 25% do território nacional. Agora vamos a outro exercício: Quando você pensa na palavra “Savana” o que lhe vem a mente? Paisagens Africanas? Sim, essa formação vegetal aparece no continente africano, mas também ocorre em todos os continentes.

Essa informação é surpresa até para os mais entendidos da área. Quando Mariana se mudou de Minas Gerais para Brasília (aposto que também guiada por um sussurro interno do coração) ela se surpreendeu ao saber que Cerrado era um tipo de Savana, mesmo trabalhando com paisagismo há mais de 07 anos e mesmo tendo crescido entre capins e árvores retorcidas.

Ela refletiu sobre seu próprio desconhecimento e a necessidade de criarmos um olhar que contemple a variedade de paisagens que fazem parte do Brasil, não ficando restritos a ideia de uma imagem florestal.

Tomando conhecimento dessas novas informações o desejo de trabalhar a favor da representatividade desse bioma floresceu muito mais rápido que o tempo da flor do Cerrado.

A importância da conservação do Cerrado

Antes de continuar a história da Mariana, abro um parênteses para falar sobre a história do Cerrado. Claramente faço o resumo do resumo do resumo. Mas ao final do texto coloquei algumas referências para quem se interessar pelo assunto.

O primeiro ponto que preciso ressaltar é que só por alguma coisa existir ela já tem um valor intrínseco e deve ser respeitada e conservada. A existência de toda paisagem, seres animais e vegetais é um direito inato.

Mas, além do respeito óbvio que coloquei acima, é importante lembrar que o Cerrado é a savana com a maior riqueza em biodiversidade do planeta e funciona como a caixa d’água do Brasil.

Através dessas paisagens abertas, com vegetações de raízes profundas e adaptadas a seca que surgem as nascentes das três principais bacias hidrográficas do País. (Para entender mais, recomendo o documentário Ser Tão Velho Cerrado).

Além disso, segundo a WWF-Brasil, "o bioma tem mais de 200 espécies de plantas medicinais e de 400 outros tipos vegetais que podem ser utilizadas tanto de forma sustentável na recuperação de solos degradados quanto para alimentação de animais e seres humanos".

Mas preciso trazer uma péssima notícia: essa é a paisagem desmatada com maior velocidade no Brasil. Já perdeu mais da metade da área original, e se continuarmos assim, o bioma que representa a nossa "caixa d'agua" vai desaparecer.

E, como sabemos, sem água na caixa d'agua, a torneira seca… Pois é, aquela súplica do capim, não era à toa…

O papel do paisagismo urbano na preservação e representação do bioma

A boa notícia é que, apesar da destruição massiva, existem também muitas pessoas e iniciativas atuando para que esse quadro se reverta. Cada um expressando suas vozes com seus dons e ferramentas.

A voz da Mariana veio através dos jardins.

"Ao me mudar para Brasília e abrir meu escritório de arquitetura da paisagem, prometi para uma cliente que faríamos jardins com as ervas e os arbustos nativos do Cerrado, antes de descobrir que isso “era impossível”. Depois de ouvir muitas negativas a respeito da possibilidade de cultivo dessas plantas, minha sorte começou a mudar ao conhecer ecólogos que trabalham com restauração ecológica do Cerrado no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros.”

Foi dessas inquietações, vontades e encontros que nasceu o projeto Jardins de Cerrado que visa criar manifestações paisagísticas do bioma, manifestando seus valores estéticos e ecológicos.

Como todo projeto que nasce da alma se conecta rapidamente a outras almas que anseiam pelo mesmo ideal, hoje — cerca de 04 anos depois do ponta pé inicial — o Jardins de Cerrado conta com a ajuda de muitas pessoas que tinham essa mesma vontade. Juntos eles já fizeram e fazem:

  • expedições em busca de plantas com potencial paisagístico;
  • um pequeno viveiro experimental onde cultivam, a partir de sementes, dezenas de espécies de plantas nativas;
  • coleta de amostras para identificação botânica e depósito em herbário;
  • experimentos científicos e de paisagismo.

"O paisagismo é uma ferramenta estratégica para promover a biodiversidade. É um meio e não o fim."

Esse projeto tocou o coração de muitas pessoas e Mariana se descobriu além de paisagista, uma educadora. Em uma de suas palestras, cheia de emoção e fotos bonitas, ela comoveu especialmente a cineasta Dani Azul, que resolveu contar a história do projeto através de um documentário.

Com a roteirista Renata Diniz, tiveram a ideia de que o filme registrasse o desafio de fazer um jardim de Cerrado. E para ser mais emblemático ainda, decidiram que o jardim seria plantado em um balão de Brasília.

Os balões (como são chamadas as rotatórias de Brasília) geralmente são repletos de plantas exóticas, ou seja, aquelas que não são nativas da região, que demandam muita modificação do solo, irrigação e uma estrutura enorme para fazer florescer algo que não é natural daquele lugar.

Vemos aqui mais um meio estratégico para promover representantividade vegetal da região. Contar a história desses jardins através do documentário Jardim Piloto — O Filme gera reflexões sobre a importância de utilizar os espaços urbanos na conservação da biodiversidade.

Segundo Mariana, fazer jardins com plantas nativas têm uma série de vantagens: não demandam excessivas práticas de alteração de solo e de irrigação e dão suporte à fauna urbana — de pássaros a insetos polinizadores.

Eu também enxergo os jardins como uma forma de "artivismo" o ato de sensibilizar e falar de uma causa através da arte.

Como a própria Mariana diz em seu site: "a grande importância de fazer jardins com plantas nativas está em apresentar as qualidades estéticas e ecológicas dos biomas naturais, e, com isso, ajudar a criar laços afetivos entre humanos urbanos e Natureza. Se não conhecermos nossa savana, que interesse teremos em cuidar dela? Que os jardins nativos possam ajudar a fazer florescer o carinho pelo Cerrado e o desejo de cuidar dele."

É ou não é ARTE? Faço dos votos daquele capim falante os meus. Que floresçam o cuidado e o carinho pelo Cerrado e por todos os biomas e seres.

(E que a gente consiga escutar mais capins, árvores e águas por aí).

Mariana Siqueira. Ou o capim que falou comigo.

❤ Para conhecer mais sobre o trabalho da Mariana Siqueira: https://www.jardinsdecerrado.com

❤ Para ajudar o 1º Jardim de Cerrado em um balão de Brasília acontecer: https://www.vakinha.com.br/vaquinha/manutencao-do-1-jardim-de-cerrado-em-um-balao-de-brasilia

❤ Deixo também a recomendação do documentário “Ser Tão Velho Cerrado”, que trata sobre o impacto ambiental e social que o Cerrado tem sofrido há anos. Disponível na Netflix : https://www.netflix.com/title/81038976

❤Para ouvir o Cerrado através do artista Thomaz Ayê: Semente D'agua.

❤❤❤ E para se apaixonar de vez pelos Cerrados Brasileiros: https://cerrados.org.br/ ❤ ❤ ❤

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