Yan Boechat
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8 min readJun 8, 2014

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Um favela dentro do maior Porto da América Latina

O dia-a-dia das 10 mil pessoas que vivem na comunidade encravada dentro do Porto de Santos, entre terminais de exportação de soja, suco de laranja e navios

Yan Boechat — textos e fotos

Matéria originalmente publicada no Portal iG em fevereiro de 2012

Quase todo dia por volta das nove horas da noite a dona de casa Maria de Lourdes Antunes realiza uma espécie de ritual pré-novelístico. Momentos antes de começar o mais nobre dos folhetins televisivos da Rede Globo, Maria de Lourdes para o que estiver fazendo para ir ao quintal. Chega bem perto da cerca de madeira que marca os limites de sua acanhada propriedade, fica na ponta dos pés, estica a cabeça e busca no horizonte o sinal de que algum grande navio se aproxima. Se as luzes dos imensos cargueiros que levam as commodities brasileiras mundo afora estiverem à vista, é certeza de que não poderá se esbaldar de rir com a atuação do ator Marcelo Serrado na pele do mordomo Crô. “Não sei porque, mas quando os navios estão estacionando aqui na frente de casa a TV vira um chuvisco só, não dá pra ver nada, e eu perco o Crô, é embaçado”, conta ela.

Para Maria de Lourdes, navio estacionado na porta de casa está longe de ser uma figura de linguagem. É que para ela e outras quase 6 mil pessoas que moram numa favela encravada no meio do Porto de Santos, trata-se da descrição literal do que ocorre quando um imenso graneleiro atraca em um píer, distante menos de 50 metros de suas janelas. Obrigados lidar com as particularidades de se viver dentro do maior terminal marítimo da América Latina, os moradores da favela Sítio Conceiçãozinha se acostumaram com uma série de exóticos eventos que só ocorrem por lá. Ter o sinal da televisão afetado pelos poderosos sistemas de navegação dos mais de 5,7 mil navios que atracam todos os anos no Porto de Santos é apenas um dos mais simples deles.

As crianças da Conceiçãozinha não se importam com as águas sujas do canal

Vista do alto, mais especificamente pelas lentes do satélite que abastece o sistema de mapas do Google, é fácil entender porque a favela do Sítio Conceiçãozinha é uma aberração típica da mal ajambrada infraestrutura brasileira. Nascida como uma vila de pescadores e sitiantes na virada do século passado, a área começou a ser ocupada por migrantes ainda na década de 60. Nos anos 70, o Porto de Santos foi se expandindo para o outro lado da margem, no Guarujá — onde está a favela — sem que houvesse qualquer preocupação com aquela população. Terminais de carga foram construídos, píeres fincados a poucos metros de distância das casas, e empresas foram se estabelecendo. Logo, mais pessoas vieram e o que era uma vila bucólica transformou-se, a partir dos anos 80, num aglomerado de barracos, palafitas e vielas estreitas.

Muitos desses migrantes aproveitam o ambiente tão atípico para ganhar dinheiro. Com navios do mundo todo atracados a poucos metros da margem, um intenso e curioso comércio entre os moradores e os marinheiros floresceu. Por meio de baldinhos presos a cordas que descem do deque dos navios, uma gama variada de produtos é oferecida aos visitantes: galinhas — vivas — a US$ 5, bananas por latas de Coca-Cola e maconha e cocaína para navegantes em busca de diversão. Até cachorros, dizem alguns moradores, foram vendidos para coreanos, saudosos de uma suposta comida caseira. “A gente achava que era pra eles criarem, mas depois disseram que eles fizeram um churrasco com o coitado”, diz Elisabete Santos, que anda desconfiada do carinho repentino que alguns vizinhos desenvolveram pelos cães da rua.

https://www.youtube.com/watch?v=UnIx9HRNNoc

Anselmo Rodrigues, sergipano de 36 anos que há 20 mora na Conceiçãozinha, não vende nada para os marinheiros. Mas é um dos moradores que espera ansioso a chegada dos imensos navios que aportam em frente a sua casa. “Só gosto daqueles que carregam soja”, diz ele, fazendo questão de frisar que, ao contrário do que dizem os amigos, não fica brabo quando não pode ver a novela por conta das interferências.

A razão por seu apreço pelos graneleiros é econômica. “Toda vez que está carregando soja uns grãozinhos escapam e caem na água”, diz. “Aí, os peixes sobem pra comer, a gente bate a tarrafa e pega muita coisa”. Em dia de carregamento de soja, Anselmo consegue pescar até 15 quilos de robalos, bagres e tainhas, “Em dia que não tem navio, é no máximo 5 quilos”.

O pescador Anselmo Rodrigues aproveita a soja que cai dos navios na hora do embarque para pescar

Hoje, a Conceiçãozinha é uma ilha cercada de porto. À frente da favela tem o canal, por onde diariamente passam em média 15 navios de grande porte. Atrás, a única porta de entrada da comunidade é cortada pela ferrovia que abastece o porto. De um lado, a Cutrale tem seu principal terminal de embarque de suco de laranja do País. Do outro, a Cargill e a Louis Dreyfus possuem um imenso terminal, cujo píer de atracação fica em frente à favela, para embarque de commodities agrícolas, como soja, açúcar e milho. “Fomos engolidos pelo porto e agora ele quer nos vomitar”, diz Newton Rafael Gonçalves, de 64 anos, que nasceu e viveu toda sua vida ali.

Na Companhia Docas de São Paulo (Codesp), a empresa federal responsável por administrar o Porto de Santos, o Sítio Conceiçãozinha já é passado. Nos mapas usados para mostrar a evolução do porto, a favela se transformou num polígono pintado de roxo. Ali, diz a Codesp, será construído um terminal de contêineres, que deve consumir — com duas outras obras menores — R$ 1,76 bilhão em investimento. “É uma situação complexa mas, com o crescimento que o Porto de Santos está vivendo, não existe a menor possibilidade de aquela comunidade continuar ali”, diz Renato Barco, diretor de planejamento estratégico e controle da Codesp.

Nos últimos 10 anos, Santos dobrou o volume de carga movimentada em seus terminais. Em 2001, eram 48 milhões de toneladas. No ano passado, foram 97 milhões. Como efeito, o porto reforçou sua posição de mais importante terminal marítimo do país. Hoje, 25% de tudo que é importado e exportado pelo Brasil passam por ali. É um volume semelhante à soma dos outros quatro principais portos do país: Vitória (ES), Paranaguá (PR), Itaguaí (RJ) e Rio Grande (RS). Hoje, são embarcados em seus terminais 95% do suco de laranja, 84% da carne bovina e 70% do café exportados pelo Brasil.

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Agora, Santos prepara-se para um novo salto. Pelas estimativas da Codesp, em pouco mais de 10 anos o porto vai novamente dobrar o volume de cargas movimentadas. A companhia acredita que saltará dos cerca de 100 milhões de toneladas esperados para este ano para 230 milhões de toneladas, em 2024. Com números como esse, a Conceiçãozinha, que nunca recebeu muita atenção nem da Codesp, nem das empresas que estão instaladas ali ou mesmo da União, a dona das terras, entrou como item prioritário na pauta do Porto de Santos.

Navios, água suja e terminais de exportação não impedem que os rapazes da Conceiçãozinha se divirtam jogando futebol na parte rasa do canal

Por meio do Ministério das Cidades, a prefeitura do Guarujá recebeu recursos para construir um conjunto habitacional para o qual cerca de 1 mil das 1,6 mil famílias que moram ali seriam levadas. As obras já estão em andamento e a estimativa da prefeitura é de que até agosto de 2013 todas as pequenas casas de 45 metros quadrados divididos em três pavimentos estejam concluídas. “Nossa responsabilidade é retirar apenas as famílias que estão em situação mais precária, que vivem em palafitas ou barracos”, diz Carlos Alberto Soares de Souza, diretor de infraestrutura habitacional da prefeitura do Guarujá. “O restante das famílias terá de ser indenizada pela Codesp, é responsabilidade deles”. A Codesp, por sua vez, não se pronuncia sobre o assunto.

Lucas exibe orgulhoso a foto do pai com o peixe pescado em frente a sua casa na Conceiçãozinha

Enquanto os governos federal e municipal não afinam o discurso, os moradores da Conceiçãozinha dividem-se sobre o que é melhor para a favela. Uma parte dos moradores, formada basicamente por aqueles que estão ali há algumas décadas, opõem-se radicalmente à ideia de sair dali. Newton Gonçalves é um dos mais ferrenhos defensores da permanência. “Isso aqui era um paraíso, não havia sujeira, não havia poluição”, diz ele, quase melancólico. “Eu quero morrer e se possível ser enterrado aqui, não saio por nada”, diz ele, petista de carteirinha que já foi candidato a vereador por duas vezes. Newton faz parte de uma associação de moradores, quase todos instalados ali há mais de 20 anos, todos filiados ao PT e dispostos a continuar naquele pedaço de terra encravado dentro do Porto. “Os nordestinos que chegaram depois até podem querer ir embora, mas nós não queremos ir”, diz Elimar Moreira, outro integrante da associação de moradores.

Além da poluição do canal, sujeira toma conta das margens da favela

Silvana Maria dos Santos não é nordestina. Nasceu ali mesmo, na favela da Conceiçãozinha há 40 anos. Mas quer ir embora, e o mais breve possível. “Aqui é ruim demais”, diz ela, enquanto amamenta o segundo filho, sentada num banquinho de madeira, numa das vielas da favela. “Quando estão embarcando a soja, dependendo do vento, o farelo vem todo para cá, fica tudo branco, é um pó que não sai nunca, até no cabelo entra”, diz ela. O mesmo problema acontece com o açúcar, que vai para os porões dos navios a granel e, com o vento, espalha-se pela favela. “A pele da gente fica grudando e a roupa precisa lavar três, quatro vezes para sair a gosma”. Problemas como esses são comuns. Como também crianças doentes após semanas nadando e mergulhando nas águas sujas do canal, que recebe 100% do esgoto da favela.

As águas que banham a favela e por onde passam os navios é contaminada por metais pesados, como mercúrio, cobre, zinco, ascarel, níquel e outros itens potencialmente cancerígenos. Mas, numa tarde quente de verão, não há promessa de doença futura que faça com que as crianças da Conceiçãozinha deixem de cair nas águas escuras do canal. É ali, entre navios, píeres e farelo de soja que a criançada da favela passa a maior parte do tempo no verão. Jogam bola na parte rasa do canal, nadam até os cargueiros atracados para mergulhar do leme e chegam até a usar pranchas de surfe para aproveitar as marolas provocadas pelos enormes navios que passam pelo canal. “Aqui é o melhor lugar do mundo, não quero nunca sair daqui”, diz Lucas Gibrant Vieira que, aos 13 anos, sonha em ser jogador de futebol. Mesmo com tantos problemas a sua volta, Lucas só tem uma reclamação a fazer da Conceiçãozinha. “O problema é a TV. Se ela não saísse do ar bem na hora do futebol, aqui ia ser perfeito.”

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