discos do coração: Closing Time

Meio século depois, a estreia de Tom Waits ainda ressoa no tempo

Giovanni Vellozo
You! Me! Dancing!
12 min readMar 6, 2023

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Em seu livro Estratos do Tempo, o historiador alemão Reinhart Koselleck elabora dois conceitos espaciais para, em suas palavras, “deduzir as noções de tempo contidas em testemunhos escritos: espaço de experiência e horizonte de expectativas” (p. 307). Remetendo respectivamente a relações de passado e futuro, ambas as categorias não existem isoladas, muito menos estáticas. Em verdade, é justamente na diferença entre elas — sobretudo na possibilidade de que as expectativas indiquem algo “novo” em relação ao experienciado — que Koselleck vê o surgimento da “modernidade”, um momento no qual “as expectativas começaram a se distanciar cada vez mais das experiências realizadas” (p. 308). É o momento de movimento, da proposição de novos futuros a partir de -ismos ainda não experienciados, alargando distâncias e ampliando a tensão entre esses polos conceituais.

Bom, eu não sou historiador. Pertenço, inclusive, a uma das classes por vezes mais criticadas por eles devido à banalização e ao pouco rigor com que costumamos tratar a História (jornalistas) — e possivelmente devo estar fazendo isto no exato momento. A despeito de Koselleck ser bibliografia básica de sua respectiva área, me deparei com sua obra e esse trecho citado no parágrafo anterior apenas lá no início da pandemia em 2020, ao estudar para uma prova de mestrado. E quando o fiz, o par de conceitos me chegou com um impacto bastante forte. Não apenas na apreensão da realidade ou do tempo, mas especialmente na minha relação com produções artísticas — em especial, a música.

Digo isso porque discursos musicais que giram em torno de antíteses relativas ao tempo, como tradição vs. vanguarda, arcaico vs. moderno, purismo vs. experimentação, nacional vs. cosmopolita (cá no Brasil, os Andrades Mário vs. Oswald, os caipiras vs. os sertanejos, o debate Tinhorão vs. Campos/Caetano, etc.) me atraem bastante. Não para que eu tome um lado ou acuse os eventuais problemas de uma ou outra argumentação, ainda que isso possa facilmente acontecer. O que mais me encanta é entender como essas discussões remetem à experiência humana da arte no tempo para justificar sua defesa muitas vezes apaixonada, seja de mudança ou de manutenção.

Saindo da esfera da crítica e indo para a do fazer musical interpretado por ela, é possível por vezes traçar a carreira de artistas a partir do quanto a sua obra se inscreve entre os polos. Impreciso, em boa parte, porém também incontornável. O artista cuja trajetória é um eterno contínuo ou um descontínuo constante; o disco/a apresentação ponto-de-virada; as fases de produção de toda sorte: são vários os tropos que descrevem ou, no pior dos casos, tacham as obras, dividem apreciações e opiniões entre os que associam mais às experiências pregressas e os que preferem vislumbrar as expectativas progressivas.

Tom Waits, em 1973, em fotos promocionais para a Asylum Records.

Nesse sentido, o artista — músico, ator — estadunidense Thomas Alan Waits é facilmente divisivo. Ok, é claro que uma considerável parte dos discos e filmes nos quais Tom Waits teve participação são definitivamente muito aclamados, e isso ao longo de todas as épocas em que atuou e independentemente de qualquer discurso relativo ao tempo em sua obra. Refiro-me aqui a uma divisão relativa à sua carreira, entre um Waits inicial e tardio.

No primeiro caso, mais restrito aos anos 1970 e início dos anos 1980, temos um Waits arquetípico. Pianista, ébrio e chaminé, de voz progressivamente mais rouca a cada trabalho, usando-a para cantar causos de um EUA profundo e desconfortável. Tudo em meio a arranjos seguros, mais ou menos orquestrais (ou jazzísticos, ou blueseiros, ou country, assim por diante), com algumas incursões esporádicas em spoken word e algumas experimentações.

I’m gonna whittle you into kindlin’

Um foreshadowing, diriam muitos, do Waits tardio, encaminhado a partir de Swordfishtrombones (1983) e da parceria com sua companheira artística e amorosa Kathleen Brennan. Waits pirou — em Captain Beefheart, notoriamente — e atingiu um novo status desde então, de um artista que ainda lida com as mesmas referências anteriores mas agregou também novas paletas, de forma muito mais progressiva, subversiva, abrasiva — até feia, e por isso, bonita.

De certa forma, essa segunda fase se estende até os dias de hoje (e cáspita!, já faz mais de uma década que esse cidadão não lança álbum), e não me parece errado dizer que é a que mais traz um apelo crítico dentro da carreira do músico. Discos como o supracitado Swordifishtrombones, Rain Dogs (1985), Bone Machine (1992) e Mule Variations (1999) são facilmente passíveis de entrar entre os seus melhores trabalhos musicais. E que fique claro, não há nada de errado nesse tipo de opinião — são bons álbuns, ora essa; e suas qualidades, ainda que talvez exageradas por uma fixação um tanto narcísica no horizonte de expectativas de quem os aprecia, são de fato qualidades.

No entanto, por motivos bastante pessoais, é um outro disco que me vem primariamente à cabeça quando se fala de Tom Waits. Trata-se de Closing Time, a sua estreia, pela gravadora Asylum, que completa exatos 50 anos em 6 de março.

Um notório rapper disse uma vez que, quando os caminhos se confundem, é necessário voltar ao começo. E o começo de Tom Waits tem uma peculiaridade interessante — a de ser passível de discutir o quanto exatamente de Tom Waits há ali.

Breve contextualização: Waits começou a escrever suas primeiras canções em fins dos anos 1960, enquanto trabalhava em uma pizzaria. Passou a se apresentar a partir de 1969 nos arredores de San Diego, California, e, eventualmente, ele conseguiu espaço para tocar na casa de shows Troubadour, em Los Angeles. Lá chamou a atenção de dois executivos da indústria fonográfica. O primeiro foi Herb Cohen, que levou Waits a fazer suas primeiras gravações em 1971, não lançadas à época — viriam a aparecer em dois volumes nos anos 1990 chamados de The Early Years, contando inclusive com algumas faixas que viriam a estar em álbuns de estúdio.

O segundo — e de contato mais bem-sucedido — foi David Geffen, que havia há pouco criado a Asylum Records, um “asilo” para artistas com dificuldades de achar contratos em outros selos. Boa parte desses artistas da Asylum caíam no rótulo em voga no período de Singer-Songwriters (cantores-compositores ou cantautores, em português, que cantavam suas próprias canções e via de regra traziam um som desenvolvido a partir alguma linha de tradição folclórica) recrutados na cena de Folk-Rock do sul californiano. O acerto com Waits e Geffen levou ao meu disco preferido em questão, produzido por Jerry Yester.

Closing Time não vendeu muito, mesmo com Waits fazendo uma tour de divulgação (materiais dessa época podem ser ouvidos em bootlegs por aí). Ao que consta, a sonoridade Singer-Songwriter do disco gerou algumas críticas do próprio artista, que estava desenvolvendo interesse em algo mais jazzístico — algo notório no seu disco posterior de 1974, o bacana The Heart of Saturday Night. Pouco tempo depois, uma das músicas do disco (“Ol’ 55”) até ganharia tração nas paradas de sucesso quando gravada por uma banda parceira de Asylum — os fucking Eagles — ; ainda assim, o próprio Waits notoriamente desgostou da versão, chamando-a “antisséptica”.

Mesmo que Closing Time tenha conseguido aclamação e popularidade nesse meio século (do top 10 do artista no Spotify, três são do disco, incluindo a mais ouvida), não é difícil encontrar ressalvas desabonadoras para o disco em uma linha similar às do próprio artista. Na lista do The Guardian de 10 melhores músicas de Tom Waits, Jeremy Allen fala que “what’s most remarkable about Tom Waits’s 1973 debut album, Closing Time, is just how unremarkable it is” (em tradução livre, “o que é mais digno de nota a respeito do disco de estreia de Tom Waits em 1973 é o quão não digno de nota ele é”). E realmente, é uma interpretação possível a de que Closing Time seja só… Algo mais do mesmo, de uma linhagem sonora muito específica de seu período e debativelmente datada nos arranjos. Algo ingênuo — em pelo menos três músicas, o músico conta “1, 2, 3, 4" antes de martelar o piano ou dedilhar o violão, como alguém pouco acostumado a estúdios. Algo imaturo — quedê aquela voz rouca, rascante, quase incompreensível?

Nada disso está errado, em si. Mas, ao menos para mim, há algo mais.

Talvez uma maneira interessante de se apreciar Closing Time seja pensando nele — e na carreira de Tom Waits, por metonímia — menos como ruptura e mais como um contínuo. Não se trata, claro, de colocar o álbum além de seu tempo, apagando os traços de seu período presentes no som e especialmente nas letras: já não há mais operadores telefônicos humanos; um carro de 1955, se já era velho em 1973, hoje é ou relíquia ou ferro-velho. Para além dessas marcas, contudo, Closing Time é um disco que, com o perdão do trocadilho besta, enclausura tempos distintos a depender de onde se mira o olhar temporal. É, não especialmente pela sua existência— visto que isso pode provavelmente se aplicar a qualquer disco, obra, acontecimento — mas justamente por seu conteúdo musical, um disco que serve de ponto onde passado e futuro musicais podem ser postos em revista.

Se nos voltamos para o tempo pretérito, o álbum surge como um amálgama de várias sonoridades sob o filtro estilístico Singer-Songwriter e em especial sob a interpretação que Waits faz a partir desses gêneros. O Waits de Closing Time pode ter sim algum quê de ingenuidade, com uma voz ainda em formação; porém, apresenta uma aspereza e uma experiência que por vezes me fazem duvidar que estou ouvindo um rapaz de 23 anos cantando. Seria um tanto movediço falar aqui em “canalizar” formas antepassadas — em especial considerando que por vezes no disco trata-se de um branquelo tocando jazz e blues — , mas não há como negar que nessa reiteração o disco traz um de seus maiores méritos, com Waits e seu piano servindo de um flâneur entre várias cenas e memórias recolhidas próprias do cancioneiro popular, sempre com um fator agridoce envolvido.

Nessa toada, ouso dizer que Closing Time traz algumas das melhores expressões de “saudade” feitas por alguém que não utiliza esta palavra em seu vocabulário. É um disco que já começa com a ideia da partida tão cara a esse sentimento, descrita como uma epifania religiosa ao piano de “Ol’ 55” — Well, my time went so quickly / I went lickety-splitly out to my ol’ fifty-five / As I pulled away slowly, feeling so holy / God knows I was feeling alive. Ainda assim, essa euforia não pode escapar ao tempo: o eu-lírico bem que gostaria de ficar mais, mas as circunstâncias não permitem. Esse também é o mote de “Old Shoes (& Picture Postcards)”, uma balada country ao violão sobre o fim de um amor no qual a mágica acaba, mas a busca por aquele sentimento ainda parece persistir, como um encosto antes da saída inevitável — Can I kiss you? And then I’ll be gone.

Aliás, amores partidos desse tipo, de sentimentos negados e passados perdidos, dão a tônica de algumas das canções mais lembradas do álbum. “I Hope That I Don’t Fall In Love With You”, a mais ouvida do artista no Spotify, é talvez o melhor retrato dessa relação — distante, entre olhares em mesas de bares, e que só é dada como certa pelo eu-lírico justamente quando a pessoa desejada completa sua ausência, na “hora do fechamento” a que o título do disco se refere. “Lonely” parece ser o day after, anaforicamente repetindo a solidão como forma de manter a memória do amor viva. Já em “Rosie” é novamente a amada que evadiu, deixando apenas uma melodia em uma noite soturna, mas para o tempo, tanto faz — I’ve been loving you, Rosa, since the day I was born / And I’ll love you, Rosie, ’til the day I die.

Similar situação ocorre naquela que para mim é a música mais profunda de todo o disco: “Martha”. A balada ao piano relata a ligação de um velho Tom Frost à sua antiga namorada de 40 anos atrás, buscando ao falar com ela algo que jamais retornará — findaram-se os dias de prosa, poesia e rosas, restou apenas a realidade, na qual our being together was never meant to be. É difícil para mim ouvir “Martha” sem chorar, lembrando de quiet evenings com quaisquer pessoas que passaram por nossa vida.

Nem tudo é necessariamente dor-de-cotovelo e mar-de-lágrimas. “Little Trip to Heaven (On the Wings of Your Love)” traz um panorama minimamente mais otimista, com a pessoa amada sendo a Estrela do Norte diante das adversidades. “Ice Cream Man”, por sua vez, traz o lado mais safado — I got a cherry popsicle right on time / A big stick, momma, that’ll blow your mind — em uma sonoridade jazzística e livre mais próxima da que seria apresentada em discos posteriores como Small Change (1976).

Em verdade, olhando para adiante no tempo (ou, sendo justo, fazendo no máximo uma visão retrospectiva desse mesmo olhar), para além do que um exame superficial indica, Closing Time também aponta para alguns traços de Tom Waits que marcariam toda a sua carreira, independente de divisões de “fase”. Os gêneros musicais, as temáticas, o rudimento, o soturno— tudo isso faz parte de sua música de forma tão umbilical que não faz sentido separar de forma radical a sua arte. Da mesma forma, ainda que expectativas tendam a ser remodeladas e redefinidas, é possível notar no disco um certo movimento autoconsciente de Waits em relação ao futuro. Em “Midnight Lullaby”, trata-se da metáfora do sonho que é acionada para essa antevisão, de certa forma também prevendo uma retrospectiva — when you are dreaming, you see for miles and miles / When you are much older, remember when we sat / At midnight on the windowsill and had this little chat / And dream…

Mas a menção mais evidente dessa pretensão em relação ao futuro acontece justamente na música sem letra — a instrumental “Closing Time”, que fecha o álbum. Antes de iniciar a peça, Waits sussurra, provavelmente distante dos microfones: okay, let’s do one… for posterity… E o que ficou para a posteridade foi uma bela melodia noturna de piano e saxofone, tal como um espectro sonoro de um 78 rotações de Ballroom music sampleado por Leyland Kirby. Waits remete a todos os encerramentos — de bares, de noites, de discos — e ao mesmo tempo não tem medo de encarar o legado posterior, nem de fazê-lo acontecer.

Todas essas discussões sobre a apreciação do álbum convivem com um quê de relação pessoal e intransferível. Closing Time foi o disco que mais ouvi em 2021, em um momento bastante particular de minha vida, no qual eu retomava contatos presenciais enquanto prosseguia a minha pesquisa de mestrado iniciada ainda no período de isolamento. Eventualmente, essa pesquisa me levou a passar dias em outra cidade, e foi por lá que aconteceu a memória mais vívida de audição desse disco.

Após um encontro com uma das pessoas mais importantes em minha vida e uma despedida que duraria até não se sabia quando, retornei a pé, sem muita pressa, ao pequeno quarto alugado com o álbum nos ouvidos. As luzes do centro da cidade no início de noite pareciam projetar o clima fugidio do blues de “Virginia Avenue”, como se perguntando para onde então rumar agora em minha vida — Let me tell you that I’m dreaming to the twilight / This town has got me down / I’ve seen all the highlights / I’ve been walking all around / I won’t make a fuss, I’ll take a Greyhound bus / Carry me away from… / Tell me, what have I got to lose? A verdade é que eu ainda não sei a resposta, e quiçá seja esse tipo de dúvida de que ainda me faça seguir.

De certa forma, quando penso nesse e em outros momentos em que ouvi Closing Time, me deparo com o óbvio fato de que há meio século Tom Waits não gravou esse trabalho para um público como eu, distante das referências geográficas e sonoras apresentadas nos pouco mais de 45 minutos de duração; ou mesmo necessariamente para a época de hoje. Sem querer entrar a fundo em discussões sobre como o “som universal é o regional de alguém imposto para todo mundo” e afins, me parece claro que esse distanciamento também teve um impacto considerável na minha forma de apreciação. Só que ainda assim é um álbum que não poderia de certa forma soar mais próximo de mim a cada vez que o reescuto. Como em “Grapefruit Moon”, as canções de Waits me elevam e levam para caminhos de inspiração e contemplação. O tempo fez bem a elas, e na relação delas com o tempo é onde mora boa parte de sua força.

Every time I hear that melody / Puts me up a tree / And the grapefruit moon, one star shining / Is all that I can see

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