Caroline Polachek — Desire, I Want to Turn Into You

Novo disco da artista estadunidense é caleidoscópio mirando na dominação de amplo espectro do pop

Giovanni Vellozo
You! Me! Dancing!
5 min readFeb 22, 2023

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Desire, I Want to Turn Into You

Caroline Polachek

Ouça: “Billions”, “Butterfly Net”, “Crude Drawing Of An Angel”, “Welcome to My Island”
Nota: 8.5
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Expectativas altas, já dizia o lugar-comum, podem levar a frustrações de proporcional tamanho. Em meio a efemeridade de TikToks e stories a granel, então, criar uma expectativa em torno do lançamento de uma obra musical que se estende por mais de um ano e meio é um risco e tanto. Mas a cantautora nova-iorquina Caroline Polachek não se intimidou e deu all-in na estratégia, certamente guiada pela sua experiência na indústria construída desde os tempos de Chairlift e impulsionada pela aclamação de seu primeiro trabalho solo lançado sob seu próprio nome, o consistente Pang (2019). E assim, do bastilhante 14 de julho de 2021 com o lançamento do single “Bunny Is a Rider” até o neste são-valentino 14 de fevereiro, foi elaborado um dos ciclos de álbum do cenário pop mais ambiciosos dos últimos tempos. Agora, cinco singles e uma longa sequência de apresentações — que incluiu o Brasil em novembro do ano passado, na primeira edição nacional do Primavera Sound em São Paulo — depois, chega ao mundo Desire, I Want to Turn Into You, seu novo álbum.

Valeu a pena? Em uma palavra, sim. Em mais caracteres, é possível dizer com alguma confiança que Desire é aquele clichê — no mais excelente sentido — de continuação que expande a partir do exposto anteriormente, mantendo um nível de consistência similar. Se em Pang ela era como uma borboleta presa em um avião (“Hit Me Where It Hurts”) ao iniciar seu caminho solo sob seu condinome-nome, agora esta borboleta mutante está soltando suas teias em direção à luz (“Butterfly Net”).

Nada mais justo: guardadas as devidas proporções e a óbvia falta do teste do tempo, Desire é da linhagem de discos caleidoscópicos do pop como Hounds of Love (1985), Post (1995) e Ray of Light (1998), tendo a sua força não a partir dessas comparações simplistas (rejeitadas pela própria Caroline, diga-se), mas justamente na sua “persona”-lidade para conseguir amalgamar os distintos caminhos sonoros na tal teia. O monstro pop pode engolir tudo de todo lugar e transformar na mais vil e barata mercadoria — verdade há décadas — mas isso, sozinho, não garante que a execução ou a mera coexistência de um flamenco empastichado (“Sunset”) junto uma faixa eletrônica com toques de música folclórica celta (“Blood and Butter”) sejam agradáveis, para pegar os exemplos mais gritantes de apropriação estética.

E nesse sentido, como esse disco agrada. Desire é hedonista o suficiente para não ser chato demais e cabeça centrada o bastante para não chatear pela simploriedade — “look over the edge, but not too far”, como diz em “I Believe”. Há certamente momentos que em uma audição mais sisuda podem ser passíveis de descarte, como a despretensiosa já citada “Bunny Is a Rider” e a arrastada “Hopedrunk Everasking”, bela balada que poderia se beneficiar de uma melhor posição na lista de reprodução (ou de uma eventual versão de 10 minutos, fica a dica). São, contudo, externalidades mínimas. Na maioria dos seus pouco mais de 45 minutos, o álbum é sedutor e, ainda que não se proponha a ser necessariamente vanguardista, é por vezes impressionante.

Ninguém que ouviu Pang atentamente teria dúvidas da capacidade vocal de Polachek, por exemplo, mas ouvir os seus malabarismos na excelente abertura pé-na-porta “Welcome to My Island” e na soturna “Crude Drawing Of An Angel” é um sublime deleite. As sequências cantiga-de-roda para zoomers das linhas vocais circulares de “Pretty In Possible”, “Sunset” e “Smoke”, longe de constituir somente um mero recurso apelativo para cantar junto ao público em futuras apresentações, são embebidas em composições minimamente apuradas.

Da mesma forma, merece especial destaque o trabalho de produção de Caroline e seus colaboradores, que inclui nomes como o co-responsável pela produção executiva Danny L Harle, o ícone do selo PC Music A. G. Cook em “Welcome to My Island”, Sega Bodega em “Sunset” e Ariel Rechtshaid em “I Believe”. Ainda que notavelmente ecléticas na execução dado esse time amplo, as faixas mantêm uma lógica comum, tanto no processamento vocal — a lógica do “pixel da voz”, enquanto corpo metamorfoseado e agregado a colagens, é talvez o mais gritante apelo da artista nesta fase da carreira — quanto nas linhas instrumentais — notas aqui para momentos de fácil atratibilidade como a linha percussiva de “Butterfly Net” e “Crude Drawing Of An Angel”, as linhas de violões e foles característicos dos gêneros emulados nas supracitadas “Sunset” e “Blood and Butter” e os beats de “Fly To Me”, com razoável participação de Grimes e Dido.

É impossível mensurar em pleno lançamento o quanto do proprosto em Desire, I Want to Turn Into You colará nas paredes do tempo. Soa também um tanto pretensioso e irreal atribuir a uma artista de fama ainda relativamente restrita — ainda que com fãs bastante fervorosos, especialmente por essas bandas — a dominação total da besta do pop como eventuais predecessoras. No entanto, ao se ouvir uma faixa como o encerramento “Billions” — disparado o melhor dos singles e quase que seguramente a melhor das faixas do trabalho — , não há dúvida de que potencial para tal existe. Aqui, temos a artista em seu estado mais progressivo. Expande-se a forma-canção, entre a dimensão luxuosa “cornucopeica” evocada pelas grandes cifras, pelas harmonias vocais e pelos arranjos cristalinos; e a proximidade, a um só tempo ao objeto de desejo do eu-lírico e ao público, em meio à pureza da resposta das crianças do Trinity Choir londrino.

O futuro, já dizia outro lugar-comum, a Deus pertence. Mas, ao ouvir Desire, é de se constatar que Caroline Polachek nunca esteve tão perto dele, em sua forma mais gozosa e gloriosa.

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