Bad Bunny — YHLQMDLG

Yo Hago Lo Que Me Da La Gana é uma epopeia reggaeton-esca

Jorge Fofano Junior
You! Me! Dancing!
3 min readJun 3, 2020

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YHLQMDLG

Bad Bunny

Lançamento: 28/Fev/2020
Ouça: “Safaera, “Hablamos Mañana” e “A Tu Merced”
Nota: 9.0
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É impressionante perceber a escala de sucesso comercial que o reggaeton atingiu nesses últimos anos. Só “Despacito” possui quase a população do planeta em visualizações no YouTube, em uma evidência clara do frenesi latino-americano que contagiou não só a música, mas o mundo do entretenimento. Se por um lado, o reggaeton é o grande difusor de elementos e temas da cultura da “América esquecida”, por outro, a excessiva comercialização do gênero, associada a padrões heteronormativos e ideais de consumo tipicamente estadunidenses, têm suscitado críticas com relação à presença ostensiva de temas misóginos nas letras e comentários homofóbicos por parte de alguns artistas mais proeminentes do gênero. Sabendo que tabus existem para serem quebrados, Bad ‘Benedito’ Bunny se propõe a ser o rebelde de primeira hora contra os vícios do reggaeton atual. Para isso, YHLQMDLG servirá de manifesto. Um daqueles de tirar o fôlego.

Yo Hago Lo Que Me Dá La Gana quase não possui falhas, entregando uma experiência delirante. A produção do disco é impecável e não há música em que as camadas exploradas não estejam derramando pelo alto falante. E por falar em camadas, o plural aqui é bem servido: são texturas, batidas e ritmos muito bem amarrados que incorporam ao esqueleto do reggaeton um acabamento incontestadamente autêntico; em 20 faixas, YHLQMDLG puxa deliciosamente o dembow riddim (“La Dificil”), gasta com muita propriedade no trap (“Puesta Pa’ Guerrial”), senta a mão na guitarra (“Hablamos Mañana”), traz bossa-nova numa base eletrônica 8bit (“Si Veo A Tu Mamá”), dá voltas e reduz a pó o arroz-com-feijão do reggaeton (“Safaera”). E, por mais incrível que pareça — e é bastante incrível — todas os ingredientes dessa culinária se encaixam com maestria.

O disco se mantém em diálogo com referências passadas, prestando homenagem ao reggaeton de marquesina, ao mesmo tempo que inventa, retorce e aponta para um caminho novo. Evidentemente, a originalidade do álbum induz uma experiência auditiva intensa, festiva e cheia de surpresas. Quando você menos esperar, vai estar perreando no quarto.

E por falar em perrear, não dá para esquecer “Yo Perreo Sola”, que tem tudo para virar um lema de protesto não só dentro do reggaeton, mas também fora dele. A música, que ganha (muitas) cores no clipe — no qual Bad Bunny faz o papel de três drag queens — é posta a partir da perspectiva de uma mulher que está dançando e se divertindo, tripudiando da pretensão misógina de que ela precise da autorização ou companhia de um homem para estar naquele espaço. Em três minutos, Bunny deixa uma mensagem explícita contra a masculinidade tóxica, o assédio sexual e a transfobia que mancham muitos cenários do gênero musical.

Benedito tem se notabilizado por contestar e denunciar atos LGBTQ-fóbicos — em fevereiro, ao performar “Ignorantes” na TV americana, o cantor vestiu uma camiseta com os dizeres “Mataron a Alexa, no a un hombre con falda”. Outros momentos do disco também sinalizam que o cantor está interessado, na realidade, em subverter papéis e remar para um novo paradigma dentro do gênero musical, mais diverso e respeitoso.

Em YHLQMDLG, Bad Bunny ressalta um estreito elo com Porto Rico (“P FKN R”) e sua identidade latino-americana. Por essa postura, demonstra clareza e reverência pelas raízes de um gênero de origem marginalizada que, mesmo recebendo glamour, ainda sofre uma resistente estigmatização. Para que tivesse acesso às ricas referências contidas no disco e lograsse um sucesso inconteste, Bunny preferiu ficar próximo ao chão porto riquenho — tão abandonado pela mainland estadunidense onde se criou enquanto músico. Como resultado, entregou um dos discos do ano (se você for um aficionado do reggaeton, é com certeza o melhor) e escreveu seu nome na história do gênero.

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Jorge Fofano Junior
You! Me! Dancing!

Químico, estudante de Jornalismo pela ECA-USP e ex-DJ amador da noite paulistana.