discos do coração: Discipline

Há quarenta anos, o King Crimson vinha novamente à luz, com um disco entre o paranoico e o sublime

Giovanni Vellozo
You! Me! Dancing!
7 min readAug 9, 2021

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Uma das maiores bandas do que se convencionou chamar como Rock Progressivo teve sua morte decretada em setembro de 1974. Prematura — após apenas cinco anos de atividade —, mas não sem antes deixar um legado extraordinário. O grupo britânico King Crimson, capitaneado pelo lendário guitarrista-sentado Robert Fripp, havia até então lançado sete discos de estúdio. Alguns desses figuram entre os maiores clássicos de seu gênero. Entre eles, podem ser citados o seminal In The Court of the Crimson King (1969), o eclético Larks’ Tongues in Aspic (1973) e o pesado Red (1974).

À época deste último disco, Fripp se encontrava então desiludido com a indústria musical e com o status do rock nela, cada vez mais massificado e formulaico. Além disso, vamos-e-venhamos: certamente não era fácil suportar o gênio peculiar do líder do KC, visto que o grupo não mantinha uma formação por mais de um álbum. No período, estava reduzido a um power trio composto por Fripp, pelo baterista Bill Bruford (ex-Yes) e pelo baixista John Wetton (ex-Family). O fim desse processo cansativo foi descrito por Fripp como um momento em que a banda do Rei Carmesim estaria “completely over for ever and ever”.

É justamente pelo feliz fato de que Fripp não cumpriu esta afirmação que estou aqui hoje. No caso, para comentar sobre o trabalho que marca a volta do King Crimson ao estúdio e aos palcos: o álbum Discipline, lançado em 22 de setembro de 1981, há 40 anos atrás.

Compreender a segunda vinda do King Crimson não é possível sem entender primeiro as experiências que o seu líder teve no período de hiato. Logo após o fim da banda, Fripp focou especialmente em colaborações com outros artistas, fosse tocando ou como produtor. Exemplos disso estão na participação do músico no primeiro disco solo do ex-vocalista do Genesis, Peter Gabriel, e na produção do primeiro álbum do conjunto vocal The Roches — com o próprio Fripp solando monstramente na sublime “Hammond Song”.

Mas a mais significativa das parcerias foi a com o produtor britânico Brian Eno — ambos já haviam produzido juntos um disco em 1973, o ambiental No Pussyfooting, e repetiram a dobradinha em 1975, com Evening Star. Para além desses discos, Fripp colaborou com Eno em trabalhos solo e nos artistas coproduzidos por este, com alguns resultados magistrais. A guitarra que Fripp fez para o interlúdio de “I’ll Come Running” é provavelmente o meu momento preferido nesse sentido, mas o mais famoso sem dúvida é o solo de feedback em “Heroes”, de David Bowie (aqui melhor explicado por Tony Visconti).

Fripp, Bowie e Eno, na época da gravação de Heroes. Em 2019, Fripp entrou na justiça para garantir o status de “featured player” na canção.

Longe de ficar preso ao passado e obtuso às novas tendências, Fripp também estava prestando atenção na música popular de sua época. Em especial, na música Disco e no Punk: o guitarrista constatou o primeiro como “um movimento político que vota com os pés” e o segundo como algo que “estava esperando para ouvir há seis anos.”

Dentro dos artistas relacionados ao estouro do Punk, Fripp parecia mais interessado na face animada da New Wave, e foi com artistas dessa linha que buscou se enturmar. As guitarras frippadas de “Fade Away and Radiate” do Blondie e da dadaísta “I Zimbra”, do Talking Heads, são amostras dessa contribuição do músico.

Tinha uma época que um trecho da letra dessa música era meu status no zap. Azideia.

Entre 1979 e 1981, o músico voltou a lançar trabalhos solo nessa mesma toada — ou, pelo menos, a versão de Fripp para ela. Exemplos são Exposure (1979, com participações de gente como Daryl Hall e Peter Gabriel), God Save the Queen / Under Heavy Manners (1980, com participação especial de David Byrne em uma faixa) e o debut do grupo The League of Gentlemen (1981), de duração de alguns meses apenas.

Em abril deste último ano, Fripp reuniu um novo grupo, composto por ele, o também guitarrista Adrian Belew (ex-Zappa, Bowie e Talking Heads), o antigo colaborador baterista Bill Bruford e o habilidoso baixista Tony Levin. Era o grupo Discipline. Ou pelo menos, foi por alguns meses, porque no final de 1981, Fripp resolveu renomear o projeto como… É, você adivinhou… King Crimson. E foi essa formação de quarteto que viria a gravar o álbum aqui resenhado.

Convidaria esses rapazes para jantar?

O novo King Crimson ainda era cabeçudo e complexo como o primeiro, mas trazia um senso de urgência e de diálogo com a nova realidade musical que se desenhava na década de 1980. Já de cara, com o chapman stick martelando as primeiras notas de “Elephant Talk”, essa reinvenção se torna evidente. Uma canção baseada em polirritmos na cozinha de Levin e Bruford, uma letra com jogos de palavras sobre conversas de todo tipo, um vocal esganiçado e paranoico de Belew, entrecortados pelos solos de timbres inusitados feitos por este junto a Fripp.

“It’s only talk…”

Era evidente que o King Crimson emulava em boa parte os caminhos sônicos traçados pelo Talking Heads em seu clássico lançado um ano antes, Remain in Light — comparação até certo ponto justa, visto que Belew foi um dos principais colaboradores do magistral disco dos nova-iorquinos. Mas, ao mesmo tempo, o disco-irmão Discipline fugia de derivações óbvias, conseguindo isso com a destreza técnica dos integrantes para refinar essa então nova proposta estética ao longo de sete faixas.

Tome-se como exemplo “Frame By Frame”, faixa onde fica evidente o interesse de Fripp na época em criar uma espécie de “rock gamelan”. O gamelan é uma prática musical da Indonésia marcada pelos polirritmos em grupos de percussão, que já havia inclusive influenciado a introdução da primeira parte da série de faixas da banda chamadas “Larks’ Tongues In Aspic”, em 1973. Mas aqui nesta faixa, essas camadas de ritmos em fase e defasagem são executados pelas guitarras de Fripp e Belew ao mesmo tempo, gerando o clima perfeito para uma “death by drowning”.

Estruturas musicais do mesmo tipo também servem à paranoia de músicas como “Thela Hun Ginjeet”, um anagrama para Heat in the Jungle. A canção traz como boa parte de sua “letra” a gravação de um relato de Belew sobre um contato com uma gangue e com policiais nas ruas de Londres. Em meio a tudo isso, uma disputa entre tempos de 4/4 e 7/8 dá a tônica do perigo à espreita nas grandes cidades.

Outra canção com a mesma sensação desnorteadora é até hoje uma figura carimbada nos shows do grupo: “Indiscipline”. A canção gira em torno de uma conversa entre Belew e a sua então esposa Margaret, em relação a uma pintura que ela havia mostrado para ele. “I repeat myself when I’m under stress / I repeat myself when I’m under stress / I repeat myself when I’m under stress”, fala um homem sobrecarregado pelas interpretações da obra de arte. Ao final, o grito primal, que resume todas as possíveis análises e conjecturas da obra em um só desejo: “I like it!”

Curiosidade: o atual vocalista, Jakko Jakszyk, tem mania de falar a última frase da canção na língua do país em que a banda está tocando. Ou melhor, tenta. Aqui no Brasil, tanto no RJ quanto em SP, saiu um “Io Gusto”. Nada que destrua a interpretação absurda que esses caras apresentam na formação com três bateras, claro.

Mas o King Crimson também sabia ser calmo. E sublime. A única “balada” do disco, “Matte Kudasai” (“Por favor, espere”, em japonês) é o grande exemplo. Com solos de fazer levitar do chão o ouvinte, o quarteto talvez tenha atingido o Nirvana no estúdio na canção de mensagem um tanto agridoce, como numa espécie de Madame Butterfly revisitada: “She waits in the air / Matte kudasai / She sleeps in a chair / In her sad America”.

O trabalho encerra com as duas faixas instrumentais “The Sheltering Sky” e “Discipline”. A primeira é uma tomada contemplativa, percussiva e mais ambiental, relativamente próxima dos trabalhos de Eno com Jon Hassell (RIP) e David Byrne que misturavam ambient aos sons do questionável rótulo guarda-chuva World Music. Já a segunda poderia facilmente estar, apenas com uma leve abrasividade maior nos timbres, em algum trabalho do chamado Math Rock da década seguinte.

Aqui tem 17/16 contra 5/8. Tás é doido.

Após Discipline, o King Crimson lançaria mais dois álbuns com a mesma formação de quarteto, Beat (1982) e Three of a Perfect Pair (1984), até novamente entrar em hiato até os anos 1990. E mesmo tendo lançado depois trabalhos relativamente elogiados de lá para cá, Discipline se mantém no teste do tempo como o grande trabalho da banda feito após o auge do Rock Progressivo dos anos 1970. Nem sempre foi assim tão acessível ouvir na íntegra essa obra na internet, porém: na década passada, a banda (e Fripp, por extensão) arregimentou uma certa imagem sisuda e distante, ficando famoso por rejeitar a sua participação em serviços de streaming e derrubar tentativas de compartilhamento de sua música no YouTube.

Eu fui! (Na última fileira… Foi o que deu pra pagar).

Felizmente, esse tempo passou. Fripp fez as pazes com as redes, e há menos de dois anos (parece uma eternidade…), o grupo veio ao país pela primeira vez, em shows no RJ e em SP, mostrando que ainda tem muita lenha para queimar. E a julgar pelos curiosos vídeos que Fripp e sua esposa Toyah vêm fazendo desde o início da quarentena, a energia continua para o futuro pós-pandêmico.

Como dizia o encarte do disco aniversariante, “Discipline is never an end in itself, only a means to an end”. Ouso dizer que, mesmo quatro décadas depois, os caminhos abertos pelo King Crimson ainda continuam aí para exploração, por eles e por nós. Basta estar disciplinado para sentir.

Algumas das informações que retirei para este texto estão nos seguintes arquivos: o livro Robert Fripp: From King Crimson To Guitar Craft, de Eric Tamm, lançado em 1990; e o texto Rock Meets Classical, Part 6: Analyzing Discipline, de Gabriel Riccio, que fez depois um trabalho de transcrição autorizada das canções de Discipline.

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