Björk — Fossora

Novo disco da multiartista islandesa faz apanhado sólido de várias incursões estéticas apresentadas em sua trajetória

Giovanni Vellozo
You! Me! Dancing!
5 min readOct 12, 2022

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Fossora

Björk

Ouça: “Allow”, “Ovule”, “Sorrowful Soil”, “Fungal City” e “Fossora”
Nota: 9.0
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Aos 56 anos, Björk Guðmundsdóttir atingiu há muito um panteão artístico no qual não só é completamente desnecessário provar algo ao público ou à crítica, como também o próprio sucesso comercial corriqueiro não é mais imperativo para seu trabalho se manter relevante. Focando apenas na sua faceta musical em carreira solo, a islandesa emplacou desde 1993 uma sequência de álbuns sólidos, em boa parte conceituais e bastante distintos entre si, expandindo as convenções do que se considera “pop”. Passados quase trinta anos de trajetória, um número considerável destes trabalhos é hoje habitué em listas de discos clássicos contemporâneos — podem ser citados aqui Post (1995), Homogenic (1997) e Vespertine (2001), para jogar apenas no que é praticamente indiscutível.

Por esse retrospecto, qualquer anúncio de um novo trabalho é garantia certa de atenção — e isso se provou correto quanto na última sexta-feira, dia 30 de setembro, Björk lançou seu décimo disco, Fossora. Cinco anos após o último álbum, Utopia (2017), esse retorno foi marcado por três singles (“Atopos”, “Ovule” e “Ancestress”, todos com videoclipes respectivos) e um podcast, Sonic Symbolism, com episódios dedicados ao processo criativo de cada um de seus discos. Para além do evidente fanservice, esse trabalho de divulgação indica o quanto Fossora coroa a sua própria carreira, alastrando-se sobre o seu material pregresso. Ao longo de pouco mais de 54 minutos, Björk recombina-o e faz brotar em formas imprevisíveis — a metáfora dos fungos, utilizada na capa e nas letras do disco, não parece ser por acaso — a música do novo trabalho.

Nas mãos de outro artista menos preparado, essa estratégia de atuação poderia resultar num atira-para-todo-lado sem personalidade, ou então em uma autocongratulação medonha. Björk, por sua vez, entende do riscado. No bom sentido, Fossora é um trabalho bastante variado e não hesitaria em considerá-lo— ainda que ele não se resuma a isso — uma excelente porta de entrada para o catálogo da artista. De cara, um lado mais dançante desponta nas duas primeiras faixas, os singles “Atopos” e “Ovule”. A primeira, produzida em parceria com o produtor indonésio Kasimyn, parece um reggaeton vindo de alguma camada do inferno (isso é um elogio), com linhas do sexteto de clarinete-baixo Murmuri em meio às batidas abrasivas que se intensificam ao final: sintoma da fusão orgânico-eletrônico que Björk (des)constrói desde o final do século passado. A segunda faixa, menos agressiva, é marcada pelos beats eletrônicos junto a um belo arranjo de metais e vozes intercaladas — e mesmo não havendo refrão ou uma estrutura óbvia, é difícil não ficar com o motivo melódico desenhado por eles na cabeça. Por cima deles, Björk quase declama uma sequência de reflexões sobre o amor, em um contínuo entre passado-presente-futuro, entre imaginação e realidade.

Quer ouvir aquela Björk mais experimental e de músicas distantes da famigerada forma-canção? “Mycelia” e “Trölla-Gabba”, que remetem às ásperas colagens de voz do refrescante Medúlla (2004), são a pedida, dosando aventura e assombro ao ouvinte. Aliás, falando da voz, bastante marcante com os peculiares sotaque e interpretação da artista, ela está afiadíssima aqui em vários momentos. Os grandes destaques nesse sentido são “Sorrowful Soil” e “Allow”. A primeira traz um contraponto vocal arrepiante, como em uma espécie de reminiscência póstuma em relação à mãe Hildur Runa Hauksdóttir, falecida em 2018. A segunda, ponto alto do disco como um todo, é uma sobra retrabalhada do disco anterior, aqui cantada em parceria com a norueguesa Emilie Nicolas. Continuando o uso de sopros demarcado por Utopia, uma verdadeira cama de flautas sustenta as vozes de uma canção-súplica, de como quem ainda humildemente pede permissão para ascender ao universo mesmo estando no topo da carreira.

O disco traz ainda mais versatilidade ao longo das canções. Em “Freefall”, pode ser sentida uma interpretação vocal crua e poderosa em meio a um expressivo arranjo de cordas — destaque para o final em pizzicato — como no entristecido Vulnicura (2015). Se no disco citado o clima era de término, aqui Björk novamente abraça e se ilumina por meio de um amor-amálgama, espiritualmente orgânico e musicalmente místico. Se quiser ouvir momentos mais graves e densos, peças como “Victimhood” e “Fungal City” fazem a boa. Ambas são faixas onde o sexteto de clarinete-baixo brilha, seja construindo uma ambientação tétrica ou na elaboração de linhas melódicas em escalas bastante peculiares — no caso da segunda faixa, com o apoio de arranjo de cordas e do vocal de serpentwithfeet. Já a Björk mais agressiva chega ao ápice nos momentos finais da faixa-título, novamente uma coprodução com Kasimyn. Unindo os sopros a uma batida abrasiva e vocais distorcidos no estéreo, a música parece mimetizar a ideia de esporos fúngicos se apoderando do solo — “Fossora” significa, em uma interpretação livre do latim feita pela islandesa, “aquela que cava”.

Apesar de todos esses momentos merecerem a descrição de destaques, é evidente que a faixa mais grandiosa do disco é “Ancestress”, terceiro single. Constituída como um funeral de 7 minutos para a supracitada mãe, ao som de gongos, vibrafones e cordas, a faixa é definitivamente a mais progressiva do trabalho, com muitas seções separadas por reduções súbitas de dinâmica no arranjo. A mesma temática é retomada de forma mais plácida e menos extravagante — e, com o devido respeito, talvez mais efetiva — no encerramento com “Her Mother’s House”, último suspiro do trabalho.

Simbolicamente, ambas as faixas trazem filhos da artista — Sindri Eldon e Ísadóra Bjarkardóttir Barney, respectivamente — colaborando com vocais, como quem passa adiante um ciclo de relação maternal. De certa forma, o próprio Fossora prossegue ciclos na carreira de Björk, na medida em que condensa boa parte das ideias tentadas pela artista em trabalhos anteriores sem deixar de constituir, por si só, um trabalho sólido no presente e com um direcionamento para pensar o futuro do pop. Fossora pode não ser necessariamente o seu trabalho mais inventivo, mais memorável ou mais extraordinário — mas ainda assim, como é quase praxe para um disco de Björk, todos esses três adjetivos são capazes de descrevê-lo sem dourar nenhuma pílula.

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